Contra a privatização da chuva e pela descolonização da rebeldia

Por Nilma Bentes(1)

A mercantilização/financeirização/precificação da água se inclui, a rigor, no processo de privatização da chuva. Será preciso dizer que a água é um bem absolutamente importante para a vida neste planeta, que inclui a nossa sobrevivência como seres humanos? Os aquíferos, os rios são formados pelas chuvas, então, toda a discussão do Fórum das Águas está ligada a isso. Por outro lado, a proposta do  Prof. Raúl Zibechi,  citada pela profa. Esperanza Martinez(2),  da necessidade de descolonização da rebeldia – principalmente na América Latina/AL –  deve ser buscada a todo custo, pois nós, a maioria da população desprivilegiada dessa AL e, aqui, particularizando a Amazônia brasileira, estamos sendo bombardeados por propagandas enganosas, sobretudo, veiculadas pela grande mídia financiada pelos negócios agro-mínero-madeireiro-pecuários dominados por corporações multi-transnacionais.

Parece um tanto ilógico  que se possa descolonizar qualquer coisa uma vez que se fala e se pensa através da língua do colonizador. Seria então só utopia descolonizar a rebeldia? Talvez sim, mas não custa tanto tentar, quando se procura atuar em outra lógica, que não seja, pelo menos, inteiramente eurocêntrica. E como seria isso? Talvez para além das preces a deuses, teríamos que, fugindo do eurocentrismo, buscar em povos originários/indígenas e nos saberes dos povos africanos negros traficados/escravizados, métodos de luta que os estão fazendo sobreviver apesar de genocídios físicos e culturais, nesses mais de quinhentos anos.

O desafio é enorme, mas nosso viver pode, sim, sim, pode, mas não deve se restringir somente ‘a durar’. Além de manter os já dispostos fisicamente, é preciso dar carne, osso e movimento real-concreto, ao contingente-gente que se alinha e protesta, nas redes sociais, contra a privatização dos bens comuns e contra outras barbáries de sociopatas. É preciso acreditar que o Amílcar Cabral estava um tanto enganado quando escreveu o poema Meu grito de revolta(3):

Quem é que não se lembra
Daquele grito que parecia trovão?!
– É que ontem/ Soltei meu grito de revolta.
Meu grito de revolta ecoou pelos vales mais longínquos da Terra,
Atravessou os mares e os oceanos,
Transpôs os Himalaias de todo o Mundo,
Não respeitou fronteiras
 E fez vibrar meu peito…
 Meu grito de revolta fez vibrar os peitos de todos os Homens,
Confraternizou todos os Homens/E transformou a Vida…
 … Ah! O meu grito de revolta que percorreu o Mundo,
Que não transpôs o Mundo,
O Mundo que sou eu!
Ah! O meu grito de revolta que feneceu lá longe,
Muito longe,
Na minha garganta!
Na garganta de todos os Homens

Amílcar se enganou porque seu grito (mesmo só de homens/machista), atravessou sim, mares e oceanos, muitas fronteiras e chegou até aqui, nesta  parte da  Amazônia profunda, onde, infelizmente,  os silos e  portos da Cargil, as balsas lotadas de madeira, as lojas de compra-se ouro, o enorme trânsito de pick-ups 4×4  hylux, mitsubishi, S 10, Ford Ranger e similares,  sinalizam o quanto a grande floresta está sendo destruída e o quanto avança a propaganda do uso da ‘infraestrutura natural’, que significa mercantilização/financeirização/precificação da natureza toda.

Penso não haver mais dúvida que (como afirmam alguns) sem os humanos os outros animais e os vegetais da Terra estariam mais confortáveis e – quem sabe – até felizes, mas nossa sina humana é tentar sobreviver aos males que causamos a nós mesmos e aos demais viventes.

Parece que os mais renomados cientistas ainda não sabem do que é composto o Universo nem como medir o tamanho, o volume, as velocidades internas e externas e a densidade das nuvens na Terra – inclusive as de chuvas -, então, cabe que aumentemos a entropia de nossos neurônios, ampliemos nossas sinapses, mesmo via preces atéias, para encontrar as invisíveis chaves das também invisíveis portas para derrotar o que agora alguns estão chamando  “lumpemburguesia” hegemônica (inter e nacional).

Assim, para evitar a total privatização da chuva e tentar descolonizar a rebeldia é preciso – mesmo que ainda agindo como colonizadas-, montar alianças absolutamente confiáveis em favor do ‘Bem Viver’ e tendo como base a DECLARAÇÃO FINAL DO FAMA – FÓRUM ALTERNATIVO MUNDIAL DAS ÁGUAS (2018), a qual, entre outros aspectos, denuncia, como estrutural,  o sistema hétero-patriarcal, racista e colonial. Mesmo reconhecendo ser um certo ´gargantismo´, ´panfletarismo´, minha utopia é ainda de inspiração malcolmxiana : “equidade, liberdade pra todos ou para ninguém”.

(1) Ativista heterodoxa, do Centro de Estudos e Defesa do Negro do Pará – CEDENPA
(2) Ver livro Democracia Acechada: tensiones y tendências em América Latina, fls.20
(3) http://www.didinho.org/Arquivo/apoesiadeamilcarcabral.htm

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