‘Órfãos da cana’ repetem roteiro dos pais e partem para SP em busca de sustento

Estado de Minas percorre Vale do Jequitinhonha e mostra a migração em massa de trabalhadores para lavouras em terras distantes

Por Luiz Ribeiro, enviado especial, no EM

Uma das regiões mais pobres do país, o Vale do Jequitinhonha ficou conhecido nas últimas décadas pela migração em massa de trabalhadores, que deixam para trás suas famílias em busca do sustento em atividades em terras distantes, principalmente no corte de cana em São Paulo, a fim de aliviar os efeitos da seca e da pobreza na região. Não é à toa que o Vale também ganhou a fama de terra das “viúvas de maridos vivos”. Nesse cenário cresceram os chamados “órfãos da cana”, indivíduos que, por causa da migração, tiveram pouco contato com os pais.

Não existem dados oficiais sobre a migração temporária, mas estima-se que, anualmente, milhares de trabalhadores deixam os pequenos municípios à procura do ganha-pão longe de casa. O Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Araçuaí calcula que somente do município e de outras cinco cidades próximas saem pelo menos 3 mil homens por ano – a cidade viu sua população rural despencar de 50,95% em 1991 para 34,93% em 2010 (veja quadro na página 7). Considerando todos os 51 municípios do Vale, no entanto, a quantidade de retirantes é muito maior.

Embora alguma coisa tenha mudado na região com o auxílio do Programa Bolsa-Família e com a melhoria de alguns indicadores sociais, persistem a falta de geração de emprego e renda e a escassez de chuvas – situação agravada ainda com a seca de rios e córregos. Assim, os filhos de ontem se tornaram os pais de hoje e repetem o mesmo roteiro de seus ancestrais: saem de casa e deixam seus pequenos para trás, indo para longe em busca do sustento que o Vale não oferece. Os “órfãos de pais vivos” se perpetuam de geração em geração.

Os já sofridos moradores do Jequitinhonha recebem, também, outra “herança maldita”, consequência da modernidade. Há três anos, os lucros obtidos na produção de açúcar e álcool levaram grande parte das usinas a investir pesado na mecanização da colheita, substituindo o homem pela máquina no corte da cana-de-açúcar. Em 10 anos, o percentual de lavouras mecanizadas em São Paulo saltou de 42%, em 2007, para 98% em 2017, segundo dados da União da Indústria de Cana-de-açúcar (Única). São 3.747 colheitadeiras atualmente nas lavouras paulistas, enquanto há 10 anos eram 753.

A modernização do processo reduziu a opção de trabalho dos cortadores de cana, eliminando a renda nas cidades do Vale, onde já circulava pouco dinheiro, ao ponto de reduzir drasticamente as vendas no comércio. Assim, diante da falta de indústrias, das agruras da seca e da falta de oportunidades de emprego, a migração continua desenfreada, com pessoas saindo em busca de trabalho também nas colheitas de café no Sul de Minas, na construção civil e em outro “trampo” qualquer nas grandes cidades. O êxodo rural é cada vez mais intenso, deixando casas abandonadas e criando comunidades fantasmas no campo.

A equipe do Estado de Minas percorreu o Vale do Jequitinhonha, ouviu dezenas de depoimentos de pessoas de diferentes gerações e visitou lugares de difícil acesso na zona rural. Também acompanhou a emoção da despedida da família e o embarque dos migrantes para a labuta longe de casa. As histórias marcantes e a situação encontrada são contadas na série de reportagens que o EM publica a partir de hoje.

***

Famílias de lavradores ficam cada vez menores

Quantidade de pessoas nas casas diminuiu significativamente não somente com a saída dos trabalhadores, mas também pela redução da taxa de natalidade

Ao percorrer localidades rurais do Vale do Jequitinhonha, a reportagem do Estado de Minas constatou que a quantidade de pessoas nas casas diminuiu significativamente, não somente por causa da saída dos homens para o corte de cana e para a colheita de café. Houve uma redução da taxa de natalidade. As famílias numerosas, de sete, oito ou mais filhos do passado, foram substituídas por núcleos bem menores.

