Conversa de velhos: “Ai, meu Deus, só Jesus na causa!”. Por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

Diariamente, de manhã cedo, ouço centenas de vezes essa frase na Academia da Terceira Idade (ATI), na praia de Icaraí, onde faço exercícios físicos com outros velhinhos. Lá tem uma senhora gasguita e tagarela, que fala, fala, fala pelos cotovelos, fala o tempo todo, fala mais do que a preta do leite. Enquanto se exercita nos aparelhos, narra sua vida, descreve cenas do cotidiano, comenta o noticiário e julga os políticos em evidência. Não para um minuto, nem para respirar. Cada vez que muda de assunto ou faz uma pausa de alguns segundos, usa o nome de Deus e de Jesus como um marcador, como um ponto e vírgula já em desuso: ai, meu Deus, só Jesus na causa!

É uma pena que o texto aqui escrito não seja capaz de reproduzir sua voz estridente, a melodia da frase, os tons variados, o sobe-e-desce das sílabas. Ontem ela conseguiu ser simpática ao compartilhar com o público presente uma receita de bolo de cenoura. Fez uma advertência – anote, pode ser útil – de que a farinha de trigo deve ser mexida numa tigela ou batedeira à parte e nunca ir para o liquidificador com as raspas de cenoura e os ovos. Concluiu com o bordão: ai, meu Deus, só Jesus na causa.

O que ambos – Deus e Jesus – têm a ver com o bolo de cenoura, ninguém sabe. Entre uma receita e outra, entre uma ginástica e outra, entre queixas de dores na coluna, troca de remédios e de endereços de cardiologista, a conversa inevitavelmente desemboca na “cachaça do Barbosa”. A bola da vez é sempre o Lula sobre quem os “atletas” macróbios presentes, com raras exceções, derramam seu fel, sob a batuta de dona Nizete, cujo nome fiquei sabendo quando uma parceira de ginástica, eufórica, a interrompeu pegando carona no tema:

– Nizete, você viu os foguetes que soltaram pela prisão do Lula?

Ai, meu Deus, só Jesus na causa. Dona Nizete está tão obcecada quanto o Sérgio Moro e tem tantas provas contra o Lula como o juiz da Lava-Jato. Os ginastas presentes reforçam o que ela diz. Ouço calado, embora com o coração sangrando. Cansei, como o cangaceiro de Glauber Rocha, não por me faltar forças para o enfrentamento, mas porque “não posso respeitar nem gastar energia com o que não evolui e nem engradece”. Seria um bate-boca inútil. Ai, meu Deus, só Jesus na causa.

Acima da lei

No entanto, quem saiu para o embate foi um novo usuário, que ontem chegou arrasando. O velhinho, aproximadamente da minha idade, tem o physique du rôle: cara de hipponga meia-oito recém saído de uma passeata, rabo-de-cavalo, barba de vassoura branca e encrespada modelo Engels e bigode palha de aço tipo Nietzsche. Parece o Mel Gibson. Fez sua entrada triunfal neste seu primeiro dia, trajando camiseta vermelha provocativa com a cara do Lula estampada, onde se lia: “Sem medo de ser feliz, Lula 2018”.  O grupo ficou alvoroçado. Pisquei o olho cúmplice, enquanto o Meia-Oito se pendurava no alongador duplo.

– Ai, meu Deus, só Jesus na causa – provocou dona Nizete, desafiadora, olhando para o intruso, depois de repetir frase do Geraldo Alkmin, referendada por Marina Silva e pelo ministro puxa-saco Carlos Marun, ex-defensor de Cunha, na cadeia e agora da tropa de choque de Temer, no Palácio do Planalto:

– Ninguém está acima da lei.

O Mel Gibson de Nick City, que estava se dirigindo ao aparelho puxador costas com peitoral, parou, tirou do bolso uma página amassada de jornal e arrasou. Exibiu cópia do recibo emitido pela Ibiza em 30 de março de 2015, referente a uma das prestações da reforma da casa de Maristela Temer, filha do dito cujo, com notícias sobre documentos apreendidos na residência do coronel Lima, receptor da propina de R$ 1 milhão em nome de Temer, segundo denúncias de executivos da JBS. O dinheiro era parte de um total de R$ 15 milhões de doação eleitoral repartido entre caixa 2 e repasse oficial. Enquanto a mão esquerda segurava o jornal, as costas da direita esbofeteava o papel com tapinhas repetidos.

– Isso é prova material, não é mera suposição. Ai, meu Deus, só mesmo Jesus na causa – ironizou Mel Gibson, lembrando que Lula, ex-presidente da República, foi conduzido coercitivamente, enquanto já passaram 318 dias desde que a Polícia Federal chamou pela primeira vez o coronel Lima para prestar depoimento no inquérito que investiga Temer e ele permanece calado, sem ser ouvido até hoje

– “Ninguém está acima da lei” – debochou ele, “exceto quem está acima da lei”.

Indignação seletiva

Aí começou um bate-boca, diante de um público do qual fazem parte senhoras da classe média abastada, militares reformados, aposentados, empregadas domésticas e um idoso sequelado acompanhado de seu enfermeiro, que não entendia bem o que estava acontecendo, mas ouvia de quando em quando: “Ai, meu Deus, só Jesus na causa”. Parecia até os enfrentamentos que rolam no facebook, envolvendo muitas vezes pessoas da mesma família, sem paciência para escutar um ao outro.

Fiz um gesto para Mel Gibson pegar leve, mas ele não me deu a menor trela e prosseguiu seu discurso contundente, agora contra o Poder Judiciário que, para ele, está totalmente partidarizado. Revelou que seria a favor da prisão do Lula com pena proporcional ao delito que o acusam de ter cometido, se fossem condenados a 200 anos de prisão Aécio, Jucá, Moreira Franco, Padilha, Eunício, Alckmin e Temer – rotulado pelos procuradores de “chefe de organização criminosa”. Todos eles estão soltos, lépidos, fagueiros e desafiantes, no exercício do poder.

Já com um tom de voz elevado – ai, meu Deus, só Jesus na causa – Mel Gibson jurou que tem críticas a Lula, mas percebeu que os que atacam o ex-presidente são aqueles contra quem lutou toda sua vida e aqui citou artigo do Tarcisio Motta, que foi candidato a governador do Rio de Janeiro (PSOL). Considerou que a indignação de dona Nizete é tendenciosa, porque se esgota no Lula, que está na cadeia e não se estende à quadrilha, que está no poder. Perguntou por que a ministra do STJ, Nancy Andrighi, relatora do inquérito sobre o ex-governador de São Paulo decidiu enviá-lo para a Justiça Eleitoral e não para a Lava-Jato.

Sem obter resposta, concluiu com outra indagação relacionada ao silêncio do comandante do Exército, general Eduardo Villas Boas que extrapolou suas funções constitucionais e repudiou a impunidade na véspera do julgamento do Lula pelo STF, mas permanece caladinho quando se trata da impunidade de Temer – ai, meu Deus, só Jesus na causa – ou de qualquer político do PSDB – ai só Jesus na causa, meu Deus.

Depois que Mel Gibson se retirou, Nizete deu marcha à ré até os anos 1950 e mostrou que a guerra fria está cada dia mais quente e atual.

– Ele é comunista – suspirou a sacrílega, pecando contra o 2º Mandamento da Lei de Deus:

– Ai meu Deus, só Jesus na causa.

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