No cinema, a luta do Jabuti contra a Anta na Amazônia

Por Vitor Taveira, no Século Diário

Os rios são as rodovias da Amazônia. Viajar por lá com uma câmera na mão e uma ideia na cabeça não gera então um “road movie”, mas um “boat movie”, como se denomina o filme O Jabuti e Anta, de Eliza Capai. A produção que circulou pelos principais festivais do país e está sendo exibida na TV pelo Canal Brasil, agora realiza seu projeto de distribuição social, incluindo uma sessão no Cine Metrópolis na próxima terça-feira (27), às 20 horas.

Na verdade, o ponto de partida do documentário é São Paulo, onde a cineasta capixaba construiu sua carreira. Da capital que sofria com a grande crise hídrica aos reservatórios localizados no interior do estado, um modelo em esgotamento dentro de um capitalismo que precisa de mais e mais energia. Então, dali Eliza e a equipe sobem nas canoas, barcos e botes para entender para onde vai essa expansão, a Amazônia, território tão sensível e importante para o equilíbrio do planeta.

O documentário vai buscar o que acontece onde as TVs e jornais quase não chegam, nas “zonas de sacrifício”, onde povos tradicionais precisam pagar com seu território para manter um sistema de consumo dos grandes centros. O rolo compressor do progresso.

São três histórias amazônicas de destruição e resistência. A primeira, a construção da mega usina hidrelétrica de Belo Monte. A segunda, a luta do povo Munduruku para manter seu território e impedir a construção de uma barragem no rio Tapajós. A terceira, a voz de Ruth Buendía, liderança ashaninka que conseguiu com a unidade de seu povo barrar um projeto binacional entre Brasil e Peru para construir uma hidrelétrica no Rio Ene, na amazônia peruana, com boa parte da energia sendo direcionada ao nosso país, que assim externalizaria os custos sociais e ambientais e ainda alimentaria uma grande contribuidora de campanhas políticas, uma senhora empreiteira de nome Odebrecht.

Um monstro grande que pisa forte a pobre inocência das gentes, como diz uma canção de Leon Gieco. Em entrevista, Eliza nos explica os enganos feitos por governos e empresas, por exemplo, com lideranças indígenas. Comunidades baseadas na cultura oral, no valor da palavra dita, tornam-se muitas vezes presas fáceis para a verborragia tecnocrática e eloquente com seus PowerPoints e contratos que nunca se cumprem. Mentem descaradamente. No caso Munduruku, a diretora conta que tiveram que mudar a estrutura social para fortalecer a luta, substituindo lideranças mais antigas por jovens já versados nas letras e nas estratégias de enganos cotidianos do mundo dos brancos.

A narração da obra é feita pela voz familiar da atriz Letícia Sabatella, que tem respeitável atuação e compromisso com as causas socioambientais. Reflete, na verdade, os pensamentos de Eliza, da produtora Carol Quintanilla e integrantes do Greenpeace que as acompanhavam. “É um encontro das reflexões e angústias das pessoas que viajavam. Era normal que no final do dia, depois de ouvir histórias terríveis desse descaso, do massacre ao respeito a essas pessoas que vivem outro estilo de vida, a gente se juntasse e não conseguisse parar de falar”, relata Eliza. É aí que a metralhadora de verdades acaba virando também contra nós mesmos.

Quanto daquela destruição não se dá para sustentar nosso modo de vida nas cidades? “O objetivo do filme é trazer para as pessoas dos grandes centros essas vozes, para que a gente entenda o que está em jogo quando falamos desses processos, para que questionemos, como povo, o que a gente quer e as uniões possíveis para isso. E também para que atualizemos nosso discurso a partir da própria realidade”.

À diretora, que teve seu primeiro contato com indígenas quando criança ao visitar as aldeias capixabas rodeadas de eucalipto, lhe parece possível associar a construção das hidrelétricas na Amazônia com a realidade do modelo de desenvolvimento de sua terra natal, com nossas grandes indústria de papel, siderurgia, petróleo, portos e outras.

