Flavio Edler: Enfraquecimento do Estado gera insegurança social e busca de identidades fixas, com disputas mediadas pela ciência

Luciana Conti – Fiocruz

O historiador Flavio Edler recebeu o blog do CEE-Fiocruz, em seu gabinete de trabalho na Casa de Oswaldo Cruz, para uma conversa sobre como o fundamentalismo religioso tem repercutido sobre os debates políticos no Brasil. Foram quase duas horas de conversa, em que ele discorreu sobre como o atual momento do capitalismo mundial, com mudanças estruturais que enfraquecem o Estado e põem em risco o bem-estar de milhões de pessoas, tem gerado insegurança social e provocado nos indivíduos a necessidade de afirmar sua identidade sobre o outro, o diferente.

“Nesse quadro, o discurso do ódio é um discurso que apazígua: ao odiar alguém, reorganizamos nossa própria identidade, projetando nossas ansiedades em um inimigo imaginário”, disse o professor, lembrando que o ataque ao outro marcou o debate público em importantes momentos históricos. Mas, no contemporâneo, lembra ele, essa afirmação das identidades não se dá pelo fortalecimento de Estados nacionais, ideologias políticas ou discursos religiosos totalizantes, pelo contrário, convive com múltiplos pertencimentos e com as demandas desses grupos ao Estado – enfraquecido pela globalização – por direitos. No meio dessa disputa, Edler vê a ciência produzindo discursos para  legitimar posições, mesmo aquelas que nos parecem, à primeira vista, conflitantes com a racionalidade científica e que, no mundo globalizado, são difundidas em rede.

Leia a entrevista a seguir.

Temos visto recentemente o acirramento de posições no Brasil, com manifestações de ódio contra indivíduos e grupos sociais, que têm marcado os debates políticos. Como senhor vê o avanço desses discursos, alimentados muitas vezes pelo obscurantismo religioso, no cenário político brasileiro?

Estamos vivendo, em escala planetária, um momento de mudanças estruturais que têm a ver com os fenômenos interligados da globalização, a supremacia do capital financeiro e a terceira revolução tecnológica, que impõem aos estados novas formas de organização do trabalho e uma nova pauta sobre os direitos sociais e humanos. Eventos que estão intimamente vinculados à perda da capacidade de intervenção dos Estados Nacionais, diante da força do capitalismo financeiro, para definir os rumos da democracia. Nesse quadro, aumenta o desânimo com a democracia liberal e se fortalece o discurso populista da esquerda e da direita, gerando um ambiente cultural de incertezas, de medo e isolamento, e, em contrapartida, de busca pela a própria identidade. Um contexto de precariedade das relações humanas que faz com que grupos mais desamparados corram atrás de identidades fixas, como defesa contra a instabilidade da sociedade contemporânea. Temos, então, a busca por identidades fictícias, religiosas ou não, que encontra o conservadorismo à direita e à esquerda; a reconstrução de tradições; e a busca de pontos fixos no mapa social, para que possamos definir quem somos e quem é o outro, que se transforma quase sempre em ameaça. Vivemos uma perda de sentidos, com o declínio das grandes orientações que davam sentido à vida, historicamente ligadas às religiões ou às ideologias políticas; um momento de crise, de mudanças, que alguns sociólogos chamariam de estado de anomia social. O que é claro é que presenciamos um novo arranjo societário do capitalismo mundial, sob o viés do capitalismo financeiro, que nos impõe, com a volatilidade dos capitais, a perda do poder dos Estados Nacionais e de direitos sociais historicamente vinculados às experiências democráticas.

Nesse quadro de medo e insegurança, o discurso do ódio é um discurso que apazigua: ao odiar alguém, reorganizamos nossa própria identidade, projetando nossas ansiedades em um inimigo imaginário

São mudanças profundas que criam um clima de medo e insegurança. Uma das maneiras de lidar com o medo é jogá-lo para fora, para o outro. Nesse quadro, o discurso do ódio é um discurso que apazigua: ao odiar alguém, reorganizamos nossa própria identidade, projetando nossas ansiedades em um inimigo imaginário. Na Idade Média, a bruxa era usada para que as pessoas jogassem o medo para o outro. Assim foi com os judeus, os muçulmanos, os estrangeiros, sempre os outros. Imputar no outro, no estranho, as causas do que estamos vivendo é uma maneira de criar uma identidade, de viver a sensação de comunidade, de filiação, de pertencimento e de purificação.

