Por Gabriel Brito, no Correio a Cidadania
Apesar das propagandas do governo, a crise prossegue galopante e o tecido social brasileiro continua em corrosão. Talvez a expressão mais visível, o Rio de Janeiro abre capítulo inédito na história da Nova República e recebe a intervenção federal na Segurança Pública, que visa dispor do Exército em áreas mais pauperizadas. Sobre isso, conversamos com a vereadora Marielle Franco, criada no complexo de bairros da Maré, região com vasto histórico de militarização e, por outro lado, organização social e comunitária.
“Discute-se com poucos elementos. Mas trabalho com dois paralelos. A insensibilidade e o desrespeito com o favelado e também os próprios policiais. O Braga Neto (nomeado chefe da intervenção federal) estava de férias. O mesmo grupo governa o Rio desde 2007, o ex-secretário Roberto Sá (exonerado nesta segunda, 19 de fevereiro) seguia a linha do anterior, Mariano Beltrame, que tinha algum nível de prestígio, se podemos dizer assim, pelo menos para quem via de fora. Temos autoridades que ficam sabendo das coisas pela imprensa. A insensibilidade e desrespeito se dirigem a todos os moradores da cidade”, criticou.
Além de argumentar o caráter falacioso de mais essa intervenção militar, a entrevista ressalta a insensibilidade de órgãos políticos e midiáticos na abordagem no tema, muitas vezes focados no debate técnico-jurídico e pouco ciosos da noção de que, para quem mora em certas áreas, pouca diferença faz, dado que o Estado militarizado e o próprio exército em suas áreas é uma tradição.
“Intervenção militar é farsa. E não é conversa de hashtag. É farsa mesmo. Tem a ver com a imagem da cúpula da segurança pública, com a salvação do PMDB, tem relação com a indústria do armamentismo… Há uma série de fatores que me levam a essa convicção. Uma ação midiática. Não à toa o Temer se reuniu com seu time de marqueteiros para avaliar os impactos do anúncio da intervenção, saiu nos jornais”, atacou.
Marielle também destacou a descrença da cidadania carioca na medida, por mais que alguns setores sociais continuem a prestigiar tal tipo de ação, talvez por mero desespero. De todo modo, reitera, como tantas vozes, que o abandono social num estado que se entregou completamente à mercantilização da sociedade, e agora está quebrado, é a grande explicação do quadro.
“Mesmo sendo redundante, tem a negação de direitos a esta população, claro. Meu exemplo concreto, também sobre os moradores da Maré: em 1997, 98, quando começaram os cursinhos pré-vestibular, a proporção de alunos universitários no local era de 1% da população, igual o número de funcionários do tráfico. Hoje, temos cerca de 10% da população local na universidade, mas graças a cursinhos populares e comunitários promovidos pela sociedade civil, não por políticas públicas”, resumiu.
A entrevista completa com Marielle Franco pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Em primeiro lugar, como analisa a intervenção do governo federal na segurança pública do Rio de Janeiro?
Marielle Franco: Com receio e preocupação. Já senti na prática o que é dormir e acordar com barulho de tanque, revistas e diversas violações de direitos, o que nos faz, favelados e faveladas, ter muita apreensão. Não só pela perspectiva do debate político e teórico. Na Maré, que é minha casa, meu lugar de vida, foram 14 meses de ocupação da Força Nacional na época das Olimpíadas. Despreparo, violação e violência foram a rotina.
Além disso, tem a questão da descontinuidade da política, um ponto importante. Foram 14 meses, com avanço pra cima do varejo do tráfico armado e recuo da parte deles, mas a posteriori não houve nenhum tipo de continuidade. O foco no varejo não resolve.
A população da Maré mais uma vez se vê sob o jugo de muitos fuzis, seja das Forças Armadas, da PM ou do crime. É um elemento que vulnerabiliza quem mora lá. E a política pública de segurança, ao invés de pensar numa perspectiva inclusiva, cidadã, com alternativas ao varejo da droga, infelizmente chega com a mão forte do general. Por isso vejo tudo com muito receio.
Correio da Cidadania: O que você viu com os próprios olhos nestes primeiros dias de intervenção?
