#90AnosDePedro | Carta de Pedro ao Papa

90 anos de vida, 50 de Brasil. Uma longa história que ultrapassou os limites da Prelazia, alcançou o Brasil e o mundo. No auge das tensões com o Vaticano, Pedro escreve uma longa carta ao Papa João Paulo II. Vejamos alguns tópicos.

Antônio Canuto*, na CPT

A ação de Pedro Casaldáliga, Bispo de São Felix do Araguaia, incomodava o Vaticano. Ele denunciava o trabalho escravo, a invasão das terras indígenas, a expulsão das famílias de posseiros. Era uma denúncia direta contra uma política de governo que se implantava na Amazônia, para seu “desenvolvimento”.

Essa realidade o tocava profundamente, e se transformavam em poesias carregadas de compaixão pelos agredidos. Eram a expressão de sua paixão pela justiça.

A causa do direito e da justiça ganhavam forma catequética ao se aprofundarem temas relativos ao Batismo, à Missa, à igreja, à família. E tinham uma dimensão ecumênica e macro ecumênica que se concretizou no Santuário dos Mártires, nas Romarias dos Mártires  da Caminhada e na Missa da Terra Sem Males e na Missa dos Quilombos.

As causas da justiça e do direito extrapolavam os limites da Prelazia de São Félix. A América Latina, a Pátria Grande, como ele a chamava, provocava nele impulsos de solidariedade que se expressaram nas Visitas que fez à América Central, de modo especial à Nicarágua, que vinha sendo bombardeada por toda a direita do Continente.

Esse modo de ser e de agir causava pruridos num setor mais tradicional da Igreja representado sobretudo pelas Congregações do Vaticano.

Tendo isso como pano de fundo, a partir de 1985, Pedro passa a ser cobrado por não ter participado da Visita ad Limina, à qual são obrigados todos os bispos a cada cinco anos. Sua resposta dizendo não pensar ir, porque nunca tinha voltado à Europa desde que chegara ao Brasil, nem mesmo quando sua mãe falecera, irritaram sobremaneira o Vaticano que lhe enviou uma série de advertências.

Pedro resolve então escrever diretamente ao Papa. Isso foi feito no dia 22 de fevereiro de 1986. Uma longa carta de nove páginas.

Ele começa  contando um pouco de sua trajetória desde que, como missionário, chegou a São Felix, e descreve brevemente a situação da região dominada pelo grande latifúndio. Também assinala a situação em que o povo vivia sem serviços adequados de educação, saúde, transporte, segurança. Conta também as perseguições que ele e outros agentes de pastoral sofreram pelas forças da ditadura; como também se multiplicaram as incompreensões e calúnias dos grandes proprietários de terra, “nenhum vivendo na região”.

A seguir diz Pedro ao Papa: “Não tome como impertinência a alusão que farei a temas, situações e práticas secularmente controvertidos na igreja ou até contestados, sobretudo hoje, quando o espírito crítico e o secularismo perpassam também fortemente a vida eclesiástica.” “Abordar novamente estes assuntos incômodos, falando como Papa é, para mim, expressar a corresponsabilidade em relação à voz de milhões de irmãos católicos – de muitos bispos também – e de irmãos não-católicos, evangélicos, de outras religiões, humanos”.

Pedro pontua que “a igreja deve estar atenta aos sinais dos tempos”, e assinala que não se pode dizer que fizemos já a opção pelos pobres, porque não partilhamos com eles a pobreza real; e “porque não agimos frente à ‘riqueza da iniquidade’ com aquela liberdade e firmeza empregadas pelo Senhor”.

Em relação à Visita ad Limina diz que esta prática deve ser renovada, pois “ela se mostra incapaz  de gerar um verdadeiro intercâmbio de colegialidade apostólica”. E em relação  a certas estruturas da cúria Romana ele enfaticamente diz que “não respondem  ao testemunho de simplicidade evangélica e de comunhão fraterna que o Senhor e o mundo de nós reclamam”. E, claramente, diz que “não faltam, com frequência, em setores da Cúria Romana, preconceitos, atenção unilateral para as informações e até posturas, mais ou menos inconscientes, de etnocentrismo cultural europeu frente à América Latina, à Africa e à Asia”.