Não corremos riscos com esse avanço dos discursos de ódio?

Acho que não, embora sempre possa ressurgir a tentação totalitária. Algumas palavras do vocabulário político típico do século XX emergiram com força. A gente vive um momento em que pessoas são acusadas de comunismo, quando o comunismo fracassou. A ideia do fascismo ressurgiu. Todo mundo com posição mais conservadora é tachado de fascista, e isso também tem a ver com o discurso do ódio. Temos que chamar atenção para alguns elementos presentes nos discursos modernos, que estão enfraquecendo nossa democracia liberal. A democracia tem a ver com a ideia do fortalecimento e ampliação dos direitos civis, políticos e sociais, a partir da participação dos cidadãos nos processos de deliberação dos arranjos sociais e da repartição da riqueza. Vivemos, durante a segunda metade do século XX, uma conquista de novos direitos, novos sujeitos, novas subjetividades, e estamos vendo uma crise, que não sei se vai dar em totalitarismo. Os totalitarismos apostavam na ideia de um grande arranjo societário de matriz nacional. Aparentemente não é isso que temos hoje, apesar dos discursos populistas e do retorno a uma religiosidade, também fortemente marcada por identidades tradicionais. Mas ao que parece, o grande movimento não é de um fortalecimento dos estados nacionais, é do enfraquecimento deles.

Nas sociedades tradicionais, as identidades eram fortes, conformadas em um sistema global partilhado por todos. Nas sociedades contemporâneas, isso não mais existe. Como se dá, então, essa afirmação das identidades?

Pois é, ao mesmo tempo em que estamos vivendo esse retorno, essa busca de identidades comuns imaginárias, nossa experiência comum contemporânea é marcada pela pulverização das identidades. As pessoas se identificam com múltiplos pertencimentos e querem ver respeitadas suas próprias identidades dinâmicas, o que cria uma relação complexa entre multiculturalismo e democracia, já que cada uma dessas identidades vai demandar do Estado determinados direitos. Certamente vivemos um momento de distopia, e vários pensadores atuais têm chamado atenção para o fato de termos perdido as grandes linhas de força que marcavam algum sentido: seja a ideia do socialismo, os arranjos sociais democratas, as ideais da democracia liberal ou da religião secular do progresso. Essa distopia convive com a ideia dada pelo pensamento religioso fundamentalista de retornar a um ponto fixo, ditado pelas leis do Alcorão ou pela Bíblia.

As pessoas se identificam com múltiplos pertencimentos e querem ver respeitadas suas próprias identidades dinâmicas, o que cria uma relação complexa entre multiculturalismo e democracia

Mas esse retorno é possível? Como fazê-lo sem colocar sob ameaça a racionalidade e o discurso da ciência, fundamentais na identidade do homem ocidental moderno?

A historiografia tradicional da ciência de matriz positivista foi marcada por forte tensão entre ciência e religião. Há exemplos clássicos nesse sentido, como a controvérsia em torno do geocentrismo e do heliocentrismo e a rejeição das igrejas anglicana e católica à ideia de evolucionismo de Darwin. Grande parte dos debates rotulados como embates entre ciência e religião, a rigor, não eram o choque de uma visão materialista contra uma visão religiosa. Galileu era tão crente no Deus cristão quando o papa e Darwin sentiu-se atormentado com as implicações revolucionárias de suas teorias diante de suas convicções religiosas. Os discursos de ambos não eram essencialmente antirreligiosos, mas contra dogmas estabelecidos pela religião institucionalizada. Do mesmo modo, as correntes religiosas hegemônicas não eram contra toda e qualquer novidade científica, mas contra os enunciados científicos que ameaçavam ou punham em xeque algumas verdades estabelecidas. No seio do catolicismo, nos séculos XVI e XVII, havia posições diferentes em relação às ideias do geocentrismo e heliocentrismo, mas elas só sofreram sanções quando ameaçaram os dogmas da igreja.  A mesma coisa aconteceu com o Darwinismo. Só a partir do século XVII é que a religião e a ciência se separam no Ocidente, e se vai construindo esse novo espaço social formado pelas academias e sociedades científicas juntamente com novas formas de se produzir e validar o conhecimento científico. Mas é, a partir do século XIX que as instituições científicas, em especial as universidades reformadas, alcançam grau de autoridade moral antes ocupado pela metafísica, para falar em nome da natureza. Esse novo discurso vai ter como suporte a ideia de método científico universal.

