A tenista Serena Williams escancarou os dados relacionando racismo e mortalidade materna nos EUA. No Brasil, a realidade não é diferente
por Isabela Cavalcante no Metropoles
Ao tentar alertar os médicos, a americana foi tratada com descaso até conseguir o devido tratamento. A situação motivou a atleta a divulgar sua história e falar sobre racismo e as estatísticas de mortalidade no parto.
Nos Estados Unidos, mulheres negras têm três vezes mais chances de morrerem devido ao parto. No Brasil, 60% das vítimas de mortalidade materna são negras (pretas e pardas) e 34% são brancas, segundo o Ministério da Saúde. Os números refletem o óbito durante a gravidez, o parto e o aborto.
“Apesar do sistema não legalizar o racismo, sua prática tem como premissa atender mulheres de forma diferenciada por conta da cor da pele”, aponta Emanuelle Goés, enfermeira, doutora em saúde pública, dona do blog População Negra e Saúde e colunista do Blogueiras Negras. Os mitos de que negros toleram mais dor e não podem ser tocados porque são “sujos” continuam presentes nas universidades, segundo a doutora.
O racismo possui raízes antigas, mas continua sendo repassado com os ensinamentos do “pai da ginecologia”, J Marion Sims. “Ele abria mulheres negras grávidas para fazer experimentos, realizava cesáreas sem anestesia. Existe essa história já construída e ela faz parte do processo de como uma pessoa negra é atendida no sistema de saúde”, conta Emanuelle. Várias mulheres operadas por Sims morriam também devido à infecções, porque ele não prescrevia cuidados pós-cirúrgicos.
“As estatísticas demonstram uma violência institucionalizada. Mulheres negras são privadas do direito e do acesso à saúde. Isso se aplica à população negra em geral, mas é mais latente com as pretas e pardas, em particular”, diz Rebeca Campos Ferreira, doutoranda em antropologia e perita em antropologia no Ministério Público Federal. Para ela, os dados são desumanizadores por tratarem de mortes evitáveis e demonstrarem um genocídio.
Em seus trabalhos de campo em comunidades quilombolas, Rebeca relata ter ouvido muitas histórias de abuso e violência obstétrica. “Escuto mulheres negras falando terem ouvido, durante o trabalho de parto: ‘na hora de abrir as pernas não doeu’”, conta. “Uma jovem dizia ter sido duramente agredida verbalmente por uma enfermeira, foram ditas coisas como ‘deu para branco e não deve nem saber quem é o pai’, ‘essas pretas dão para todo mundo’. Precisamos pensar também sobre a supersexualização da mulher negra”.
As agressões não ocorrem só no momento do parto. Estaticamente, essas mulheres têm menos acesso a cuidados pré-natal e recebem menos anestesia. Um pouco mais da metade das grávidas negras realizam as sete consultas indicadas durante a gestação, revelou um artigo da Universidade Federal de Minas Gerais. Cerca de 62% das pretas e pardas atendidas pelo Sistema Único de Saúde (SUS) foram orientadas sobre amamentação, enquanto 78% das brancas receberam esse serviço, segundo pesquisa do Ministério de Saúde.
“A intersecção das discriminações de gênero e cor pioram o acesso aos serviços de saúde reprodutiva. O racismo causa mais morte materna, impacta no número de grávidas adolescentes e diminui o conhecimento sobre os métodos contraceptivos”, fala Emanuelle. “Ainda não se sabe o que acontece com as mulheres negras durante o pós-parto, há um grande índice de morte ligada ao puerpério, isso deve ser investigado”, diz a doutora.
Rebeca explica que existem instrumentos legais para garantir igualdade, mas na prática isso é diferente. “A execução fica prejudicada pelo racismo e pelo machismo. Enquanto não houver clareza, não serão tomadas medidas para mudar essa realidade. É preciso enfrentar que o racismo na saúde existe e mata, é preciso conscientizar e capacitar os profissionais da área”.
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Vanity Fair/Divilgação