“De fato, hoje as famílias são pequenas, de dois ou três filhos, no máximo. As mulheres aprenderam a evitar ter filhos”, afirma Eliete Silva Meira, agente de saúde do distrito de Cansanção, em Minas Novas. Ela informa que na unidade de saúde é feita a distribuição de anticoncepcionais, com a orientação aos casais sobre o planejamento familiar.

Além da orientação pelo serviço de assistência à saúde, a redução do tamanho das famílias é influenciada pela questão econômica. Casada há cinco anos, a lavradora Edileusa Soares Alves, de 30, da comunidade de Gravatá, em Chapada do Norte, é mãe de Mikaelly, de 4, e de Guilherme, de 10 meses. Já a mãe dela, Maria do Rosário Soares, de 68, teve sete filhos. Edileusa confessa que, “se pudesse”, também teria uma prole numerosa. “Mas a vida está muito difícil”, afirma a mulher.

Foto: Atlas do Desenvolvimento Humano, Fundação João Pinheiro, dados de 2010

Edileuza também é uma das “órfãs da cana”. Recorda-se que durante toda a infância teve pouco contato com o pai, Joaquim Alves Soares, de 74, que, durante quase três décadas, viajava para o corte de cana no interior de São Paulo, onde permanecia na maior parte do ano, longe da mulher e dos sete filhos. “Todo ano meu pai sumia e ficava nove meses fora. Quando ele chegava, a gente estranhava.

”A situação dela foi herdada pelos dois filhos. Desde que se casou, há cinco anos, o marido, Milton Alves Barroso, de 35, migra para buscar o sustento em outras regiões. Ele já esteve no corte de cana. Este ano, o destino de Milton será a colheita de café no interior paulista.

MAIS IDOSOS A professora Gildete Soares Fonseca, do Departamento de Geociências da Unimontes, lembra que há uma tendência da queda de fecundidade em pequenos municípios que sofrem com a saída de jovens em busca de empregos, apresentando taxas mais elevadas de idosos, como já se observa no Vale do Jequitinhonha. (LR)

***

‘Quando meu pai chegava, era como se fosse um estranho’, diz filha de lavrador

Migração para trabalhar em canaviais deixa novas gerações de ‘órfãos de pai vivo’ no Jequitinhonha

“Quando meu pai chegava no fim do ano, eu tinha vergonha de chegar perto dele. Era como se fosse um estranho”, conta Joelma Nunes da Silva, de 23 anos, moradora da comunidade de Muquém, na zona rural de Minas Novas, ao relatar como foi a (pouca) convivência dela durante toda a infância com o pai, José Soares Nunes, ex-cortador de cana. Ele morreu em 2014, de câncer, mas, na prática, pode-se dizer que ele deixou os seus 10 filhos “órfãos” há mais tempo. José passou a maior parte do tempo longe deles, nas usinas de açúcar e álcool de São Paulo, onde trabalhou durante 30 anos.

“Ele só vinha aqui praticamente para ‘fazer menino’ e depois voltava para a usina”, relata a lavradora Francisca Soares da Silva, a “dona Chiquinha”, de 54, viúva de José. “A vida aqui sempre foi muito difícil. Sempre tive que me virar sozinha com o marido longe”, reclama a mulher.

Joelma lembra que o pai viajava para o corte de cana em fevereiro e só costumava retornar em dezembro. “Viver sem o pai da gente é muito ruim. Quando chegava o Dia dos Pais, a gente parabenizava nossa mãe, pois ela era pai e mãe”, afirma a jovem. Ela também recorda que a família já passou necessidades. “Muitas vezes, quando meu pai estava fora, não tinha comida para todo mundo em casa. Os irmãos mais velhos ficavam sem comer para deixar para os mais novos.”

Francisca, que recebe R$ 180 do Programa Bolsa-Familia, comemora que, apesar de tanta dificuldade, hoje tem os filhos criados. Mas, num processo de herança para novas gerações, os netos dela também sofrem com a mesma condição de serem “órfãos de pais vivos”.

Homens da segunda geração da família, filhos e genros de dona Francisca, continuam saindo em busca do sustento em regiões distantes. Na casa, a reportagem encontrou somente mulheres e crianças pequenas, sem nenhum homem adulto.