A rigor, o que cada vez mais se mostra é que há relações muito fortes entre ciência, isto é, os modos de se produzir e validar os enunciados científicos, e os interesses, valores e sensibilidades dos vários grupos sociais que lhe dão suporte

Esse enorme prestígio do discurso científico, geralmente baseado em representações positivistas, só será objeto de revisões sistemáticas no ambiente universitário, na segunda metade do século XX, com a crítica epistemológica sobre o método e as certezas científicas, derrubando a ideia de verdade universal, que vem a ser substituída por várias perspectivas distintas da verdade. Os discursos, no campo da epistemologia e principalmente os estudos sociais da ciência, que tiveram grande crescimento a partir dos anos 1990, ajudaram muito a enfraquecer a arquitetura da autoridade da ciência e chamaram atenção para a idealização de que a apartava da esfera da política, da religião ou da metafísica. A rigor, o que cada vez mais se mostra é que há relações muito fortes entre ciência, isto é, os modos de se produzir e validar os enunciados científicos, e os interesses, valores e sensibilidades dos vários grupos sociais – as redes sociotécnicas – que lhe dão suporte.

Mas se, por um lado, vivemos em um mundo mais cético diante a racionalidade científica, onde os próprios cientistas têm menos fé na verdade científica, encarando-a como um empreendimento humano falível e permeável às mesmas vicissitudes que minaram as ambições da razão metafísica, por outro, o currículo educacional emulado pelo pensamento liberal e corrente no senso comum mantém a antiga representação positivista do método científico como um conjunto de virtudes epistemológicas, que a tornariam impermeável aos interesses, ideologias ou idiossincrasias humanas. Não perdemos essa confiança, mas a própria ciência está no meio de muitas batalhas sobre o entendimento científico do mundo.

Como podemos, então, explicar manifestações que recorrem ao imaginário da Idade Média, de um mundo em que a razão não era princípio organizador, com a queima de bonecas representando bruxas, para fazer oposição a determinada ideia porque ela se opõe à religiosidade de determinado grupo?

Estamos nos referindo a Judith Butler, que veio fazer uma palestra em São Paulo e foi hostilizada. A denúncia de matriz conservadora que afirma que ela prega uma ideologia de gênero e o uso dessa terminologia ideologia de gênero é um discurso que não nasceu aqui. Ele perpassa os Estados Unidos, é um discurso mundial, e, portanto, existem redes mundiais, preparadas para criar um discurso conservador bastante articulado e persuasivo.

Redes reais? Na internet? Organizações?

Exatamente isso. O discurso conservador está muito articulado e internacionalizado, com a ação pulverizadora das mídias contemporâneas. Experimente fazer uma busca no Youtube com essa expressão (ideologia de gênero) e você constatará a intensa propaganda de setores tradicionalistas da Igreja Católica e das igrejas neopentecostais, ditas evangélicas entre nós. Têm estudiosos da comunicação que mostram essa internacionalização dos discursos através das mídias sociais. Não há novidade aqui. Tal como a direita, a esquerda comunista também atuava assim, com a Internacional Comunista, no período da Guerra Fria. Isso vem pela universidade, pelas correntes políticas mais orgânicas, com o currículo universitário, pelas religiões e igrejas, sempre conectadas e articuladas, criando um território transnacional. Tem gente muito perspicaz construindo esse discurso.

A cruzada conservadora atual inverteu os termos do debate, apresentando-se como aliada da verdadeira ciência e compatível com o discurso religioso tradicional. Assim, denuncia o feminismo e o movimento LGBT como carentes de fundamento científico, pois ligados a inconfessáveis desejos e interesses

Voltando ao ponto, a avaliação dos papéis sociais desempenhados por homens e mulheres, como sendo inerentes às suas condições biológicas alcança novas formas no século XIX nos principais centros capitalistas. O desenvolvimento das grandes indústrias e a absorção de milhões de mulheres e crianças à rotina massacrante das fábricas foram fatores decisivos para a mudança dos papéis sociais típicos das famílias de origem camponesa. Do mesmo modo, o desenvolvimento de uma classe média urbana, consumidora de novas mercadorias ligadas a estilos de vida emergentes, minaram as representações clássicas sobre os atributos próprios ao feminino e ao masculino. Ao contrário do que se divulga por aí, os pensadores e moralistas liberais como Jeremy Bentham e John Stuart Mill – e não apenas setores socialistas – estiveram à frente da luta pela igualdade de direitos entre os sexos e da denúncia das ideologias tradicionais que aprisionavam as mulheres em estereótipos ligados à condição feminina no mundo patriarcal.