Marielle Franco: Sei que a pergunta não visa o aspecto técnico por si só, mas 2018 é um ano eleitoral. Se considerarmos as ocupações do Complexo do Alemão ou da Maré, vemos que foram em anos eleitorais. O primeiro sentimento que podemos tirar das ruas é o reflexo pelo estado do Rio, em todos os aspectos que precisamos dar conta: servidores sem salários, um sistema de transporte que não funciona, uma cidade e região metropolitana que não têm condições de dar garantias de direitos sociais a seus moradores… Tivemos recentemente duas ou três chuvas com alagamentos pela cidade. Enfim, existe uma preocupação em torno da grande política a respeito de como lidar com todo esse contexto.
No entanto, objetivamente, já temos alguns reflexos. É cedo para uma avaliação definitiva, mas precisamos pensar na diferença entre o Decreto de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e este processo de intervenção federal, num estado da dimensão do Rio, enquanto as operações ocorrem. Vivemos a operação na favela da Maré, mas também na Cidade de Deus, por meio de forças militares que já atuavam quando começou a vigorar o GLO, que entra na discussão do momento.
Agora, tais operações parecem ter mais apelo e legitimidade perante a sociedade, mas não há uma mudança tão aparente em termos de circulação na cidade. Não dá pra ver se as pessoas estão circulando mais ou menos, se sentindo melhores, se há garantias de que os índices de letalidade vão diminuir. Até porque não é a partir daí que a intervenção se dá.
De todo modo, o sentimento de insegurança é generalizado e nas favelas é ainda maior. E o que estamos vendo, nas áreas pobres da cidade, é o abuso, as ações totalmente inócuas no combate à violência – aliás, são elas próprias violentas e inconstitucionais -, como revistar mochila das crianças e fotografar cidadãos. Além de não coibir a criminalidade, criminaliza a pobreza. Armas e drogas não brotam nas favelas. Os que as financiam, e lucram com o mercado da criminalidade, estão bem longe dali.
Correio da Cidadania: O que pensa das discussões técnico-políticas que tomam conta dos noticiários principais? Para quem vive nos locais ocupados pelo exército tem muita diferença em relação a outras incursões militares, como as já mencionadas, isto é, não chega a ser altamente insensível uma apreciação meramente técnica dos acontecimentos?
Marielle Franco: Acho que sim. Discute-se com poucos elementos. Mas trabalho com dois paralelos. A insensibilidade e o desrespeito com o favelado e também os próprios policiais. O Braga Neto (nomeado chefe da intervenção federal) estava de férias. O mesmo grupo governa o Rio desde 2007, o ex-secretário Roberto Sá (exonerado nesta segunda, 19 de fevereiro) seguia a linha do anterior, Mariano Beltrame, que tinha algum nível de prestígio, se podemos dizer assim, pelo menos para quem via de fora. Temos autoridades que ficam sabendo das coisas pela imprensa. A insensibilidade e desrespeito se dirigem a todos os moradores da cidade.
Foi feita uma enquete com duas perguntas, a primeira se a pessoa era contra ou a favor da intervenção, a segunda sobre se acreditava nos seus resultados. De um dia pra outro a aprovação já tinha caído de 80% pra 60%.
Há desrespeito e insensibilidade, sim, mas quem já viveu o confronto sabe que alguns corpos da cidade são mais desrespeitados. Portanto, o debate da sensibilidade não existe porque esses corpos não são vistos como pessoas passíveis de respeitabilidade. A abordagem aqui colocada é boa, pois também diz respeito ao próprio oficialato, aos agentes da segurança pública que também deveriam ter direito a outra política pública de segurança.
Correio da Cidadania: Que resultados você considera mais prováveis para esta medida?
Marielle Franco: Eu prefiro ir pelo otimismo: que consigamos manter o processo democrático de 2018 em curso e as forças de segurança entendam que não há solução sem diálogo com profissionais da área, praças, policiais civis, moradores de áreas ocupadas, sociedade civil organizada.
Ao não se solucionar o problema e a intervenção se consolidar como algo que não resolve, só o diálogo poderá resolver.