“Está tudo dentro de um mesmo caminho de uma sociedade que privilegia o desenvolvimentismo e o consumismo em detrimento de um respeito por outras formas de vida e pelo planeta em que vivemos, como se tudo não estivesse entrelaçado”, comenta Eliza, sonhando que o filme possa ser levado a comunidades impactadas por estes empreendimentos no Espírito Santo, para que se inspirem nas histórias de lutas e resistências dos povos amazônicos para pensar suas próprias realidades.

De volta pra onde tudo começou

A exibição de O Jabuti e A Anta no Cine Metrópolis tem uma sabor mais que especial para Eliza Capai. Nos finais dos anos 90, ainda adolescente, saía do colégio em que estudava nas proximidades da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), almoçava nas redondezas e ficava para assistir sessões à tarde quando havia estreia. “Certa vez um funcionário do cinema perguntou se eu era professora do colégio, pois não era normal adolescentes irem sozinhas ao cinema”. E menos ainda num cinema alternativo…

Embora filmes de Eliza já tenham sido exibidos no cinema localizado na Ufes, é a primeira vez que a diretora estará presente à sessão, permitindo debater e também atualizar os fatos ocorridos desde as filmagens. “É uma emoção. No Metrópolis descobri meu gosto pelo cinema, foi minha primeira formação. Saí de lá para estudar jornalismo em São Paulo e saí da faculdade já trabalhando com documentários. Então sou muito grata”.

Ela lembra daquele incrível sentimento de sair do cinema e o filme não sair da mente, caminhando à noite rumo ao ponto de ônibus enquanto as histórias que passaram na tela seguiam se desenvolvendo em sua cabeça. “Isso tem muito a ver com a minha decisão de fazer filme, de expandir a realidade. Trabalho com filmes de viagem para permitir, como nesse caso, que alguém que não tenha possibilidade ou mesmo vontade de se meter num barco, viajar pela Amazônia, dormindo em redes, possa, mesmo sem viajar, sair do cinema sentindo que aquela realidade também faz parte da própria vida”.

Além das temáticas profundamente políticas, sociais, ambientais, uma marca da produção de Eliza Capai é seu engajamento em novas formas de distribuição para além dos circuitos tradicionais, como no caso do documentário #Resistência, sobre as ocupações secundaristas, em que o pré-lançamento foi realizado de forma independente mobilizando diversos coletivos, organizações, cineclubes e espaços culturais por todo Brasil.

A ideia agora é fazer o mesmo com O Jabuti e A Anta. O recurso recebido pela exibição no Canal Brasil foi investido para um projeto de distribuição social por meio da produtora Taturana. Na última semana passou pelo Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília e, agora, chega a Vitória. “A ideia é que pessoas sejam convidadas a organizar suas próprias sessões levando essa discussão para seus cantos e suas comunidades”.

Se alguém chegou ao fim do texto ainda se perguntando sobre o por quê do nome O Jabuti e a Anta, Eliza me disse que se eu publicasse estaria dando “spoiler”, pois a resposta aparece apenas no final do filme. Sem querer “spoilear” mas já “spoileando”, o nome tem relação com a cosmogonia do povo Munduruku e uma fala de um de seus líderes, numa metáfora da floresta que lembra a da luta entre Davi e Golias. Nas telas do Metrópolis, estará a oportunidade de conhecer melhor como funciona essa Anta que tudo destrói, e como inúmeros Jabutis amazônicos se organizam e resistem à própria morte.

SERVIÇO

Exibição do documentário O Jabuti e A Anta e debate com a diretora Eliza Capai
Data: 27/03 (terça-feira)
Horário: 20h
Local: Cine Metrópolis – Avenida Fernando Ferrari, Campus da Ufes em Goiabeiras

A menina Munduruku e seu macaquinho moram na Aldeia Sawre Muybu, no Estado do Pará. Se a Usina de São Luis do Tapajós for construída, a aldeia dela e muitas outras vão virar rio, vão desaparecer. Foto: Carol Quintanilha

 

Juarez Saw Munduruku é o cacique da Aldeia Sawre Muybu, no Estado do Pará. Enquanto gravávamos O Jabuti e a Anta, eles realizaram a autodemarcaçăo de seu território baseada em mapas e documentos do próprio governo. O objetivo é a homologação da terra de seu povo, o que barraria legalmente a construção da Usina de São Luis do Tapajós. Foto de Carol Quintanilha

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