Com plateia de seguidores, ódio se alastra pela internet

Redes sociais reproduzem uma sociedade violenta e punitivista, e 78% das pessoas se informam por elas

Por Litza Mattos, em O Tempo

Nas primeiras 42 horas após o assassinato da vereadora do Rio de Janeiro Marielle Franco (PSOL) e de seu motorista, Anderson Gomes, a internet foi inundada por uma enxurrada de comentários polarizados entre o ódio e a defesa dos direitos humanos. De acordo com o levantamento da Diretoria de Análise de Políticas Públicas da Fundação Getúlio Vargas (FGV-DAPP), somente no Twitter a notícia mobilizou 1,16 milhão de menções, superando o impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

A postagem mais compartilhada nesse período, com mais de 32 mil retuítes, rebate críticas direcionadas a Marielle, que muitas vezes tentam culpar a própria vítima por seu assassinato. Essa postagem faz coro com a maior parte das menções no debate, que levanta questionamentos a respeito das motivações da morte da vereadora, segundo a FGV-DAPP. Um deputado federal do DEM e uma desembargadora foram denunciados pela Associação Brasileira de Juristas pela Democracia (ABJD) ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pelos crimes de ódio cometidos nas redes sociais contra a vereadora.

Ataques racistas, misóginos, ameaças a outras pessoas e bullying, que agora se traduzem no termo “discurso do ódio”, também já foram analisados pelo escritor italiano Umberto Eco, morto em 2016. “As mídias sociais deram o direito à fala a uma legião de imbecis que, anteriormente, falavam só no bar, depois de uma taça de vinho, sem causar dano à coletividade. Diziam imediatamente a eles para calar a boca, enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio Nobel”, disse.

As redes sociais reproduzem o que acontece na própria sociedade “extremamente violenta e punitivista”, complementa o doutorando e mestre em ciência política pela USP, Rafael Moreira. Para ele, estamos atravessando processos de transformação social e cultural bastante amplos. “O empoderamento de categorias sociais que estavam excluídas gera medo. Não é à toa que esse ódio que a gente vê parte desse tipo de categorias e pessoas que têm um espaço de privilégio.”

Para a psicóloga clínica Stephanie Mascarenhas, na internet esse ódio parece ser mais abundante. Há uma falsa sensação de segurança na rede, junto com a possibilidade de nos escondermos. Ela também lembra que mecanismos como os algoritmos do Facebook, por exemplo, contribuem com a disseminação desse tipo de discurso.

Estudo. É latente a impressão de que a raiva predomina na internet e que postagens agressivas se disseminam mais rápido pelas redes sociais. Mas, de acordo com a FGV-DAPP, dentre as mais de 427 mil reações no Facebook referentes ao assassinato de Marielle, 75,49% foram de tristeza, 9,74% de raiva, 9,46% de amor, 2,67% de risadas e 2,64% de espanto. Mas o impacto dos posts negativos é maior.

A maioria dos brasileiros (78%) se informa pelas redes sociais, diz estudo da Advice Comunicação Corporativa – 42% admitem já ter compartilhado notícias falsas, e só 39% checam com frequência as notícias.

O casal de fotógrafos Luiz Áureo de Paula e Pamela Martins foi espancado em Araruama, no Rio de Janeiro, após um boato de que estariam sequestrando crianças viralizar no WhatsApp. Em maio de 2014, Fabiane Maria de Jesus foi morta em um linchamento no Guarujá, litoral paulista, depois de ser vítima de boato e confundida com uma suposta sequestradora de crianças.

O projeto Comunica que Muda (CqM), que monitora as redes sociais, mostra que foram capturadas quase 220 mil menções de ódio em 2017, contra as mais de 500 mil registradas em 2016. A diferença deve-se ao cenário de intolerância política no ano do impeachment de Dilma Rousseff. “O impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff em 2016 provavelmente levou a esse destaque, tendo, no ano passado, havido um certo cansaço para o debate político, mas que deve ressurgir em 2018, ano eleitoral”, analisa a jornalista e coordenadora geral do estudo, Bia Pereira.

A perspectiva de melhoria em longo prazo é também observada pela coordenadora do Observatório Permanente de Discursos de Ódio na Internet e professora da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), Rosane Leal da Silva. Segundo ela, além de esses usuários não estarem dispostos a repensar suas opiniões, o poder Judiciário, muito lentamente, começa a enquadrar o discurso de ódio como uma categoria jurídica.

“Aquele que é radical e que tem na sua constituição o desrespeito aos direitos humanos vai apenas acirrar isso na internet, porque é onde tem plateia e seguidores. Há um momento político bastante oportuno para isso”, diz.

Decisão da justiça

Liminar. Na sexta-feira, a juíza Márcia Holanda determinou ao Google e ao Youtube a retirada da internet de 16 vídeos que propagavam mentiras sobre Marielle Franco. A ação foi protocolada na quarta-feira por familiares dela.

Ilegais. A juíza diz que os vídeos “extrapolaram o que a Constituição fixou como limite ao direito de livremente se manifestar”, vinculando, sem provas, o nome de Marielle a “facções criminosas e tráfico ou imputações maliciosas sobre as suas bandeiras políticas”.

Falhas e efeitos legais desse comportamento

Segundo a advogada especialista em direito digital e proprietária da Truzzi Advogados, Gisele Truzzi, alguns mitos estão relacionados a acreditar que a internet é uma terra sem lei e que é impossível encontrar alguém que pratique crime eletrônico, especialmente porque algumas pessoas ainda confundem liberdade de expressão e discurso de ódio.

“São duas coisas completamente diferentes. Liberdade de expressão é uma garantia constitucional prevista na nossa Constituição Federal e está associada a sua liberdade de pensamento de opinião. Porém, essa opinião não pode ofender a terceiros resultando em calúnia, injúria ou difamação. Quando é muito excessiva ou é voltada a grupos sociais e determinadas minorias e tiver relacionada a questões de raça, etnia, crença ou localização geográfica, isso pode ser entendido como um discurso de ódio”, afirma Gisele.

Revenge porn, difamação, ciberbullying e ameaça são alguns dos crimes já tipificados no Código Penal brasileiro. “Quando enquadrados no crime de preconceito racial ou discriminação, a pena é prevista pelo artigo 20 da Lei 7.716. Incorre nesse crime não só quem pratica, mas também quem divulga, compartilha e incita esse tipo de conduta, podendo ser submetido à pena de reclusão de até quatro anos”, diz.

No entanto, nossa legislação ainda é falha em alguns casos. “Há a necessidade de uma reforma referente aos crimes de ódio para também abranger as questões relacionadas às ofensas à comunidade LGBT, pois, se for enquadrado como crime de ódio, a gravidade é maior e a pena certamente será maior”, diz a advogada Gisele Truzzi.

Foto: iStock

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