A cruzada conservadora atual inverteu os termos do debate, apresentando-se como aliada da verdadeira ciência e compatível com o discurso religioso tradicional. Assim, denuncia o feminismo e o movimento LGBT como carentes de fundamento científico, pois ligados a inconfessáveis desejos e interesses. Valem-se, portanto, da mesma retórica que pretendeu demarcar o espaço da ciência, em oposição à ideologia, no caso, a de gênero. Baseada numa visão criacionista da natureza, sancionada não pela ciência atual – embora utilize um verniz científico e conte com a colaboração de cientistas – mas pelo mundo descrito na Bíblia, que prescreve que Deus criou o homem e a mulher com papéis sexuais e sociais fixos, esse argumento preceitua que a ciência deve revelar uma verdade compatível com a virtude, a bondade e a justiça divinas.

Nessa visão, a ciência deve sempre confirmar a obra divina. Há também um elogio tácito da ciência nos cultos evangélicos em que a ideia central é a benção e o milagre. Um caso recorrente é o do paciente desenganado. É fundamental que ele chegue com um documento médico que ateste que está desenganado. A ciência não pode ser renegada, já que é ela que legitima o milagre. Se no curso natural das coisas, aquela pessoa iria morrer, vem a ideia da intervenção da graça divina. Isso joga luz em uma discussão muito presente no século XVII sobre o estatuto de Deus, em que Deus criou o mundo segundo um plano, regido pelas leis naturais, e se ausentou – uma visão que encontrou inúmeros adeptos – ou se Deus está presente em todos os acontecimentos.  Se Deus está sempre presente no mundo não há milagre, mas se Deus se ausenta há um momento em que ele interfere e faz a graça.

O problema é quando, em nome da ciência, emergem discursos que vão incidir sobre dogmas estabelecidos, como nos casos de Copérnico ou Galileu. Na discussão em pauta, questiona-se se há uma base natural que delimite o comportamento sexual do homem e mulher, se os papéis sociais historicamente atribuídos a ambos os gêneros em nossa cultura estão prescritos pela natureza, em outras palavras, se anatomia é destino. Os porta-vozes dos grupos que querem ver reconhecida e legitimada sua orientação sexual não convencional e questionam os comportamentos e papéis socialmente atribuídos aos gêneros masculino e feminino, têm questionado a suposta identidade entre sexo e gênero e o fazem em nome da ciência. Aí vai haver um embate forte porque você vai contrariar alguma coisa que está na Bíblia, nos livros de anatomia e fisiologia reprodutiva e nos manuais de donas de casa que vinculam papéis sociais claramente estabelecidos com a morfologia sexual. Mais uma vez, a autoridade da ciência é acionada por ambas as partes da querela e com diferentes propósitos.

Esse arranjo narrativo de que estamos voltando à Idade Média, por exemplo, não faz sentido. Acontece que hoje estamos atualizando vários discursos que sempre estiveram presentes

O senhor está querendo dizer que essa disputa entre ciência e religião vem desde o nascimento da ciência moderna e que nunca se resolveu? O que vivemos hoje não seria novo? Poderia ser entendido como um retorno ao passado?

Não, pelo contrário. Estamos sempre vivendo o presente, jamais um repeteco do passado. Esse arranjo narrativo de que estamos voltando à Idade Média, por exemplo, não faz sentido. Acontece que hoje estamos atualizando vários discursos que sempre estiveram presentes. Para mim, por exemplo, nunca houve a ciência ou a revolução científica, simplesmente porque sempre existiram múltiplos processos de produzir e legitimar o conhecimento sobre o mundo natural. A ciência não é uma entidade ou instituição sem história, ela tem várias formas e muitos falam em seu nome. Ela é um produto multifacetário, em que várias áreas do conhecimento confirmam ou negam crenças estabelecidas, propondo novas explicações e descrições dos processos naturais e sociais. A ciência muitas vezes apenas confirma o que todos acreditam que existe, não é necessariamente inovadora ou heterodoxa. A ciência é polifônica. Esse discurso que amplia a margem das liberdades e das identidades, uma grande conquista da afirmação da liberdade humana, por exemplo, tem forte respaldo na comunidade cientifica. Ele é produzido no ambiente universitário, que de certa maneira fala em nome da ciência. Mas quero chamar atenção de que há outros ambientes da universidade que são acionados por quem está insatisfeito com esse discurso. Setores da neurociência, por exemplo, são acionados contra esse discurso. Daí vem a ideia de que as novas fronteiras da sexualidade não têm respaldo na ciência, que é ideologia de gênero, já que aparentemente a ciência real estaria estabelecendo o contrário. Não estaria confirmando essa pluralidade de gênero.