Intervenção militar é farsa. E não é conversa de hashtag. É farsa mesmo. Tem a ver com a imagem da cúpula da segurança pública, com a salvação do PMDB, tem relação com a indústria do armamentismo… Há uma série de fatores que me levam a essa convicção. Uma ação midiática. Não à toa o Temer se reuniu com seu time de marqueteiros para avaliar os impactos do anúncio da intervenção, saiu nos jornais.
Nós da Maré, em toda sua extensão, desde o Caju, na fundação Oswaldo Cruz, até o final, em Ramos, tínhamos dois batalhões, o 24º BIP (Batalhão de Infantaria Blindada, do Exército), e o Batalhão de Polícia Militar, separados por uma distância de uns 500 metros, além do CPOR (Centro de Preparação de Oficiais da Reserva).
Um deles é bem perto da Avenida Brasil, com o qual convivo desde que me entendo por gente. Já fui em formatura de amigos que depois de cumprirem serviço militar tiveram ali suas cerimônias.
Assim, vi de perto como é o Exército ou o batalhão ocupar por tanto tempo esse espaço. Além do mais, a convivência entre eles é apenas tácita e territorial, sem interação. Portanto, a ocupação em si dos espaços não deve resolver a questão, como sempre vimos.
Correio da Cidadania: Como fica posicionado o governo Pezão nesta situação com traços inéditos, ao menos em termos formais político-jurídicos?
Marielle Franco: Olha, o Fora Pezão só perde para o Fora Temer. Ampliando um pouco a visão, o processo de decretar calamidade não deveria partir apenas da questão da segurança, deveria abarcar vários âmbitos, como a Universidade. O Rio está em frangalhos, sem recursos e governado por quem não tem legitimidade.
Assim, Pezão dá uma cartada, pois sabe como mexer as peças do tabuleiro, no sentido de se aproveitar do medo num momento em que as pessoas se resguardam cada vez mais, pois da zona norte à zona sul estamos sempre na iminência de confronto e tiroteios, dentro e fora das favelas. Estamos sempre sob ameaça da perda de bens, como carros e celulares, pra não falar da própria vida… Ele aproveita tudo isso e dá uma tacada de mestre, por assim dizer, pois usa o medo das pessoas, já que uma parcela da sociedade, infelizmente, ainda acredita em tal tipo de solução.
Precisamos de responsabilidade com o processo histórico, ou seja, analisar as intervenções militares e ocupações em épocas eleitorais, quais as saídas e legitimidade de um governo que sofre pedidos de impeachment e deve salários a servidores. O décimo terceiro de 2017 não foi pago ainda. O orçamento da segurança de 2017 tem zero reais em investimentos de qualificação dos profissionais da segurança. E o sujeito ainda decide por uma intervenção.
Assim, Pezão usa o senso comum pra respirar um pouco. Bem de acordo com a história do PMDB, faz um movimento de cúpula, que leva a cidade à falência e depois joga a culpa no outro, como se Pezão não fosse vice do Cabral. Neste movimento todo, ele consegue respirar e ganhar tempo, avançando um pouco no próprio imaginário da população do Rio, infelizmente.
Mas espero que não só na prática como também com os elementos como a corrupção, relações políticas com Moreira Franco, Cabral, Eduardo Cunha, o estado do RJ compreenda a jogada política e eleitoreira. Serve para o PMDB respirar, mas vulnerabiliza toda a população.
Correio da Cidadania: No âmbito político federal, o que pensa da ideia de Michel Temer de criar o Ministério da Segurança Pública, que absorveria algumas prerrogativas do Ministério da Justiça, ou nomear um ministro extraordinário caso a nova pasta não se efetive?
Marielle Franco: Segue a mesma linha da resposta anterior: aproveitar o debate da segurança pra se salvar e apostar em algum Jungmann da vida pra candidato, ou ainda se salvar e reverter sua imagem. Também se deve ao momento de conservadorismo atroz que vivemos, que faz Bolsonaro avançar nas pesquisas.
A onda da política de direitos humanos, liberdades, construídas nos últimos anos, falando de racismo, igualdade de gênero, avanço de coisas como o Programa Nacional de Direitos Humanos, que sob o governo do PT, mesmo com todas as críticas, avançaram, agora cede lugar ao conservadorismo que quer negar tudo como solução pra crise.
