Lilia Schwarcz: “Esses discursos cheios de ódio querem liquidar o outro”

Por Bruna Castelo Branco, em A Tarde

A antropóloga e historiadora Lilia Schwarcz é conhecida por ter escrito livros como O Espetáculo das RaçasAs Barbas do ImperadorBrasil: Uma Biografia (com Heloisa Starling) e O Sol do Brasil. Na última segunda-feira, a professora do Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo (USP) e Global Scholar, em Princeton, veio a  Salvador para a conferência “Ecos do Sul: sobre o futuro das relações transatlânticas do sul”, no Instituto Goethe, onde falou sobre as imagens transportadas para o Brasil pelos navios negreiros vindos da África.

Dos seus países de origem, diz Lilia, os escravizados trouxeram muito mais do que eles mesmos: trouxeram crenças, costumes, cultura, religiões e formas de sociabilidade, transformando o Brasil – especialmente Salvador, uma das cidades mais negras do país – no que é hoje. Uma das fundadoras da editora Companhia das Letras, ela também fala nesta entrevista sobre as relações entre Américas, África e Europa, sobre como o fato de sermos um povo miscigenado nos afeta, sobre as trocas  entre os continentes do sul e a desigualdade social e racial no Brasil, heranças de mais de 400 anos de escravidão.

O Brasil foi o último país do ocidente a abolir a escravidão mercantil. Por quê?

O Brasil teve quatro séculos e meio de mão de obra escrava e recebeu cerca de 43% dos africanos que saíram compulsoriamente dos seus países. Na época, o Império era tão vinculado à mão de obra escrava que a Lei Áurea (sancionada em maio de 1888) foi a última do Império – a mais popular e a última, veja só a contradição. Tínhamos trabalho escravo de norte a sul do Brasil, não existia local em que não existisse a escravidão no nosso território. Tem um dado interessante: a técnica da fotografia chegou aqui na década de 1850, e a escravidão só acabou em 1888. Então, o que ocorre é que o Brasil possui um dos maiores acervos fotográficos de escravidão. Nem se compara com o dos Estados Unidos, por exemplo. Essa herança se enraizou no país como uma linguagem, e com graves consequências para a sociedade.

Que consequências?

Eu costumo dizer que o presente está lotado de passado. A nossa Lei Áurea veio tarde e pouco abrangente. Na época, existiam vários projetos tramitando na Câmara, desde os mais conservadores, que pediam indenização aos proprietários de escravizados, até os que pediam a inclusão dessa população – ex-escravizados – na sociedade. A abolição foi um processo de luta, não um presente de uma princesa, como a gente costuma falar romanticamente. Mas, da maneira como foi feita, não previu a inclusão dos escravizados libertos. Então, nós herdamos e reconstruímos no presente essa desigualdade abismal do período da escravidão. Aos escravizados, por exemplo, não havia sistemas regulares de educação, e ainda hoje, se você olhar os censos atuais, há uma discrepância no acesso à educação no Brasil. Herdamos e mantivemos um acesso desigual à saúde, aos transportes. Herdamos e ainda atualizamos uma diferença nos dados de nascimento e morte. Sabemos que a população afro-brasileira morre antes e morre mais. São pontos que estrangulam a nossa sociedade e nos fazem campeões na desigualdade social.

Salvador é uma das cidades mais africanas do Brasil. Só que, ao mesmo tempo, a população negra continua marginalizada. Como você a enxerga nesse contexto?

Acho que essa situação você pode explicar melhor do que eu (risos), mas sabemos que a configuração de Salvador é singular e distinta do resto do país. Em relação às cotas raciais, por exemplo, Salvador está mais avançada do que a USP, onde eu trabalho, que aprovou as cotas apenas no ano passado. Na Bahia, há uma realidade de uma população negra nas universidades – não por presente de alguém, mas por mérito. Por exemplo, a USP aprovou as cotas apenas no ano passado. Queria eu que em São Paulo houvesse esses números, essa aceitação das cotas como vocês têm em Salvador.

Na conferência Ecos do Sul, você vai falar sobre as formas visuais que chegaram ao Brasil pelos navios negreiros. Que formas visuais são essas?

Nos navios negreiros foram transportadas muito mais coisas do que pessoas. Neles circularam religiões, formas de sociabilidade, crenças, costumes e também padrões visuais. Haviam padronagens nas indumentárias dos escravizados que eram quase como certidões de identidade. Muitas vezes era possível descobrir de onde aquela pessoa vinha a partir do que ela vestia. Mas, mesmo com toda essa riqueza de imagens, hoje, no Brasil, perpetuamos modelos visuais e documentos do período da escravidão que padronizam essa época e não representam o país inteiro. Nos livros didáticos, são usadas sempre as mesmas imagens – textos, gravuras, pinturas – normalmente feitas no Rio de Janeiro, sem pensar quem é o autor, qual é a data… Muitas imagens que conhecemos da escravidão foram produzidas por brancos europeus que estavam de passagem por aqui. Alguns viajantes, às vezes, nem aqui vinham. Iam a outras colônias, outros países – como a Jamaica, o Haiti, o sul dos Estados Unidos – e aplicavam uma imagem como se fôssemos uma coisa só.

