Ministros transformam STF em campo de várzea

Por João Filho, no The Intercept Brasil

Antigamente, os ministros do STF eram pouco conhecidos. Ninguém conhecia suas caras. Depois que as sessões passaram a ser televisionadas em 2002, passaram a ter grande visibilidade e ficaram mais próximos dos brasileiros. O trabalho do STF se tornou mais transparente e ajudou a população a conhecer melhor como funciona a Justiça no país. Por outro lado, os holofotes aguçaram os já normalmente inflados egos dos juízes que integram a mais alta corte do país. De qualquer forma, é melhor que seja assim.

Discussões acaloradas e destemperos de juízes são toleráveis. A toga não faz de ninguém um super-herói do equilíbrio e da sobriedade. Com a recente intensificação da judicialização da política, é até natural que os excessos aconteçam com mais frequência. Mas o que temos visto é que brigas de boteco no STF estão sendo mais recorrentes que o limite do tolerável.

Gilmar Mendes, por exemplo, o mais brigão dos ministros, se comporta como um capanga do Mato Grosso com certa regularidade — tanto no tribunal quanto fora dele. A treta que ele e Barroso travaram esta semana é mais uma que entrou para a história. O tratamento mútuo de “vossa excelência” não amenizou a agressividade e o baixo nível do bate-boca, apenas tornou tudo ainda mais ridículo, transformando o nobilíssimo tribunal no palco do programa João Kleber.

Não foi a primeira nem a segunda vez que os dois discutiram de forma agressiva. Barroso já chegou a dizer que Gilmar é leniente “em relação à criminalidade do colarinho branco” e que “não trabalha com a verdade”.Desta vez, porém, a coisa não se resumiu à diarreia verbal. Ambos fizeram acusações mútuas de ordem ética. Acusações gravíssimas que não podem ficar sem respostas.

Depois de chamar Gilmar de “pessoa horrível”, “mistura do mal com atraso e pitadas de psicopatia”, entre outros destemperos, Barroso acusou com todas as letras Mendes de estar “sempre atrás de algum interesse que não o da Justiça”.

Opa! Pera lá, Vossa Excelência! Uma acusação grave dessas, com transmissão ao vivo para todo o país, deve ser prontamente esclarecida. Temos um juiz do Supremo acusando outro de defender interesses obscuros. A população precisa saber quais são ou se Vossa Excelência apenas proferiu uma leviandade de boteco que não merece ser levada a sério — o que também seria grave. Se ficar comprovado que Gilmar não trabalha pela justiça, deve-se iniciar o processo de impeachment do ministro (já houve um pedido engavetado pelo STF) ou teremos um tribunal ainda mais sob suspeição.

Não é difícil imaginar sobre o que Barroso está falando. Gilmar tem uma ligação estreitíssima com PSDB e com o núcleo peemedebista alinhado a Michel Temer. Isso está evidenciado pelo comportamento do ministro tanto no tribunal quanto fora dele. O ministro abriu sua casa para oferecer jantar de aniversário para Serra, se encontrou secretamente com Temer às vésperas do impeachment, teve conversa suspeita com Aécio Neves por telefone e abriu seu palacete em Brasília para inúmeros jantares e churrascadas com a cúpula tucana e peemedebista. Mas jornalistas e políticos apontarem indícios de que Gilmar defende interesses particulares é uma coisa. Um ministro do Supremo fazer uma acusação clara e direta é outra. Pelo bem da democracia, Barroso tem a obrigação de formalizar a acusação, e não apenas jogá-la no ar, dando chilique como um adolescente que xinga muito no Twitter.

O valentão Gilmar, claro, não poderia ficar por baixo na treta. Em vez de se defender e pedir para o acusador explicitar claramente sua acusação, o crianção de toga rebateu o ataque com outro excelentíssimo ataque: “Eu vou recomendar ao ministro Barroso que feche o seu escritório de advocacia”— uma clara insinuação de que o seu antigo escritório obtém vantagens com seu mandato no STF.

Também podemos supor do que se trata. Após Dilma indicar seu nome ao Supremo, Barroso passou a propriedade do escritório para seu sobrinho que, menos de dois meses depois, fechou contrato milionário e sem licitação com a estatal Eletronorte. Há quem diga que o ex-escritório do ministro cresceu substancialmente após sua entrada no STF. A insinuação de Gilmar também é grave e não pode ficar por isso mesmo.

No dia seguinte, nenhum deles se retratou ou explicou do que se tratavam as acusações. Barroso se limitou a mandar cartinha para Carmen Lúcia afirmando ter se desligado do escritório antes da sua posse e que jamais atuou em processo patrocinado por seus sócios.

Durante a sessão em que a maioria dos ministro decidiu julgar o habeas corpus preventivo de Lula, Gilmar Mendes fez confissões que o afastariam do mandato em qualquer país no qual as instituições estejam funcionando normalmente.

Ao justificar o voto que beneficia Lula, Gilmar, na tentativa de bancar o isentão, afirmou sem nem corar:  “Difícil me imputar simpatia pelo PT”. Ou seja, o nobre magistrado confessa tranquilamente em plenário sua antipatia por um determinado partido político. É chocante ver a tranquilidade com que ele fala isso, sem nenhum compromisso com a imparcialidade (ou pelo menos com parecer imparcial) —  o requisito mais fundamental de um juiz.

Não satisfeito, o ministro ainda viria a completar o escárnio: “Dá para lembrar o clássico texto de Rui Barbosa: “se a lei cessa de proteger os nossos adversários, cessa virtualmente de nos proteger’”. Fala como se fosse adversário do réu, e não o juiz. É escandaloso.

Não nos enganemos: esse espírito republicano de fachada de Mendes não passa de álibi para quando for julgar os companheiros do seu time que estão sendo investigados. Falo daqueles políticos aos quais é fácil imputar a simpatia de Gilmar.

Apesar de setores da imprensa e da política afirmarem de forma recorrente que  “as instituições seguem funcionando normalmente”, o atual quadro grotesco do STF é em parte reflexo do excesso de judicialização da política e da fragilidade das instituições democráticas. As cada vez mais comuns cenas de várzea — com todo respeito aos campos de várzea — na principal corte do país aumentam a descrença da população na Justiça. Pesquisa feita pela FGV no final do ano passado revelou que apenas 24% confiam no STF. Nessa toada, a popularidade da mais alta corte do país alcançará a de Temer.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

vinte − dezesseis =