Wilma Soares vê sua história se repetir com os filhos Lavínia e Rafael. Foto: Solon Queiroz /Especial EM

Outra filha de Francisca, Wilma Nunes Soares, de 28, recorda como foi criada sem a presença do pai. Seus dois filhos pequenos – Lavínia, de 6, e Rafael, de 4 –, passam pela mesma situação. Conta que desde que se casou, há seis anos, o marido dela, Gumercindo Lopes de Souza, de 31, passa a maior parte do tempo fora, no trabalho duro nas usinas. Gumercindo viajou no início de março para o corte de cana no Paraná. Ao partir, ele não teve como se despedir da mulher e do filho Rafael, pois, na ocasião, Wilma estava em Diamantina, acompanhando o menino, que ficou internado durante 26 dias, com leishmaniose.

A mulher conta que o menino se recuperou e fica sempre perguntando pelo pai, que só deverá voltar para casa em outubro ou novembro. A saudade é diminuída pelos contatos pelo  WhatsApp, feitos semanalmente. Para isso, Wilma tem que se deslocar a uma pequena distancia até a casa da mãe, onde pega o sinal de telefonia celular, embora muito fraco, razão pela qual os moradores da região recorrem somente ao aplicativo, sem o uso dos aparelhos para falar.

DESPEDIDA Na pequena escola municipal de Muquém, que tem uma única sala multisseriada (das séries iniciais ao quinto ano do ensino fundamental), a professora Nirla Sara Rodrigues, de 24, testemunha a ausência da figura paterna na vida dos alunos por causa da migração. “Somente as mães aparecem nas reuniões. Nem temos comemoração do Dia dos Pais”, observa. “Percebemos que as mães são muito sobrecarregadas. Os pais fazem falta na educação dos filhos”, afirma a professora.

Marivaldo Souza, no dia da partida: ‘Fico triste. Vou porque é preciso’.
Foto: Solon Queiroz /Especial EM

Luan Leite Borges, de 10, do quinto período, é um dos alunos que se tornaram “órfãos da cana”. No último dia 6, seu pai, o lavrador Marivaldo Borges de Souza, de 39, deixou a família e para trabalhar no corte de cana na área de uma usina de açúcar e álcool no interior da Bahia.

A reportagem do EM testemunhou a emoção da despedida do canavieiro. “Eu nem queria ir para longe. A gente fica triste. Vou porque é preciso. Sabe como é, né? A gente que é pai tem que ter compromisso com a família”, afirmou Marivaldo, que completa 17 anos seguidos de “trabalho fora”.

Além de Luan, ele deixou para trás a filha Leidiane, de 16, e a mulher, Dalva Soares Leite, de 37. Só vai retornar em outubro ou novembro e até lá os contatos com a família serão poucos, por telefone. “Não uso ‘esses negócios’”, disse o trabalhador, referindo-se ao WhatsApp. Os trabalhadores recebem R$ 20 da empresa contratante para o lanche durante a viagem.

ROTINA CONHECIDA Em outro ponto da zona rural de Minas Novas,  em Campinho de Cansanção, a realidade dos “órfãos da cana” é enfrentada na casa da lavradora Eva Nunes dos Santos, de 46. Eva tem seis filhos, dois com o primeiro marido, que trabalhava no corte de cana, já falecido. O atual, José Nunes da Silva, de 49, há mais de 20 anos deixa a família e vai em busca do sustento na atividade canavieira. Foi o que ele fez, também no dia 6, deixando na casa Eva com os filhos mais novos do casal: Camila Gabriela, de 12, e Ramon, de 5.

“Toda vez que meu pai sai, fica muito ruim. A casa fica mais vazia”, lamenta Camila. Eva diz que já se acostumou com a ausência do marido. “Mas toda vez que ele vai, dá aquele aperto no coração. Entrego pra Deus. A gente fica sem saber se vai reencontrar de novo, com medo de que aconteça alguma coisa ruim”, confessa a mulher.