A ciência, como o senhor está se referindo a ela, se entende em um campo ampliado, que abarca Filosofia, História e as Ciências Sociais?

Não. Esse é outro problema. A História até meados os anos 1980, reivindicava fortemente seu pertencimento à ciência, como, por exemplo, a Sociologia fez na virada do século XIX para o XX. O francês Emile Durkheim tentou dar à Sociologia um estatuto de ciência, opondo-a à História, que era uma narrativa de fatos. Hoje, os historiadores rejeitam essa ideia de que falam em nome de um discurso universal, embora a verdade e a objetividade sejam valores prezados e perseguidos pela disciplina. Durante o impeachment da presidenta Dilma Roussef, por exemplo, muito se falou que a história iria julgar os fatos, o que é um discurso retórico-político importante, mas não faz sentido. Ninguém será julgado em definitivo pela história, já que não há um grande tribunal da história situado além da história. A rigor a ciência é polifônica, repito, não tem mais um centro único, não existe um tribunal para dizer se é assim ou não. Você sempre encontrará controvérsia no seio das especialidades científicas, que cada vez mais são marcadas pela controvérsia. Muitos consensos, um bom acervo de fatos estabelecidos, mas na ponta há muita controvérsia. Sempre foi assim e continua assim, com a diferença de que hoje os cientistas são mais céticos em relação aos seus arsenais teórico-metodológicos, menos confiantes do que eram no passado.

O escritor inglês Ian McEwan disse, ao comentar seu romance ‘A balada de Adam Henry’, sobre o envolvimento de uma juíza com um adolescente testemunha de Jeová, que se nega a receber uma doação de sangue, que a literatura não está aqui para resolver nada, mas para levantar questões. A ciência nos dá respostas para uma situação como a do romance? Como lidar com uma decisão movida pela fé, quando a ciência a desaconselha?

Sem entrar no caso específico do romance, podemos lembrar que, em nome da ciência, produziu-se, ao longo do século XX, um discurso autoritário. Matou-se mais em nome da razão científica do que nas guerras religiosas. A eugenia e suas várias versões é um exemplo disso. Ela era defendida pelos mais relevantes cientistas da primeira metade do século XX, principalmente aquelas ideias que diziam ser fundamental proibir a reprodução de cegos, surdos, mudos e de degenerados mentais ou de raças inferiores. Tudo isso era um discurso produzido a partir das principais instituições científicas da época, na Alemanha, que, naquele contexto, era tão relevante para a ciência como os Estados Unidos são hoje em dia. Aquilo que parecia apenas circunscrito ao nazismo, era um discurso com credenciais científicas muito difundido e cultuado no ambiente universitário. Teve forte penetração nos Estados Unidos e na França e em todo o ocidente. E foram os católicos que se opuseram às teses eugênicas, que fizeram uma forte ofensiva contra esse determinismo racial e biológico. Aqui no Brasil a Igreja se antepôs fortemente ao discurso eugênico radical. Então, temos que rever essa dicotomia de bons e maus. Os cientistas já assumiram diferentes perspectivas e proferiram, também, os maiores disparates como tradutores da autoridade moral da natureza, em oposição a outros discursos religiosos denunciados como ultrapassados, sem lastro na ciência.

Em nome da biologia evolucionista e da genética, forjou-se um discurso contra os médicos humanistas e filantropos que estavam preocupados em colocar nos hospitais os doentes, os débeis mentais nos hospícios. Para a eugenia, essa ética religiosa, humanística, era extemporânea. A ética moderna da ciência defendia eliminar esses indivíduos, porque a rigor tinham uma vida que não valia a pena ser vivida, que, no mundo natural, seria eliminada pela concorrência com os mais adaptados. A assistência humanista e a ideia de direitos humanos universais eram vistas como fundadas em preceitos éticos metafísicos, portanto, ultrapassados. A preservação dos degenerados, por meios artificiais, estaria atrasando o aprimoramento da espécie humana e, ainda, causaria um ônus econômico para todo mundo. Esse era o discurso feito em nome da ciência, o que nos lembra da necessidade de termos muito cuidado com os maniqueísmos, tal como defendem as correntes filosóficas que distinguem o ser do dever ser, os fatos das normas, em outras palavras, a verdade dos valores.

