Corpos negros ainda estão na mira #LegadoMarielle

por Carla Souza*, em RioOnWatch

Desde muito pequena aprendi sobre o assédio feminino, abordagem policial, racismo, segregação e genocídio. Estas lições não apareciam com estes nomes acadêmicos. Para as crianças da favela estes conceitos estão presentes nas orientações do “manual de sobrevivência (oculto) de vidas marginalizadas”, ensinados desde muito cedo nas casas periféricas. Os ensinamentos táticos são nada mais que um conjunto de cuidados que envolve a roupa, ou o perigo de correr à noite, ou ainda habituar-se a ver madames prendendo as suas bolsas quando um jovem negro passa por elas.

Aos 13 anos tive a primeira e a mais forte das lições sobre o genocídio: a chacina de Vigário Geral. Foi um estarrecedor divisor de águas na minha vida. A gente pode morrer de muitas maneiras quando se tem uma pele preta, até mesmo em casa vendo TV. Lembro de pedir minha mãe para colocar grades na janela e de me assustar com barulhos nas portas. Aos 13 anos, aprendi o que era ter medo e desde então esse sentimento oscilava e norteava muitas das minhas escolhas. Qualquer grito nosso era visto como choramingos do vitimismo, porém, os números são fatidicamente exatos: somos estatísticas de morte desde o começo da diáspora africana.

Para muitos somos apenas números e cor. Sentia-me uma sobrevivente e orgulhava-me disso e minha militância nunca fora em palanques, nem para grandes plateias, no entanto, minha resistência é existir, me posicionar diante de ataques racistas sutis (ou não) desta sociedade. Corpos negros estão na mira! Mesmo em silêncio, mesmo na infância, mesmo na juventude, mesmo sendo feminino. Corpos negros não têm opção de exercer sua sexualidade (ou ela é negada ou ela é violada). Desacreditamos da força estatal e nos apegamos à força ancestral, que também nos é negada e demonizado para nos tirar mais um direito: o direto ao culto. A militância vinha junto com o medo de ser vista. Segui com uma luta mais lúdica e em pequenas rodas ou em catarses emocionais nos textos que escrevia.

Eis que, a menos de um mês, num encontro destes que a vida nos promove, reencontrei aquela Carla de antes de Vigário Geral. Jovem que gostaria de ter sido jornalista, investigar e falar sobre a escravidão. Neste encontro achei-me. Agora um pouco mais velha, um pouco mais plastificada. Aos 38 anos fui pela primeira vez em um ato feminista, era 8 de março: o Dia Internacional da Mulher, ato em que Marielle estava, mas que por motivos do acaso não nos esbarramos. Muita chuva, muitas lutas, muitas vozes… Meu olhar não dava conta… Aquela multidão bradava para que mulheres parassem de morrer: seja pela cor, pela sexualidade ou pela religião.

Os gritos, numa das avenidas principais do Rio, ecoaram em mim e parecia o ecoar no resto do mundo. Deparar com estas lutas e ver nos olhos daquelas que pediam um basta, não só pelo fim da morte do corpo físico feminino, mas também pelo fim da morte das suas idéias e ideais. O que queremos vai além destes discursos rasos de dividir contas, tarefas ou saber com quem dividimos a cama. Queremos estar nos lugares que quisermos, existir e ser, nos espaços sem que causemos estranheza por sermos as únicas vozes femininas em setores majoritariamente masculino. Equidade, meus caros, é o que queremos.

Diante destas tantas vozes descobri que “sozinha ando bem, mas com elas ando melhor“. Queria eternizar aquele dia em palavras, queria viver mais daquilo em ações, mas fiquei num ruminar silencioso durante uma semana. E então o silêncio foi quebrado com 9 tiros… Fui apresentada (da pior maneira) a uma força viva da feminilidade periférica. Alguém como eu, da minha idade, sendo oriunda da favela, estudante de cursos preparatórios comunitários, acadêmica, lésbica e negra, lutava do outro lado da cidade por mim, por tantas que estão e que virão. Numa busca instintiva (e póstuma) olhei os perfis (daquela até então desconhecida) nas redes e me veio dores e êxito: ela existiu, resistiu e “chegou lá”. Lá onde o medo vira verbo, vira ação, vira para mira.

Marielle até 14 de março não era um nome presente, mas de alguma forma ela sabia quem eu era, quem eram minhas amigas, quem eram meus sobrinhos, quem será a minha filha. Ela lutava por mim, por nós, no front. Com seus cabelos crespos e turbantes coloridos, olhar fixo e palavras cortantes, dizia: “Não vou me calar! Não vamos nos calar!”. Hoje sua voz foi multiplicada. Choramos, lamentamos e sentimos repúdio. Contudo, um grito eclode: PAREM DE NOS MATAR! PAREM DE CALAR NOSSAS VOZES! Seremos muitas e de muitas formas. Esta é a resposta. Por fim, digo para aqueles que se incomodam com o nosso banzo: usufruam do direito de silenciar-se diante da ignorância de não entender o significado desta dor.

*Pedagoga por formação e professora de educação infantil apaixonada pela profissão. Ela é moradora da Rocinha, e entende sua existência em ser negra e favelada, como um foco de luta e de resistência no mundo.

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