ABA protesta contra decisão do governo do Pará de estabelecer normas para consulta prévia ignorando protocolos e sem ouvir povos indígenas

Tania Pacheco

A Associação Brasileira de Antropologia enviou ofício ao governador do Pará, Simão Robison Oliveira Jatene, protestando contra Decreto (1.969), de 24 de janeiro, que “institui Grupo de Estudos incumbido de sugerir normas procedimentais voltadas à realização de consultas prévias, livres e informadas aos povos e populações tradicionais”.

Contrariando leis e acordos nacionais e convenções internacionais das quais o Brasil é signatário, o Governo paraense pretende criar as normas sem ouvir os povos indígenas. E mais: optando por ignorar que diversos desses povos e algumas comunidades tradicionais já elaboraram, inclusive, seus próprios protocolos, que devem ser respeitados.

A ABA cita, inclusive, os exemplos dos Juruna, Munduruku, Munduruku do Planalto Santareno, Apiaká, dos ribeirinhos de Montanha Mangabal, Pimental, São Luís, São Francisco, Colônia de Pescadores Z -20 e da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém, todos do próprio estado do Pará, assim como decisão do TRF-1, a respeito de Belo Sun, que reconhece “a estratégia dos protocolos de consulta comunitários como forma de operacionalizar o direito à consulta pelos próprios indígenas”.

O Ofício (nº 005/2018/ABA/PRES) foi encaminhado com cópia para Luís de Camões Lima Boaventura, Procurador da República em Santarém.

Abaixo, o texto do documento:

***

Assunto: Manifestação da ABA sobre o Decreto nº. 1.969 de 24 de janeiro de 2018 do Governo do Pará que institui Grupo de Estudos incumbido de sugerir normas procedimentais voltadas à realização de consultas prévias, livres e informadas aos povos e populações tradicionais.

Excelentíssimo Senhor Governador,

Cumprimentando-o cordialmente, a Associação Brasileira de Antropologia, por meio de suas  Assessorias, Comissões e Comitês abaixo assinados, vem manifestar-se pela revogação do Decreto nº. 1.969, de 24 de janeiro de 2018, editado por esse Governo, que “institui Grupo de Estudos incumbido de sugerir normas de procedimentos para a realização de consulta s Prévias, Livres e Informadas aos povos e populações tradicionais”, visando “subsidiar a elaboração do Plano Estadual de Consultas Prévias, Livres e Informadas”.

Esta manifestação decorre de expertise técnico-científica, por sua vez erigida a partir de pesquisas antropológicas sistemáticas no âmbito dos processos de licenciamentos ambientais. A avaliação da Associação resulta ainda de dados produzidos junto aos povos e comunidades tradicionais no contexto da implementação de projetos ditos de “desenvolvimento”. O conhecimento acumulado  encontra-se registrado de forma sucinta em pelo menos dois documentos que sustentam esta manifestação, quais sejam, a Carta de Ponta das Canas (2001) e o Protocolo de Brasília (2015). Este último destaca ser necessário:

assegurar a participação das comunidades atingidas em todas as etapas do processo, desde a elaboração dos Termos de Referências; deve-se incorporar os conhecimentos das comunidades locais na caracterização e no dimensionamento do universo socioambiental no âmbito de cada licenciamento, uma vez que categorias normativas, tais como “Área Diretamente Atingida” e “Área Indiretamente Atingida”, não correspondem às formas locais de apropriação do ambiente e à organização social do(s) grupo(s) envolvido(s) (Protocolo de Brasília, 2015, p. 25).

Neste sentido, enfatizamos que todos os procedimentos de consulta devem respeitar os protocolos dos povos e comunidades tradicionais já construídos pelos próprios comunitários para a realização de consulta, destacando-se a decisão judicial do Tribunal Regional Federal da 1ª Região (TRF1), em 6 de dezembro de 2017, quanto ao caso da mineradora Belo Sun – primeira decisão judicial que reconhece a estratégia dos protocolos de consulta comunitários como forma de operacionalizar o direito à consulta pelos próprios indígenas. Lembramos os protocolos já constituídos pelos Juruna, Munduruku, Munduruku do Planalto Santareno, Apiaká, os ribeirinhos de Montanha Mangabal, Pimental, São Luís, São Francisco, Colônia de Pescadores Z -20 e Federação das Organizações Quilombolas de Santarém, todos nesse Estado, em especial no oeste paraense. Sublinhe-se a necessidade de se respeitar as decisões comunitárias que rejeitem qualquer procedimento de consulta prévia, quando considerarem ilegítimos os procedimentos, ou mesmo os empreendimentos que as impactam, e, portanto, neguem sua participação no processo de licenciamento, em qualquer uma de suas etapas.

