Do jejum à danação eterna: retratos do processo penal à brasileira

Por Bruno Bortolucci Baghim, no Justificando

Tweeta o Procurador da República: “4ª feira é o dia D da luta contra a corrupção na #lavajato. Uma derrota significará que a maior parte dos corruptos de diferentes partidos, por todo o país, jamais serão responsabilizados, na Lava Jato e além. O cenário não é bom. Estarei em jejum, oração e torcendo pelo país”.

A seguir, retweeta o Juiz Federal: “Caro irmão em Cristo, como cidadão brasileiro e temente a Deus, acompanhá-lo-ei em oração, em favor do nosso País e do nosso Povo”. 

Ambos são agentes públicos atuantes na famosa operação que há alguns anos domina o noticiário nacional. Falam do julgamento do Habeas Corpus do ex-presidente Lula pelo Supremo Tribunal Federal, no dia 04/04, em que a Corte novamente enfrentará a questão da prisão após a condenação em Segunda Instância, analisando o alcance da garantia – e cláusula pétrea – prevista no art. 5º, LVII, da Constituição Federal.

O presente texto não se presta a discutir o mérito do que será julgado e que vem há um bom tempo sendo discutido nos meios jurídicos.

Sigo firme e seguro ao lado dos que enxergam a Constituição Federal acima de todos, e que entendem que direitos e garantias fundamentais não podem ser suprimidos, especialmente os ligados à defesa da liberdade individual. É isso que nos deixa a salvo das vaidades e abusos dos membros de Poder, garantindo segurança jurídica e possibilidade de defesa.

Não se pode esquecer que qualquer um pode ser alvo de uma persecução penal injusta, e que quando isso ocorre, é aos direitos e garantias individuais que se agarram ferrenhamente até os mais moralistas críticos das liberdades fundamentais.

Retomando, aqui se busca refletir acerca das exortações das duas conhecidas pessoas que, transitoriamente, ocupam cargos públicos de relevância em nosso Sistema de Justiça, e que irão  jejuar e fazer oração em prol de nosso País.

Indiscutível que possuem o direito constitucional de se manifestarem, bem como de professarem sua fé. Isso é óbvio e precisa ser respeitado. Mas como agentes públicos que são, também se sujeitam ao controle de seus atos e manifestações, além de deverem respeito, acima de tudo, à Constituição.

E o que deixam transparecer os tweets dos respeitáveis e transitórios ocupantes de dois cargos públicos, para além da devoção cristã que tentam proclamar?

Em primeiro lugar, escancaram a visão que determinados agentes possuem acerca de sua função pública: a de que estariam em uma cruzada, uma guerra santa, uma verdadeira jornada messiânica na luta do bem contra o mal, reproduzindo uma lógica binária de que o mundo – e o Brasil –  é povoado unicamente por mocinhos e bandidos (estando eles ao lado dos mocinhos, claro), e ignorando as complexidades de uma sociedade marcada não só pela corrupção, mas também pela desigualdade, pela pobreza, pela concentração de renda, pelo racismo, pela intolerância, pela existência de castas privilegiadas etc. Sem dúvida, uma lógica simplória e maniqueísta.

Em segundo lugar, se assenhoram da “bondade” (aliás, quem nos salvará desta “bondade dos bons”?), como se os opositores de suas ideias fossem, a um só tempo:

(i) favoráveis à corrupção e

(ii) contrários a “deus” (sim, com letra minúscula, pois não sabemos mais de qual deus se está a falar: se do que representa amor, tolerância, e perdão ou se do “deus” justiceiro, vingativo, combatente).

Inaceitável.

Respeitando profundamente os que,com argumentos jurídicos, defendem a prisão após a condenação em Segundo Grau, a modificação do entendimento do STF vem sendo criticada com veemência por doutrinadores e operadores do Direito desde fevereiro de 2016, quando do julgamento do Habeas Corpus nº 126292, e não em razão da possibilidade de prisão de algumas dezenas de políticos e empresários corruptos, mas sim pela ofensa à Constituição Federal e pelo reflexo que a decisão traria e está trazendo para milhares de miseráveis – os de sempre, que já lotam nossas prisões.

Não é, e nunca foi sobre Lula ou outros acusados de corrupção. Não é, e nunca foi, uma defesa da corrupção.

Aliás, o que seria corrupção? Restringe-se a casos de obtenção de vantagens ilícitas por servidores públicos e a negociatas escusas? Ou também podemos falar dos atos que corrompem a Constituição? Como combater corrupção com mais corrupção? Como combater corrupção e a violação das leis quando rasgamos a nossa Lei Maior?

O certo é que, ao menos entre operadores do Direito, o debate deveria se restringir ao campo jurídico. Especialmente se tais operadores são ocupantes de cargos públicos, servidores de um Estado laico. Não há espaço para heroísmo, julgamentos morais, e pregações religiosas.

Não somos um Estado teocrático, e não se concebe como aceitável a invocação de divindades como argumento de autoridade e como instrumento de pressão contra uma Corte Suprema. O que quer que o STF decida na quarta-feira, 04/04/2018, deve ser pautado no Direito (talvez aqui resida o problema, não?), e não em palavras de Fé.

Do contrário, o que restaria aos hereges defensores da constituição? A estes bruxos e bruxas que se apegam à defesa de direitos e garantias individuais, atravancando o caminho dos que, em sua santa empreitada, desejam, a qualquer preço, livrar o Brasil dos ímpios? O que merecem, além da danação eterna?

Parece piada, mas não é. E diante da escalada autoritária que temos presenciado, patrocinada por inúmeros agentes públicos, em breve os acusados preferirão ser submetidos às ordálias ao invés de sofrerem o “processo penal à brasileira”. Já que o julgamento é divino, que ao menos fiquemos com o original.

Bruno Bortolucci Baghim é Defensor Público do Estado em São Paulo

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