Não tem mais ministério de Direitos Humanos ou das Mulheres, mas querem criar um Ministério de Segurança que trabalharia apenas pela lógica armamentista. Em suma, é só mais uma jogada.
Correio da Cidadania: O que comenta da entrevista do general Eduardo Villas-Boas, a dizer “temos que agir com a garantia de que não haverá outra Comissão da Verdade”?
Marielle Franco: Ele só pede licença pra violar. O próprio informe do Exército apresenta a ideia de que as instituições democráticas, se atuarem com sinergia e acompanhamento, podem comprometer sua atuação. É quase a linha Beltrame, “pra fazer omelete tem de quebrar ovos”, “podemos ter perdas, mas são necessárias pra manter a ordem”.
Enfim, não podemos aceitar nem o discurso puro da ordem e nem o da licença pra tudo. O general quer o que, licença pra torturar e desaparecer? Pois as Comissões da Verdade trabalham também a questão do monitoramento de dados, da informação, coisas sobre as quais sempre se quis negar acesso.
Ele quer se desobrigar de prestar contas, quer se despreocupar das relações sociais mais amplas? É muito preocupante. O general quer licença pra violar.
Correio da Cidadania: Considerando a euforia econômica que o RJ viveu nos últimos anos, como lidar com este momento? Como se chegou tão fundo na crise, com desdobramentos de violência tão alarmantes?
Marielle Franco: Passa pela ausência e leilão do Estado, passa pela compactuação com grupos criminosos… Se pegarmos o debate da violência, passa pelo tráfico, pela disputa de grupos pelo seu comando, passa também pelas milícias, já que existe um debate moral a respeito do que faz alguns agentes da polícia entrarem em facções de milicianos. Há ainda a questão da regulamentação do bico do policial, o não aperfeiçoamento dos profissionais, o debate hierárquico entre as polícias…
E, mesmo sendo redundante, tem a negação de direitos a esta população, claro. Meu exemplo concreto, também sobre os moradores da Maré: em 1997, 98, quando começaram os cursinhos pré-vestibular, a proporção de alunos universitários no local era de 1% da população, igual o número de funcionários do tráfico. Hoje, temos cerca de 10% da população local na universidade, mas graças a cursinhos populares e comunitários promovidos pela sociedade civil, não por políticas públicas.
Há 10, 15, 20 anos compreendemos que era importante a população ampliar seu repertório, avançar economicamente, ampliar seu espectro cultural… É aí que falo do leilão de um Estado ausente nas áreas faveladas e periféricas. A Maré tem batalhão, Região Administrativa, Detran, uma série de órgãos. O que justifica caveirão, como vimos nesta quinta, e toda essa operação onde se incide no varejo do tráfico de drogas se o Estado está ali presente? Aliás, presente de que modo?
Essa crise passa pelo não investimento e aperfeiçoamento da segurança pública e seus profissionais, pela negação do direito a uma polícia cidadã ou o que viesse a ser isso. A Maré não teve UPP, por exemplo. Porém, olhamos a Rocinha e vemos a desmoralização através do caso Amarildo. Ou para o Caju, onde parte da quadrilha que levava arma para o tráfico era da própria UPP local.
Enfim, tem a ausência e leilão do Estado, e também sua desorganização interna como elementos que levam ao acirramento da crise.
Fora isso, existem outros debates, da modernidade, do ter, do pertencer, de qual corpo passa pela favela e é o elemento suspeito, ou quando e por que não é elemento suspeito. Se você está no Catete ou no Largo do Machado, numa região central ou sul da cidade, com uma parcela da sociedade a dispor de um número maior de viaturas, haverá uma determinada sensação de segurança. As mesmas viaturas em certas áreas passam a sensação oposta, de insegurança.
A ausência do direito à cidade para tantos setores da população também faz parte do processo de acirramento da crise social que nos levou ao ponto em que chegamos.
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Foto que foi capa da Folha mostrou militares revistando mochilas de crianças de escola pública no Rio. Foto: Leo Correa /AP