Por: Patricia Fachin – IHU On-Line
A sensação de “insegurança extraordinária” que se sente no Rio de Janeiro “é a característica de um Estado falido e de um governo federal que não consegue pensar em soluções que efetivamente interessem à população”. A constatação é do geógrafo e fundador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, Jailson de Souza e Silva. Na entrevista a seguir, concedida por WhatsApp à IHU On-Line, o pesquisador explica que o estado de calamidade a que chegou o Rio de Janeiro é consequência do “descompromisso das forças de Estado com a saúde da população das periferias e favelas, o que foi gerando um processo cada vez maior de controle de grandes espaços da cidade por grupos criminosos”, e do fato de o estado ter sido “dominado por uma quadrilha que chegou ao poder em todos os níveis: no Legislativo, no Executivo, no Tribunal de Contas e na Justiça (…) foi isso que gerou esse processo de descontrole”.
Na avaliação dele, a intervenção federal por meio das Forças Armadas, decretada pelo presidente Temer no dia 16 de fevereiro, não resolverá o problema, porque “o que a polícia tem feito e o exército tenta fazer é recuperar o controle para si, e não construir uma nova forma de regulação do espaço público numa perspectiva republicana. E isso tende a não dar certo, porque embora seja possível conter esses grupos por um determinado tempo, assim que as forças do Estado saem desses territórios, eles voltam a ser ocupados com mais força e mais peso pelos criminosos”. E acrescenta: “É isso que vai acontecer agora dada essa perspectiva eleitoreira que sustenta esse processo. Essa intervenção vai até dezembro, e pode conter o processo de violência até lá, mas, depois que a intervenção terminar, a crise volta e o controle volta com mais intensidade para os grupos criminosos”.
Jailson de Souza e Silva diz ainda que o principal desafio no Rio de Janeiro “é construir um Estado que destine efetivamente os seus recursos para a maioria da população. Essa é uma lógica que não está presente neste governo, então nosso desafio agora é reconstruir um projeto de Estado que seja republicano”.
Jailson de Souza e Silva é graduado em Geografia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, mestre em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro – PUC-Rio e doutor em Sociologia da Educação pela mesma universidade. Também realizou seu pós-doutorado no John Jay College of Criminal Justice, em New York. É professor associado da Universidade Federal Fluminense – UFF e fundador do Observatório de Favelas do Rio de Janeiro. Foi secretário de Educação de Nova Iguaçu e subsecretário executivo da Secretaria Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos do Rio de Janeiro.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Na sua avaliação, quais foram os fatores que levaram a essa situação de insegurança no Rio de Janeiro?
Jailson de Souza e Silva – A primeira coisa a deixar claro é que a Constituição Federal garante o direito à segurança pública para todos os cidadãos, mas isso nunca aconteceu no Brasil nem no Rio de Janeiro. Historicamente há um descompromisso das forças de Estado com a saúde da população das periferias e favelas, o que foi gerando um processo cada vez maior de controle de grandes espaços da cidade por grupos criminosos. Quando falo de grupos criminosos, não falo apenas de grupos envolvidos com tráfico de drogas, mas das milícias, que são grupos criados por setores da banda podre da polícia, agentes penitenciários e bombeiros. Então, estamos falando de forças do Estado que ajudaram a criar um grupo que hoje tem cada vez mais peso e presença no estado do Rio de Janeiro. Isso levou à situação que temos hoje, de descontrole total no Rio de Janeiro.
IHU On-Line – A intervenção federal no Rio de Janeiro, tal como os governos federal e estadual propõem, é ou não necessária neste momento? Por quê?
Jailson de Souza e Silva – Certamente não é fazendo mais do mesmo, ou seja, recorrer às Forças Armadas, que se resolverá o problema da segurança pública. As Forças Armadas têm como papel fundamental a defesa nacional, e defesa nacional é algo bem distinto de segurança pública. Utilizar as Forças Armadas significa simplesmente utilizar homens preparados para situações de guerra para lidarem com um problema complexo e profundo, que tem que ser tratado com políticas muito mais sofisticadas, seja do ponto de vista tecnológico para prevenir crimes, seja com condições efetivas de regulação das polícias, seja com novas políticas em relação às drogas, porque está comprovado que a guerra às drogas está em descrédito em todos os lugares do mundo. Inclusive a ONU está discutindo efetivamente esse tipo de política adotada na década de 1970. Os próprios EUA, que foram os precursores desse tipo de política, estão revendo essa forma de tratamento da questão das drogas.