Como o fato de sermos uma nação miscigenada influencia a nossa cultura?

Eu gostei muito dessa pergunta porque ela me permite esclarecer o meu ponto de vista. Mestiçagem significa mistura, mas não há mistura sem separação. É mistura e separação, os dois ao mesmo tempo. Na sociedade brasileira, há um arranjo perverso que acomoda há muito tempo a ideia de que há uma inclusão cultural entre negros e brancos. Quando se fala “no Brasil há muito racismo”, há quem diga: mas veja só na música, no futebol, no teatro, no Carnaval… Tem mistura! Mas, na verdade, há uma enorme exclusão social. Essa imagem de um Brasil miscigenado é impressionante e cruel. Ela foi criada nos anos 1930, pautada na questão cultural, não na social.

Para você, as trocas  entre América do Sul e África estão crescendo?

Culturalmente, acho que sim. A troca com a África, principalmente no que se refere à educação e cultura, tem sim se incrementado com a introdução desses temas no currículo escolar. Eu acho que mais sempre produz mais, então não se trata de tirar, por exemplo, a história dos Estados Unidos ou da Europa das escolas, mas incluir África também como um dos locais formadores da nossa sociedade. Então, em termos culturais, a imagem de África vem crescendo. Politicamente, penso que essa troca já foi feita de forma mais sistemática. Agora, vejo que não está sendo realizada com a mesma frequência e coerência de antes.

Durante séculos de exploração e colonização, a Europa teve um papel hegemônico político, cultural e racial sobre África e Américas. O que você pensa sobre o posicionamento dos países europeus frente a onda de imigração que acontece atualmente?

Fazendo uma brincadeira, eu jamais imaginaria que a Alemanha seria um dos países mais abertos da Europa. Veja a França, a polarização com Macron e Le Pen mostra que vêm aí partidos muito raivosos e xenófobos. Uma das características dos partidos de extrema-direita é a xenofobia, a tentativa de impedir a entrada de populações que durante muito tempo foram colônias e, portanto, serviram, foram subjugadas e exploradas por esses países. O discurso desses partidos é que os imigrantes estão tirando o trabalho da população local – esta que, por sua vez, se aproveitou de suas colônias por décadas. Agora é a hora de receber essas pessoas, coisa que esses países vêm negando. Para usar os termos de Hannah Arendt, vivemos “tempos sombrios” no que se refere à inclusão de imigrantes desses grandes êxodos humanos que foram criados.

Estamos nos afastando da influência europeia? Como a Europa nos influencia hoje?

Atualmente, vivemos uma crise financeira bastante evidente mundo afora, além da situação do Brasil. Também estamos em um momento cheio de ódio, em que o projeto democrático está perdendo de lavada – me refiro à eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, ao Brexit no Reino Unido e à força de partidos de extrema-direita na Itália, na Holanda. Houve uma época, durante mais ou menos 30 anos, em que acreditamos que a democracia era um projeto consolidado. E não é, estamos em uma recessão democrática, e esses momentos não são propícios para aberturas. Quando estávamos vivendo em um contexto de plenitude democrática, a abertura e o diálogo entre os países do Sul era muito mais evidente do que a que estamos experimentando neste momento. Nesse panorama, o Brasil está negociando com países de economia forte com o objetivo de se manter equilibrado no cenário internacional.

O que você considera que nos levou a esse momento atual de embates tão extremistas?

Acho que o que aconteceu é que estamos incluindo mais pessoas na sociedade, e uma parte das elites está reagindo a esse projeto de mundo mais múltiplo com muita força e violência. Vivemos em um tempo em que queremos acabar com o adversário. A democracia sempre foi sobre jogar com a diferença, não lidar apenas com os iguais. Esses discursos totalitários, cheios de ódio, querem liquidar o outro. Nós podemos discordar, achar que não faz sentido o que o outro diz, mas preservá-lo é importante e saudável para a democracia.

Na sua visão, quais são os futuros possíveis das relações entre África, América do Sul e Europa?

No Brasil, vivemos em uma imensa incógnita. Anos eleitorais são complicados, e este é ainda mais, com a prisão de um dos candidatos da maioria. Não sabemos ainda como esse tabuleiro vai se desenhar, quem vai se lançar [à presidência], como vai se lançar. No panorama internacional, acredito que ocorre o mesmo. Todos nós, que estávamos em regimes democráticos, achávamos que a democracia era um valor que tinha chegado para ficar, mas estamos vendo, quase com incredulidade o que está acontecendo na Europa [ascensão de partidos de extrema-direita]. Mas, concluindo, repito o que digo sempre: acho que, no momento em que nos encontramos, quem diz que sabe o que vai acontecer mente.

Foto: A Tarde

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