Ex-pajé e a teimosia da pajelança

Intolerância religiosa, etnocídio e conversão forçada são retratados com beleza plástica no filme Ex-Pajé, que estreia no festival É Tudo Verdade

por Felipe Milanez, Carta Capital

O tema da intolerância religiosa, do etnocídio, e da conversão forçada de povos indígenas é retratado com beleza plástica e cuidado no filme Ex-Pajé, de Luiz Bolognesi, que estreia na quarta-feira 18 no festival É Tudo Verdade, no Rio e em São Paulo. E irá passar no Acampamento Terra Livre, organizado pela articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), em Brasília, na noite do dia 26 de abril. O filme estreia no final do mês em salas de cinema por todo o Brasil.

Ataques a templos religiosos, contra o candomblé, linchamento de mulheres acusadas de bruxaria, e agressões a pajés, homens e mulheres, tem sido crescente nos últimos anos deste Brasil que retrocede às trevas da Idade Média., “uma nova Inquisição”, como declarou Bolognesi em entrevista recente.

Para refletir sobre a resistência dos pajés diante destas agressões, convidei o professor universitário, frei franciscano, liderança intelectual indígena no Baixo Tapajós, e militante pela democracia e tolerância espiritual, Florêncio Almeida Vaz, para escrever uma crítica ao filme.

Como escreve Vaz abaixo, é inaceitável essa conversão forçada: “As igrejas evangélicas não podem chegar nas aldeias demonizando os pajés e sua tradição.”

Vida longa a Perpera, Kopenawa, Maria Santana Arapium e a todos e todas pajés!

Por Florencio Almeida Vaz*

Em 1 hora e 21 minutos o documentário Ex-pajé, dirigido por Luiz Bolognesi, consegue fazer uma espécie de história dos pajés frente ao cristianismo e à colonização. E faz isso muito bem, sem cansar o espectador, com uma bela fotografia e enredo que prende a atenção.

O processo do contato mais permanente dos Paiter Suruí (retratados no filme) com a sociedade nacional brasileira, num curtíssimo período de 50 anos, também resume 518 anos de invasão dos territórios indígenas, saque de minérios e madeiras, epidemias que matam 95% da população e a violência simbólica da negação da religião dos pajés.

Apesar da citação de abertura, sobre o etnocídio, o filme não é uma ladainha de lamentações. Longe disso. Os indígenas surgem dirigindo caminhonetes, usando roçadeiras na sua moderna agricultura, se servem de energia elétrica e fogão a gás, manejam com destreza filmadoras, celulares e a internet para denunciar a invasão de madeireiros na sua floresta.

Falam Português, mas continuam falando sua língua Mondé. Devem comprar alimentos industrializados, mas continuam comendo cará e tucumã, carne de macaco e peixes. São sobreviventes, mas são indígenas contemporâneos, vivendo e fazendo suas escolhas e intervindo dentro da dinâmica da sociedade mundializada.

Uma das novidades da sociedade ocidental incorporadas pelos Paiter foi a religião evangélica neopentecostal, provavelmente a mais desastrosa das escolhas que fizeram, porque ela mexe com o que há de mais interior e vital na filosofia e nas referências espirituais de um povo indígena.

A Igreja Católica também já fez isso nos séculos anteriores, provocando a fúria dos pajés, logo demonizados e proibidos na nova comunidade de convertidos. Dando-se conta da desigualdade de condições na guerra espiritual contra os padres, os pajés escolheram a estratégia da discrição e do silêncio.

Na sua teimosia, se fizeram batizar em nome de Jesus. Deu certo. Ainda hoje, estão aí bem vivos os pajés, benzedores e puxadores. O drama de Perpera, o “ex-pajé” retratado nesse documentário, é a atualização desta resistência silenciosa e da força que não se dobra.

Há uma cena em que os jovens indígenas cantam “Jesus é maravilhoso, ele salva, ele cura”, diante do pastor estrangeiro, enquanto Perpera, vestido à moda evangélica e fora de foco, está distante na porta do templo, olhando para fora, para as árvores e suas flores: é uma metáfora perfeita da condição dos pajés cristãos.

Obrigados a entrar para a Igreja, na verdade eles ficam na porta, não se submetem totalmente. Nem podem, porque as vozes dos seus espíritos-guias não deixam, e porque ser pajé é um dom de Deus, e não coisa do diabo, como falam os pastores. Por isso, no fundo do fundo, um pajé nunca deixa de ser pajé.

Pajé Perpera em cena do filme Ex-pajé

Outros pajés e suas resistências

Não tem como não lembrar da história e das reflexões de Davi Kopenawa, detalhadas, com a ajuda de Bruce Albert, no livro “A queda do céu” (Cia das Letras, 2015). Alfabetizado e catequizado na infância pelos evangélicos, ele tentou ignorar a vocação xamânica. Mais tarde, porém, diante da invasão do seu território pelos garimpeiros, ele abandonou a Igreja e se tornou grande pajé, liderança política e intelectual dos Yanomami.