Efetivamente, em que vai funcionar a intervenção militar no Rio de Janeiro? Apenas vai gerar um custo financeiro incrível: já foram gastos 600 milhões apenas na região da Maré, e aquela intervenção teve resultados pífios, ou seja, a situação da Maré foi agravada depois da saída das Forças Armadas. Então, como o exército não pode ficar na rua indefinidamente, não tem nenhum cabimento esse tipo de estratégia, porque as forças policiais não estão preparadas minimamente para um processo de enfrentamento cotidiano.
Eu lembro que um dia na Maré vi dez tanques passando pela rua e numa viela uns meninos estavam vendendo drogas. Além disso, como se usa esse tipo de força dentro de um espaço em que moram 40 mil moradores? Isso não tem nenhum sentido.
IHU On-Line – O senhor tem informações sobre como a população das favelas e demais bairros do Rio de Janeiro têm reagido à intervenção militar?
Jailson de Souza e Silva – Se vive um quadro de insegurança e desgoverno no Rio de Janeiro. Nesse quadro, a única coisa que efetivamente teria que acontecer é a renúncia desse governo do PMDB que foi eleito e não cumpriu com seus deveres. Somente com a renúncia desse governo poderíamos avançar num pacto com o governo federal, mas estamos lidando com dois governos absolutamente incapazes, que estão utilizando o exército como instrumento para seus interesses políticos imediatos. Mas essa política não tem cabimento, não tem futuro e para a população só resta o desespero.
Uma parcela significativa da população não está apoiando a intervenção, mas está apoiando qualquer solução que possa servir para tratar o problema da segurança pública no Rio de Janeiro. A sensação de insegurança hoje no Rio é extraordinária. A população da favela que hoje é mais atingida pela violência, mas também a população dos bairros mais ricos da cidade, todos sentem uma sensação de insegurança ao andar pelo Rio de Janeiro. Isso é a característica de um Estado falido e de um governo federal que não consegue pensar em soluções que efetivamente interessem à população.
Então, é um equívoco essa intervenção, porque ela não tem nenhuma chance de dar certo. E esse não é um juízo de valor, mas de fato, porque as experiências anteriores mostraram que o exército não tem meios de fazer cumprir essa obrigação constitucional relacionada à segurança. Ao mesmo tempo estamos entrando num processo de crise em que as armas e as forças de violência terminam sendo os instrumentos para lidar com um problema dessa envergadura.
IHU On-Line – O que seria uma alternativa à intervenção das Forças Armadas neste momento?
Jailson de Souza e Silva – Em primeiro lugar, efetivamente, precisamos ter um governo, então, o governo que aí está deveria renunciar. Num segundo momento, deveríamos efetivamente pensar em um programa de segurança pública que levante questões e razões estruturantes da crise atual. A primeira delas é a estrutura da polícia, porque com a polícia que temos hoje, com falta de coordenação e ação, não temos chance de resolver o problema. Em segundo lugar, seria preciso enfrentar um conluio que existe entre forças da polícia com os grupos criminosos, como as milícias, porque existe hoje um convívio profundamente pernicioso para as forças democráticas entre setores da polícia com determinados grupos criminosos. O terceiro é enfrentar a questão das drogas, porque não tem cabimento continuar com a política de guerra às drogas, que tem se revelado um fracasso absoluto. Nos EUA se avança numa perspectiva de descriminalização da maconha, mas no Brasil, em que há mais de 61 mil pessoas assassinadas por ano e 700 mil presos — e muitas dessas situações são provocadas por conta da guerra às drogas —, ainda se mantém a mesma política.
Então é preciso buscar formas mais inteligentes para lidar com grupos criminosos, que utilize tecnologia, não penalize a população das favelas e periferias e permita construir uma política de segurança com metas, objetivos claros e com participação popular, porque sem a participação popular não tem a menor chance de qualquer política de segurança pública funcionar.