Pauliano Alves dos Santos, de 27, filho de Eva com o primeiro marido, revela que seguiu o mesmo destino do pai e já trabalhou no corte de cana em outros estados durante seis anos. “Mas o serviço é pesado. Tive um problema no braço e nos últimos dois anos não consegui viajar mais. Está muito difícil porque aqui na região não consigo outro emprego”, reclamou o lavrador, que é casado e pai de um menino. (LR)

***

Ausência dos pais é a única alternativa de renda da família

Vale do Jequitinhonha depende economicamente dos migrantes que partem em busca de trabalho. Para pesquisadores, saída dos patriarcas deixa ‘cicatrizes’ profundas

Os moradores do Vale do Jequitinhonha, historicamente, têm uma dependência econômica da saída para o corte de cana. Mas a migração acabou interferindo no modo de vida na região, gerando um drama para os filhos criados longe dos pais. A opinião é do professor Anderson Bertholi, do Departamento de Geociências da Universidade Estadual de Montes Claros (Unimontes), que coordena o estudo “Os reflexos da transumância na organização socioespacial de Minas Novas – Os órfãos da cana”, sobre os impactos da migração para o trabalho nos canaviais

“Ficou evidente o drama enfrentado pelos filhos e filhas, uma vez que a ausência do pai como referência à construção dos valores familiares impôs, ao longo de décadas, um vazio que significou e significa uma espécie de morte da esperança. Paradoxalmente, essa mesma ausência tem sido a única alternativa de renda e perspectiva de uma, mesmo que pequena, melhora nas condições duras de vida no Vale”, afirma o pesquisador.

Conforme Bertholi, o estudo tem como objetivo fazer um diagnóstico completo desse movimento pelo espaço de todo o Vale do Jequitinhonha, tanto pelo viés da migração como daquele associado à renda. “Quantos e quem são os trabalhadores, da quantificação da renda e do atrelamento das famílias, portanto, dos órfãos filhos dos cortadores e dos órfãos do trabalho mecanizado a partir desta vinculação do lugar às empresas de fora”, explica. O levantamento foi iniciado em março do ano passado e ainda não tem data para terminar, por ser uma “pesquisa de fluxo contínuo”.

O professor lembra que, apesar de ajudar na sobrevivência da população castigada pela seca, a migração também deixa “cicatrizes” nas famílias. “Muitas são as cicatrizes deixadas por esse movimento, tanto numa perspectiva sociológica – da reorganização dos núcleos familiares, cujo papel a mulher se fez protagonista –, quanto geográfica no sentido de transformação desses lugares por uma materialidade precária, fruto da transferência de renda minguada”, comenta.

Também do Departamento de Geociências da Unimontes, a professora Gildete Soares Fonseca lembra que o “ato de migrar” envolve grande complexidade cultural, social, política, religiosa e, principalmente, econômica. “No caso de municípios da mesorregião Jequitinhonha e Norte de Minas, a migração temporária ou permanente faz parte da história da população. Representa emancipação social, devido aos baixos indicadores socioeconômicos. Assim, a alternativa para a sobrevivência de muitas famílias é sem dúvida a migração temporária. Conforme as safras, (as pessoas) migram para o corte de cana, para colheita de café, entre outras atividades”, salienta Gildete, que fez estudo sobre o processo migratório na região ao concluir doutorado na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas).

A pesquisadora ressalta que, “em relação à repercussão da migração nas famílias e na territorialidade local, podemos pontuar que é nítida a reprodução de geração a geração, ou seja, tornam-se culturais as ‘idas e vindas’”. “Os recursos financeiros são aplicados na melhoria das casas, na aquisição de veículos, na alimentação da família. Portanto, existe movimentação do dinheiro no comércio local, o que é considerado positivo por muitos governantes municipais”, analisa. Por outro lado, Gildete observa, “existe a incerteza do retorno ao sair, a dor de muitas esposas na perda de filhos, maridos, assim como a luta diária de sobrevivência dos que ficam e dos que vão, pois em geral são longas horas de trabalho e nem sempre os direitos trabalhistas são garantidos”.

Depois de ter vivido 30 anos sem a presença do pai, Edileusa, com o pequeno Guilherme, vê o marido partir para trabalhar desde que se casou, há cinco anos. Foto: Sólon Queiroz /Esp. EM

Enviada para Combate Racismo Ambiental por José Carlos.

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

16 − um =