A ABA avalia que qualquer processo de regulamentação do direito de consulta , seja por via de um plano estadual, ou qualquer outro meio, deveria necessariamente: (i) ser construído conjuntamente com a participação efetiva e formalmente reconhecida dos sujeitos de direito; e, após a sua elaboração, (ii) ser submetido, ele mesmo, à consulta junto a tais sujeitos de direito antes de ser sancionado pelo governo.

Quanto ao primeiro ponto, observando o conteúdo do Decreto 1.969/2018, surpreende negativamente que o Grupo de Estudos instituído ignore, desde a sua composição, o imperativo da representação dos povos e comunidades tradicionais interessados e potencialmente afetados por essa medida, conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, em seu Artigo 6º, constando tão somente de representantes de órgãos de governo, sem representações da sociedade civil e/ou de organizações de apoio, inclusas as associações científicas. Dispõe o Decreto que “entidades públicas ou privadas” podem pedir o credenciamento no Grupo, sujeito à aprovação de seu coordenador, nomenclatura esta que não contempla os povos indígenas e comunidades tradicionais, já que limitar o “credenciamento” a associações da sociedade civil não configura uma participação culturalmente adequada. Além disso, tendo sido anunciado apenas por meio da publicação no DOE e canais de mídia convencionais, não prevendo qualquer estratégia de divulgação adequada que amplie seu alcance, seja por meio de rádios comunitárias, seja de seminários locais, ou outras ações, a grande maioria dos povos e comunidades sequer terá conhecimento da existência do Grupo de Estudos, quanto mais participar neste pedindo credenciamento.

Quanto ao segundo ponto, o Decreto não prevê um momento em que a proposta de Plano Estadual de Consulta, a ser construída conjuntamente, seja submetida à consulta aos povos indígenas e comunidades tradicionais antes do envio para a sanção pelo Governo do Estado – embora, pela legislação internacional, a consulta seja obrigatória para qualquer regulamentação que afete tais grupos. Dever-se-ia, por conseguinte, consultar os povos e comunidades tradicionais que, nos termos correntes da gestão do licenciamento, são denominados de afetados direta ou indiretamente pelos empreendimentos, considerando as suas próprias especificidades, suas formas de organização social e representação política, respeitando-se os seus tempos e os seus territórios. É insustentável, assim, o prazo de quinze dias para que o Grupo de Estudos apresente ao governo uma proposta Plano Estadual de Consultas Prévias, Livres e Informadas, considerando todos os elementos necessários aqui aludidos como imprescindíveis.

Em síntese, a eventual regulamentação de um procedimento de consulta por meio de um Plano Estadual deve, necessariamente, considerar a participação dos povos indígenas e comunidade tradicionais desde o seu nascedouro, incorporando as suas especificidades, em termos de suas formas de organização social e representação política, respeitando os protocolos de consulta daqueles que já os possuem, o direito de elaboração de protocolos específicos para todos os grupos, bem como o direito de não participação para aqueles que assim se posicionarem.

Certos de que o Governo do Pará levará em conta esta manifestação e considerará os direitos e as especificidades culturais dos povos indígenas e comunidades tradicionais do estado, reiteramos a solicitação de revogação do referido decreto, ficando à disposição para esclarecimentos.

Cordialmente,

Profª Drª Lia Zanotta Machado
Presidente da ABA (Gestão 2017/2018)

Assessoria Especial em Meio Ambiente de Apoio à Presidência da ABA

Comissão de Assuntos Indígenas – ABA

Comissão de Direitos Humanos – ABA

Comitê Laudos Antropológicos – ABA

Comitê Povos Tradicionais, Meio Ambiente e Grandes Projetos – ABA

Comitê Quilombos – ABA

 

Comments (3)

  1. O Decreto em questão é ação meramente administrativa do Governo do Estado, destinado exclusivamente ao ordenamento interno para o recebimento dos pedidos de consultas públicas já recebidos e buscando dar agilidade ao processo.
    A ausência de um ente específico resultou no envio de solicitações de realização de Consultas Públicas a diversos órgãos e instâncias do Governo do Estado (Casa Civil, SEJUDH, SEDEME e outros). Assim, o Decreto explicita a importância de instituir “… Grupo de Estudos incumbido de sugerir normas procedimentais voltadas à realização de consultas Prévias, Livres e Informadas aos povos e populações tradicionais.” e dois considerandos não deixam margens de dúvidas sobre essa intenção reforçados pelo Artigo 1º (grifos nossos):