É verdade, temos a bomba atômica sempre para nos lembrar que a ciência não é em si o bem. Mas a ameaça que o discurso fundamentalista religioso traz em si, me parece estar para além disso, ameaçando muitas vezes a liberdade do pensamento humano e sua expressão.

O que temos que defender é a democracia liberal [sic], o estado laico, o respeito às diferenças e às garantias individuais, como marcos de nossa civilização. Mais recentemente, com o avanço da genética e da tecnologia, muitos setores da academia começaram a entender que era necessário regular o desenvolvimento da pesquisa, já que a pesquisa moderna é muito marcada pela experimentação e pela transformação da natureza. Então, por exemplo, cria-se a bioética, uma disciplina que não tem fundamento científico, mas éticos-morais que vão definir até onde e como podem ser desenvolvidas as pesquisas em uma área que começa a mexer com os fundamentos da vida, tal como a conhecemos.

Isso para dizer que essa ideia de que a ciência é livre é falsa. A ciência nunca foi livre das amarras sociais. A ciência ganhou, em vários momentos, autoridade, mas também comprometeu alguns dos fundamentos da liberdade, do que a gente passou a chamar de direitos humanos. Se tem um fundamento pelo qual devemos lutar, é a ideia dos direitos humanos, e da pauta da democracia liberal [sic]: o estado laico, o direito da ciência se desenvolver livremente sem ser pautada por atores externos, o ideal de uma ciência alto-regulada, mas não a ponto de desrespeitar os preceitos constitucionais que a todos constrange.

Não vivemos num país de total liberdade, nossa constituição não nos garante total liberdade, não existe possibilidade de sairmos por aí proclamando, por exemplo, a queima dos negros, o linchamento dos judeus, a justiça privada, sem o aparato legal, a perseguição a gays.  Não temos total liberdade de expressão. Não são apenas as igrejas que se preocupam com esses limites. O que interessa saber é quem nos põe limites. As constituições liberais modernas criaram mecanismos para garantir a convivência múltipla, o confronto de ideias, a liberdade de expressão. As tensões a que a ciência é submetida e os eventuais limites que a sociedade vier a estabelecer fazem parte do jogo democrático.

A rigor quem está se sentindo ameaçado são os setores conservadores. É um movimento reativo. Essa agenda transcende a ciência

O senhor vê neste momento, em que a democracia está em crise e há maior insegurança social, uma ameaça real à liberdade da ciência?

Até agora não. Mas, alguns estudiosos têm chamado a atenção para mudanças estruturais no contemporâneo, que impactam a arquitetura do mundo pós-Segunda Guerra Mundial, o período em que a social democracia se consolidou, com o avanço dos direitos civis, políticos e sociais. Vivemos hoje um forte questionamento desses direitos sociais que começam a ser denunciados como privilégio e não mais defendidos como direito. A própria ideia de direitos humanos universais, uma invenção do século XVIII e que alcançou novos conteúdos no pós-guerra vem sofrendo ataques. Um movimento que ameaça o que viemos consolidando nos últimos 70 anos. A ciência, por sua vez, tem tido nesse período muita autonomia, liberdade de pesquisa, de publicação. A ciência, como é feita no mundo todo, mas principalmente em países com características iguais às do nosso, às expensas do Estado, tem se organizado em uma esfera relativamente autônoma. Assim, no momento em se que está questionando o tamanho do Estado, em que avançam as teses neoliberais, os recursos públicos direcionados para ciência estão se tornando escassos. Mas é claro que há setores que se opõem à ciência. Na década de 40, um livro de um padre jesuíta, Leonel Franca, endereçado contra a civilização e contra a ciência, denunciava que ela criava um mundo sem alma e nos exortava a voltar às bases da religião. Agora, estamos vivendo um retorno a essa retórica, mas ela não é mais direcionada à ciência em geral, e sim à universidade, aos responsáveis por essa nova fronteira do lugar da morte e dos fundamentos e definição dos sexos e dos gêneros. A rigor quem está se sentindo ameaçado são os setores conservadores. É um movimento reativo. Essa agenda transcende a ciência. (*Colaborou Daiane Batista/CEE-Fiocruz)

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