Kopenawa foi por um caminho oposto daquele seguido por Ewká, o ex-pajé dos Waiwai, falecido em 1995, que resistiu como pode ao avanço dos evangélicos em meados do século XX, mas por fim se converteu e se tornou ele mesmo fundamental para a conversão do seu povo a nova religião. Atualmente, não são notadas práticas de xamanismo entre esse povo, e os indígenas evitam falar do “tempo dos pajés” (o que não significa que a pajelança morreu), segundo o Prof. Ruben Caixeta.

Ao longo dos séculos de colonização, os pajés foram forçados a seguir o padrão Ewká. Os tipos Davi Kopenawa eram raros, amaldiçoados, e não achavam seguidores. No entanto, o contexto começou a mudar nas últimas quatro décadas, com o surgimento do chamado “movimento indígena”, apoiado por ONGs e pesquisadores, e de uma nova consciência e o estabelecimento dos direitos destes povos viverem do seu modo, diferentes. E as coisas continuam a mudar, com a entrada de milhares de indígenas nas universidades.

A conversão cristã e a resistência silenciosa já não são as únicas saídas para os indígenas e seus pajés. Mas o cristianismo, agora evangélico, não desistiu das suas almas. Ao contrário, aperfeiçoou suas estratégias, usando inclusive conhecimentos das Ciências Sociais e da Linguística, além de medicamentos contra as epidemias que os próprios missionários levam para as aldeias.

A guerra pelas almas indígenas passou a uma nova etapa. Perpera e os Paiter – como os indígenas todos – parecem estar numa encruzilhada. Mas hoje temos muitas razões para seguir o caminho da tradição milenar indígena, ao invés do proselitismo neopentecostal.

Hoje, com os direitos indígenas conquistados, é inaceitável que vejamos prosseguir o estilo Ewká ou Perpera. As igrejas evangélicas não podem chegar nas aldeias demonizando os pajés e sua tradição.

Os indígenas podem até entrar para igrejas cristãs, mas levando sua cosmologia pajeística e buscando sínteses com o cristianismo, que eles mesmos farão, do seu jeito. Afinal, Cristo também não era um curador e vivia expulsando espíritos malignos? Ou, os indígenas podem optar por seguir com sua religião dos pajés, como faz Davi Kopenawa e alguns outros líderes indígenas. É seu direito. No momento mais dramático do filme, os Paiter fazem sua escolha, independente da aprovação do pastor.

Por retratar tão bem o drama atual dos povos indígenas, pressionados entre seguir sua religião xamânica ou as igrejas neopentecostais, o documentário deveria ser de exibição obrigatória em todas as escolas e associações indígenas, além de escolas não indígenas, igrejas e universidades.

Concluo com o que me disse a anciã e pajé Maria Santana Arapium faz dois anos. Analfabeta, ela me contava de suas viagens xamânicas pelo fundo dos rios, entre Cobras Grandes e outros espíritos, com os quais conversava regularmente.

Já estava cega e bem enferma. Ela disse: “Isso tudo é encantado. Nós vivemos em cima de uma cidade encantada […]. Quando eu morrer minha alma vai pro céu, meu corpo vai prá baixo da terra, e minha sombra (espírito) vai pro encante”. Ela faleceu ano passado aos 92 anos.

Depois de mais de cinco séculos de evangelização e colonização, a pajé Maria Santana Arapium não tinha se submetido às verdades da racionalidade capitalista (isso tudo é mercadoria ou recursos naturais) e da teologia cristã (cada pessoa tem somente uma alma, e após a morte ela vai pro céu ou pro inferno). Como católica, ela disse que iria para o céu.

Como pajé, ela iria para o mundo dos encantados no fundo dos rios. Como assim, uma pessoa ter duas almas? Os pajés podem. Como falou o Prof. Karl Arenz, a teimosia da pajelança se contorce, e até admite as verdades cristãs, mas não abre mão das suas também. Eu acredito que Dona Maria Santana está no céu e no encante. O pecado e o inferno não contam na escatologia dos pajés.

Este espírito de tolerância com outras crenças religiosas, precisamos aprender com os pajés. Padres e pastores precisam aprender com os pajés. Aprender a deixá-los em paz também. Médicos e professores precisam aprender com os pajés.

Aliás, precisamos de mais pajés, e menos intolerância; mais pajés, e menos fundamentalismo; mais pajés, e menos sofrimento. Porque os pajés, diferente de padres e pastores, são imprescindíveis para manter a harmonia entre a natureza, seus espíritos e as pessoas. São imprescindíveis para conservar o encantamento e a sanidade do mundo. Segura firme aí, Perpera!

 * Frei franciscano, indígena do povo Maytapu e professor de antropologia na Universidade Federal do Oeste do Pará (UFOPA). Estuda movimento indígena, pajelança e descolonialidade. É autor, junto com Luciana Carvalho, de Isso tudo é encantado (2013) e Pajés, benzedores, puxadores e parteiras (2016)

Ex-Pajé: sessões no É Tudo Verdade

Rio de Janeiro:

Estação Net Botafogo, 18/04/2018 às 20h30

IMS Rio, 20/04/2018 às 16h00

São Paulo:

IMS Paulista, 19/04/2018 às 19h00 e às 21h00

Sesc 24 de Maio, 21/04/2018 às 15h00

Imagem: Sessão do filme em aldeia indígena no dia 7 de abril – Felipe Milanez

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