Tribunal de Justiça reconhece ilicitude de provas obtidas a partir de quebra de sigilo médico e tranca ação penal contra mulher acusada de praticar aborto

Em seu voto, a relatora do habeas corpus, Desembargadora Kenarik Boujikian, reconheceu a inconstitucionalidade da criminalização do aborto

DP SP

Atendendo a pedido da Defensoria Pública de SP, o Tribunal de Justiça paulista (TJSP) determinou o trancamento da ação penal contra uma mulher de 21 anos que era acusada de ter praticado aborto. A Corte reconheceu que as provas utilizadas para incriminá-la eram ilícitas, pois foram obtidas após a médica que a atendeu num hospital público tê-la denunciado, em violação ao sigilo profissional.

A decisão foi proferida no dia 8 de março por maioria de votos pela 15ª Câmara de Direito Criminal. O pedido foi elaborado pelas Defensoras Públicas Ana Rita Souza Prata e Paula Sant’Anna Machado de Souza, Coordenadoras do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos da Mulher, e integra um conjunto de 30 habeas corpus impetrados em favor de mulheres acusadas criminalmente de aborto.

Os habeas corpus pedem o arquivamento das ações pelo crime do artigo 124 do Código Penal (“Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”), apontando que a criminalização do abortamento é incompatível com vários direitos fundamentais previstos na Constituição. Subsidiariamente, argumentam pela falta de justa causa para as ações penais, nulas em decorrência da violação do sigilo profissional por agentes de saúde. Outro argumento é a falta de provas sobre a relação de causalidade entre conduta da mulher e interrupção da gestação (saiba mais sobre os habeas corpus).

Decisão do TJSP

Em seu voto, a relatora do habeas corpus, Desembargadora Kenarik Boujikian, reconheceu a inconstitucionalidade da criminalização do aborto, mas apontou a impossibilidade de encaminhar o caso ao Órgão Especial do TJSP para análise de constitucionalidade, por ser a única na Câmara Criminal com tal entendimento. A Constituição prevê no artigo 97 que “somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público”.

A Desembargadora afirmou que o aborto é um gravíssimo problema de saúde que precisa ser enfrentado urgentemente pelo Estado brasileiro e pela sociedade, com foco na saúde da mulher. Ela ressaltou que o abortamento inseguro é uma das maiores causas de mortes de mulheres, especialmente as mais pobres, que sofrem com a seletividade penal. Isso porque a criminalização faz com que elas, em vez de buscarem atendimento no sistema público de saúde, optem por outras soluções por conta própria. Posteriormente, quando já estão em péssima situação física e emocional, comparecem ao serviço público e podem acabar denunciadas.

A Magistrada destacou também os julgamentos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 54 (autorização ao aborto em caso de feto anencéfalo) e no HC 124306 (inconstitucionalidade da criminalização do aborto no primeiro trimestre de gestação). Neste último, a 1ª Turma do STF decidiu que a criminalização do aborto é incompatível com direitos fundamentais da mulher, como direitos sexuais e reprodutivos, à autonomia, à integridade física e psíquica, entre outros.

Apesar da falta de votos suficientes na Câmara Criminal para levar a questão sobre a constitucionalidade ao Órgão Especial do TJSP, os Desembargadores seguiram por maioria de votos o entendimento da relatora segundo o qual não havia justa causa para a ação penal. A razão está no fato de a prova que deu início ao processo ser ilícita, já que surgiu a partir de informações que deveriam ser resguardadas pelo sigilo médico, violando-se também princípios constitucionais como a proteção à intimidade e a dignidade da pessoa humana.

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