Caso Lula: Jurista diz que prisão após segunda instância viola Constituição, por Leonardo Sakamoto

Blog do Sakamoto

”Esse debate que agora está sendo equivocadamente vinculado de maneira exclusiva ao ex-presidente Lula, no fundo, é sobre qual o limite do poder do Estado brasileiro para começar a punir uma pessoa.”

A opinião é de Alamiro Velludo Salvador Netto, professor titular do Departamento de Direito Penal, Medicina Forense e Criminologia da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Advogado criminalista, também é pesquisador visitante na Universidade de Salamanca (Espanha), na Universidade de Bolonha (Itália) e na Universidade Pompeu Fabra (Espanha).

Ele, que é contra a execução provisória de pena após sentença em segunda instância, falou ao blog sobre a possibilidade do STF de alterar essa interpretação – o que poderia garantir que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fique em liberdade até que os fim de seus recursos à condenação pelo juiz federal Sérgio Moro e a confirmação pelos desembargadores do Tribunal Regional Federal da 4a Região.

Para ele, Lula é mais um interessado, mas não o único, umas vez que a decisão afeta muitos brasileiros. ”Existe uma série de pessoas no Brasil que estão cumprindo penas antecipadas, ao meu ver, de forma contrária à Constituição.”

Para o professor, o Supremo acabou por legislar, ocupando funções do Congresso Nacional, ao permitir a prisão após segunda instância em 2016. Em sua análise, o conceito constitucional de ”trânsito em julgado” significa apenas e somente apenas ”a partir do momento em que sobre uma decisão não recai mais nenhuma possibilidade de recurso”. Ou seja, o STF exacerbou a decretar a segunda instância como momento de inicia a punição.

”O grande problema é quando o Judiciário, talvez atendendo ao clamor social, resolve passar por cima do texto legislativo e – mais do que isso – do texto da Constituição.”

A obra de Alamiro foi citada pelo desembargador João Pedro Gebran Neto em seu voto que condenou Lula no TRF4. Contudo, como reclamou em uma rede social na época, a citação de seu texto foi feita de forma descontextualizada. Ele defende a necessidade de que seja apontado o ato que vincula a uma vantagem recebida, ao contrário do que foi defendido pelo juiz Moro e pelos desembargadores.

Leiam a entrevista abaixo:

Você concorda com a interpretação vigente do Supremo Tribunal Federal, que permitiu a execução provisória da pena após condenação em segunda instância, mesmo com a defesa recorrendo a uma corte superior?

A decisão do Supremo Tribunal Federal foi muito questionada à época [fevereiro de 2016] não só pelos criminalistas, mas também pelo próprio ambiente acadêmico, pelos penalistas, processualistas, constitucionalistas. Porque a decisão que entende ser possível iniciar a execução provisória da pena a partir do encerramento da jurisdição dos tribunais em segunda instância, ou seja, os Tribunais de Justiça e os Tribunais Regionais Federais, viola o texto da própria Constituição Federal e o texto do Código de Processo Penal.

Porque, ao contrário de outros países, a exemplo da Espanha e da Itália, que falam simplesmente em garantir a presunção de inocência, no Brasil, a literalidade constitucional fala de trânsito em julgado. Trânsito em julgado é um conceito processual muito específico que significa ”a partir do momento em que sobre uma decisão não recai mais nenhuma possibilidade de recurso”.

Quando o Supremo Tribunal Federal, por 6 a 5, permitiu que as pessoas iniciassem a execução provisória após segunda instância, ali houve um movimento claramente contrário ao texto legal. Isso não significa que essa decisão seja boa ou ruim, mas que compete ao Parlamento, e exclusivamente ao Parlamento, na condição de poder constituinte, rever o posicionamento da opção legislativa brasileira. Mas não o Supremo.

Ao definir isso, o Supremo assumiu função do Congresso Nacional e legislou?

Parece-me que sim. Porque o conceito constitucional de trânsito em julgado, em que pese as interpretações que possam eventualmente ser dadas a ele, não significa ”antecipar execução de pena”. Pode ter sido uma opção ruim do constituinte brasileiro em 1988. Mas se era uma opção ruim, que fosse refeita ou rediscutida no âmbito parlamentar e não no âmbito do Supremo Tribunal Federal.

O Supremo pode rediscutir essa decisão por conta do ex-presidente Lula? E ela beneficiaria apenas políticos e empresários?