IHU On-Line – Muitos especialistas em segurança pública têm citado a intervenção militar da Maré como exemplo para criticar a intervenção atual. Quais foram os principais erros e acertos dessa intervenção e suas consequências?
Jailson de Souza e Silva – A intervenção na Maré foi desastrosa porque todo o seu pressuposto foi militar, ou seja, tentar conter e controlar o território sem nenhuma perspectiva de construir uma forma diferenciada de regulação do espaço público. O que a polícia tem feito e o exército tenta fazer é recuperar o controle para si, e não construir uma nova forma de regulação do espaço público numa perspectiva republicana. E isso tende a não dar certo, porque embora seja possível conter esses grupos por um determinado tempo, assim que as forças do Estado saem desses territórios, eles voltam a ser ocupados com mais força e mais peso pelos criminosos. É isso que vai acontecer agora dada essa perspectiva eleitoreira que sustenta esse processo. Essa intervenção vai até dezembro, e pode conter o processo de violência até lá, mas, depois que a intervenção terminar, a crise volta e o controle volta com mais intensidade para os grupos criminosos.
IHU On-Line – Muitos especialistas em segurança que são contra a medida de intervenção federal afirmam que o Estado precisa focar em políticas sociais estruturais. O que significa apostar em políticas sociais estruturais?
Jailson de Souza e Silva – A lógica central de políticas sociais tem que estar vinculada a um conjunto de ações em torno de um projeto de cidade. Então, quando falamos em políticas sociais, temos que falar do reconhecimento do cidadão como sujeito pleno de direito. Nesse sentido, as políticas passam por investimento em educação, cultura, habitação, garantias básicas para que a pessoa possa viver seu cotidiano. A segurança pública, nesse sentido, é um direito fundamental do cidadão e pressupõe que todos que vivem na cidade têm o direito de ir e vir, têm suas casas protegidas, mas isso não tem sido garantido.
Então, não adianta ter uma política social e ao mesmo tempo ter uma política de segurança que se sustente na lógica do extermínio, da guerra de extermínio como temos hoje, da guerra às drogas, que transformam as favelas. Não pode haver uma dicotomia entre os pressupostos que sustentam as políticas sociais e os pressupostos que sustentam as políticas de segurança pública. E essa é uma coisa que nunca se conseguiu, de fato, construir no Rio de Janeiro.
Além disso, o Rio de Janeiro também foi dominado por uma quadrilha que chegou ao poder em todos os níveis: no Legislativo, no Executivo, no Tribunal de Contas e na Justiça. Então, cada vez mais houve um processo de apropriação dos recursos estatais e públicos do Estado por grupos específicos e foi isso que gerou esse processo de descontrole. Assim, há também um processo de apropriação e corrupção. Nesse sentido, nosso desafio hoje é construir um Estado que destine efetivamente os seus recursos para a maioria da população. Essa é uma lógica que não está presente neste governo, então nosso desafio agora é reconstruir um projeto de Estado que seja republicano.
IHU On-Line – O presidente Michel Temer anunciou a criação de um Ministério da Segurança Pública para auxiliar na segurança dos estados. Como avalia essa medida?
Jailson de Souza e Silva – Se fala há muito tempo da criação de uma política federal de intervenção na segurança pública, mas o problema fundamental é a lógica como isso tem sido feito. Quando se fala de uma política, se fala de uma política integrada, que envolva ações no campo da Justiça, no campo penitenciário, no campo da construção de uma política cidadã, como já foi proposto no governo Lula. Então, efetivamente o que existe hoje é um processo de uma lógica política orientando a construção da estratégia de política pública, e isso é sempre perigoso. Principalmente, o que é mais perigoso nisso tudo é essa lógica militar na concepção que está sendo construída nesse projeto.
Efetivamente o que o governo Temer está fazendo é militarizar a questão da segurança e isso é muito grave. No México no ano passado aconteceu uma experiência com o governo Felipe Calderón, que foi um verdadeiro desastre, porque o país registrou em 2017 o maior número de assassinatos da sua história. Então, não me parece que um Ministério feito a partir de uma lógica eleitoral e principalmente capitaneado por militares seja o melhor caminho.
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Foto que foi capa da Folha mostrou militares revistando mochilas de crianças de escola pública no Rio. Foto: Leo Correa /AP