    “Considerando o previsto na Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), acerca da necessidade de se consultar, mediante procedimentos apropriados, os povos e populações tradicionais sobre as medidas administrativas ou legislativas que possam afetá-los diretamente;

    Considerando a necessidade de se estabelecer normas, no âmbito do Estado, aos procedimentos para a realização das consultas aos povos e populações tradicionais potencialmente atingidos por medidas administrativas ou atos legais que interfiram, em qualquer nível de impacto, com o cotidiano daquela(s) comunidade(s) potencialmente afetada(s); ”
    Art. 1º Fica instituído o Grupo de Estudos de Consultas Prévias, Livres e Informadas aos povos e populações tradicionais, com os seguintes objetivos:

    I – reunir informações técnicas, jurídicas e metodológicas para subsidiar a elaboração do Plano Estadual de Consultas Prévias, Livres e Informadas, observando os termos da Convenção nº 169 da OIT/2002, e demais regramentos legais;

    II – solicitar e reunir protocolos de consultas dos povos e populações tradicionais, para compor o Plano Estadual de Consultas Prévias, Livres e Informadas;

    III – propor ao Governador do Estado o Plano Estadual de Consultas Prévias, Livres e Informadas, que será aprovado por meio de Decreto;

    IV – sugerir e articular com a Secretaria de Estado de Comunicação (SECOM), mecanismos de publicidade do Plano Estadual de Consultas Prévias, Livres e Informadas para a sociedade, de forma clara e acessível.

    O Decreto prevê exclusivamente o ordenamento interno do recebimento das propostas (são mais de uma dezena) e a apropriação coletiva pelos órgãos diretamente responsáveis de todos os fundamentos da Convenção 169 e dos direitos inerentes às comunidades tradicionais.

    O grupo instituído no Decreto tem sua atribuição definida com clareza:

    ” Art. 3º Compete ao Coordenador do Grupo de Estudos:

    I – convocar e presidir as reuniões;

    II – coordenar a coleta e compilar as informações técnicas, jurídicas e metodológicas para a elaboração do Plano;

    III – elaborar, em conjunto com os demais integrantes do Grupo e eventuais terceiros interessados ou convidados, o Plano Estadual de Consultas Prévias, Livres e Informadas;

    IV – articular com a SECOM os mecanismos de divulgação impressa, digital e virtual do conteúdo do Plano Estadual de Consultas Prévias, Livres e Informadas;

    V – deliberar sobre as medidas necessárias ao fiel cumprimento das finalidades do Grupo de Estudos.”.

    E tem sua existência e prazos definidos para cumprir o que foi determinado:

    “Art. 4º O Grupo de Estudos terá 15 (quinze) dias para apresentar ao Governador do Estado a proposta de Plano Estadual de Consultas Prévias, Livres e Informadas, contados a partir da publicação do ato que designar os representantes e respectivos suplentes que o integram, podendo ser tal prazo prorrogado por igual período, mediante justificativa fundamentada do seu Coordenador.

    Parágrafo único. Uma vez apresentado o Plano a que se refere o caput deste artigo, extinguir-se-á o Grupo de Estudos instituído por este Decreto.”

    Não há dúvida alguma que este ordenamento refere-se às atividades do Grupo, que tem a obrigação de cumprir as determinações do Governador, definindo, inclusive um Plano de datas para a realização das Consultas já solicitadas e aquelas que, por decisão do Governo, serão realizadas.
    O Decreto não disciplina a participação das comunidades tradicionais, tendo em vista que isto está plenamente definido na Convenção 169, que, inclusive, já teve sua única aplicação no Brasil, através de ação do Governo do Pará, em 2012, ao realiza-la, com a parceria do MPF-PA.
    Atenciosamente

    Adelina Braglia
    Núcleo de Apoio aos Povos Indígenas, Comunidades Negras e Remanescentes de Quilombos do Governo do Estado do Pará – NUPINQ

  2. Apoio a revogação imediata de qualquer lei que descrimine o índio ou comunidades indígenas, qualquer tipo de discriminação é crime, divulgar é o dever de todo brasileiro, que o MPF tome ciência e providencias sobre o assunto.

  3. Apoio o protesto contra decisão do Governo do Pará de estabelecer normas para Consulta Prévia ignorando protocolos e sem ouvir Povos Indígenas.

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