Quando o novo debate do Supremo Tribunal Federal ocorre em cima da discussão sobre o ex-presidente Lula dá a impressão que tudo se volta à questão de sua condenação. Mas existe uma série de pessoas no Brasil que estão nessas condições, que estão cumprindo penas antecipadas, pelo menos, ao meu ver, de forma contrária à Constituição.

É importante destacar que a decisão originária do Supremo Tribunal Federal sobre a prisão em segunda instância, em 2016, se deu no debate de um habeas corpus que julgava um roubo em Itapecerica da Serra. Portanto, não tinha nada haver com corrupção ou crime do colarinho branco [Um homem, filho de uma trabalhadora empregada doméstica e que trabalhava como assistente de garçom, foi acusado de roubar R$ 2600,00 de outra pessoa na rua e jurava inocência nesse município da Grande São Paulo].

O problema é se, de fato, a sociedade brasileira está disposta a romper com a dimensão de presunção da inocência. De romper com aquele pacto constitucional de 1988.

Antes do caso do ex-presidente Lula, os ministros Celso de Mello, Marco Aurélio Mello, Ricardo Lewandowski, José Dias Toffoli e Gilmar Mendes já concederam habeas corpus para condenados em segunda instância aguardarem em liberdade o final do processo. A impressão é que querem debater a questão.

Exatamente. O grande desafio da sociedade brasileira neste momento é compreender que esse debate sobre a execução antecipada da pena não se refere especificamente a uma pessoa, mas a um pacto federativo. O processo penal, acima de tudo, é um exercício civilizatório – de saber o dado momento em que tenho uma formação de culpa suficiente para que uma pessoa começar a execução de sua pena.

Posso, enquanto sociedade, chegar à conclusão que basta a segunda instância. Tudo bem, eu pessoalmente não acho a melhor solução, mas é possível desde que o Parlamento assim faça. O grande problema é quando o Judiciário, talvez atendendo ao clamor social, resolve passar por cima do texto legislativo e – mais do que isso – do texto da Constituição. Trânsito em julgado é sinônimo de decisão sobre qual não cabe qualquer recurso possível.

A situação não gera uma insegurança jurídica?

O Supremo disse o seguinte: posso iniciar o cumprimento da pena esgotada a segunda instância que confirma a condenação da primeira. Então, nós começamos a criar, no Brasil, uma certa celeuma. Por exemplo, o sujeito foi condenado à pena de multa na primeira instância e novamente na segunda. Ele paga desde logo? A jurisprudência diz que não. Ele foi condenado à pena restritiva de direitos na primeira instância e a decisão foi reafirmada na segunda. Ele já inicia, desde logo, a restrição de direitos? A jurisprudência diz que não. Então, virou uma espécie de atalho exclusivamente para uma antecipação de pena privativa de liberdade. Isso criou uma casuística. Imagino que isso cria um sentimento de insegurança jurídica.

Parece que é uma interpretação que leva muito em consideração um sentimento de impunidade da comunidade e muito pouco a própria harmonia do sistema jurídico. Até porque a harmonia do sistema jurídico só faria sentido se nós tivéssemos uma alteração legislativa do órgão competente, o Congresso Nacional.

Mas dados os altos índices de criminalidade, uma parte considerável da população apoia a medida sob a justificativa de garantir a punição.

Esse debate que agora está sendo equivocadamente vinculado de maneira exclusiva ao ex-presidente Lula, no fundo, é sobre qual o limite do poder do Estado brasileiro para começar a punir uma pessoa. Do ponto de vista social, é óbvio que a sociedade pode ter um sentimento de que é preciso cumprir a pena antes. É um sentimento até aceitável em razão da criminalidade brasileira. Mas esse tipo de sentimento tem que se infiltrar na racionalidade jurídica por meio de uma alteração legal e não por meio de uma decisão de uma corte constitucional, que – neste caso – entende contrariamente àquilo que o próprio texto constitucional diz.

Não dá para pautar um debate extremamente relevante como este como se fosse um favor para este ou aquele. O que está se discutindo são os limites do poder de punir do Estado, que é a razão da existência do sistema criminal desse século 18. Seria importante o Congresso se debruçar sobre isso. E talvez até perceber que, dado o anseio da sociedade brasileira por uma dimensão de antecipação de pena, por uma necessidade resposta sancionatória, antecipar. Tudo bem. Mas isso não compete ao Poder Judiciário.

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