Em relação à mulher na Igreja, Pedro diz ao Papa:

“Ninguém pode negar, com isenção de ânimo, que a mulher continua a ser fortemente marginalizada na igreja: na legislação canônica, na liturgia, nos ministérios, na estrutura eclesiástica. Para uma fé e uma comunidade daquela Boa-Nova que não mais discrimina entre ‘judeu e grego, livre e escravo, homem e mulher’, essa discriminação da mulher na Igreja, nunca poderá ser justificada. Tradições culturais masculinizantes que não podem anular a novidade do Evangelho, explicarão talvez o passado; não podem justificar o presente, nem menos ainda o futuro imediato”.

Também se manifesta sobre o Celibato:

“Outro ponto delicado em si e muito sensível para o seu coração, irmão João Paulo, é o celibato. Eu, pessoalmente, nunca duvidei de seu valor evangélico e de sua necessidade para a plenitude da vida  eclesial, como um carisma de serviço ao Reino e como testemunho da gloriosa condição futura. Penso, entretanto, que não estamos sendo compreensivos, nem justos com  estes milhares de sacerdotes, muitos deles em situação dramática,                 que aceitaram o celibato compulsoriamente, como exigência, atualmente vinculante, para o ministério sacerdotal na Igreja latina. Posteriormente, por causa desta exigência não vitalmente assumida, tiveram de deixar o ministério. Não puderam mais regularizar sua vida, nem dentro da Igreja, nem, por vezes, diante da sociedade”.

Pedro ainda tece considerações ao Colégio dos Cardeais, às Nunciaturas. E depois dirige-se ao próprio papa, dizendo que os títulos que lhe são atribuídos, “resultam pouco evangélicos e até extravagantes humanamente falando”. E sugere simplificar a indumentária, gestos, distâncias dentro de nossa Igreja.

Sugere ainda que se faça uma avaliação das viagens que o Papa faz a diversos países, “conflitivas para o ecumenismo”, revestindo-se de  certa prepotência e de  privilégios cívico-políticos em relação à igreja Católica”. Levanta ainda a questão do Estado do Vaticano, que investe o Papa de um função nitidamente política “que prejudica a liberdade e transparência de seu múnus de Pastor Universal da igreja”.

“Por que não se decidir, com liberdade evangélica e, com realismo também, por uma profunda renovação da Cúria Romana?”, pergunta ao Papa.

Expressa livremente visão em relação à Nicarágua e sobre a viagem que o Papa fez àquele país  que “deixou uma ferida  no coração de muitos nicaraguenses e de muitos latino-americanos, como ficou no coração do Senhor.” Fala longamente sobre sua visita à Nicarágua no ano anterior e as motivações que o levaram a fazê-lo.

 E pergunta: “Só com o socialismo e ou com o Sandinismo não pode a Igreja dialogar, sim, como criticamente deve dialogar com a realidade humana? Poderá a Igreja deixar de dialogar com a História?”. “O perigo do comunismo não justificará nossa omissão ou nossa conivência com o capitalismo”. E apela à condição de polonês do Papa que viu muitas vezes seu país invadido e ocupado por Estados vizinhos, uma condição semelhante à vivida pela América Central em relação aos Estados Unidos.

Fala ainda, com liberdade, a respeito de como vem sendo tratada a Teologia da Libertação e seus teólogos. Reclama ainda que o Relatório da Visita Apostólica, em 1977, jamais lhe tenha sido enviado.

Pedro em toda a carta faz questão de confessar seu amor à Igreja e sua fidelidade ao Papa, mas com aquela liberdade de espírito que o marcara a vida toda e quer ver a Igreja renovada.

Para ler na íntegra esta carta.

*Colaborador Setor de Comunicação da Secretaria Nacional da CPT.

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