As leis da invasão

por Joana Cunha, em Folha de S.Paulo

Quem passa pelas ruas do centro de São Paulo dificilmente calcula quantos edifícios públicos e privados estão invadidos por famílias que não têm um teto ou que preferem viver em ocupações para estar mais perto do trabalho.

O secretário de Habitação, João Sette Whitaker, afirma que não há cálculos oficiais, mas reconhece que esse modelo de moradia se intensificou na região e estima em torno de 40 a 50 prédios na parte central da cidade. Aproximadamente dez deles são públicos, segundo o secretário.

“Como um estudioso do assunto, eu percebo que isso aumenta quando há governos mais abertos ao diálogo com os movimentos. E essa é uma característica dessa gestão e de gestões mais à esquerda, em geral”, diz Whitaker.

O acesso a esses edifícios é restrito e geralmente só pode ser feito com a autorização de moradores ou dos líderes ligados aos movimentos por moradia. Há casos de abusos de cobranças de taxa de condomínio, multas por ausência em reuniões e práticas coercitivas exigidas por movimentos sem-teto que são hoje alvo de investigação no Ministério Público.

Com uma câmera de realidade virtual, a Folha visitou apartamentos e entrevistou moradores de prédios invadidos na região central para mostrar ao leitor como vivem e como se organizam.

Um destes lugares que o leitor poderá conhecer por meio da experiência de realidade virtual em 360° é o prédio histórico do Cine Marrocos. O imóvel foi comprado pela prefeitura para abrigar a Secretaria de Educação, que foi invadido pelo MSTS (Movimento Sem Teto de São Paulo) em 2013.

A ação de reintegração de posse do Cine Marrocos determinou como prazo final para desocupação o início de junho. De acordo com Robinson Nascimento Santos, um dos líderes do movimento que ocupa o Marrocos, a maior parte das famílias vai para as ruas.

BARRACAS SOBRE O VIADUTO

Em abril, diferentes movimentos sem-teto, entre eles o MSTS, instalaram cerca de 300 barracas no viaduto do Chá, em frente ao prédio da prefeitura, para reivindicar medidas como o auxílio-aluguel.

A Secretaria de Habitação, porém, afirma que a maior parte das reivindicações se refere a ocupações de edifícios particulares, os quais estão fora do escopo de intervenção da prefeitura.

“O que a prefeitura pode fazer nos casos de imóveis ociosos é aplicar o instrumento da PEUC (Parcelamento, Edificação ou Utilização Compulsórios) e IPTU Progressivo, para buscar forçar sua utilização”, diz a autoridade em nota. Essas regras preveem taxações maiores com o passar do tempo e até a desapropriação de imóveis privados parados, à espera de valorização no mercado.

De acordo com a Secretaria de Habitação, “até agora, por meio do departamento de fiscalização da função social da propriedade urbana, já foram notificados cerca de 2 milhões de metros quadrados subutilizados no município.”

Atualmente, a capital tem, segundo a prefeitura, aproximadamente mil unidades habitacionais destinadas ao Programa de Locação Social [voltado a famílias com renda de uma a três salários mínimos].

Para residir nelas, os moradores destinam 10% de sua renda mensal ao pagamento do aluguel, além de arcarem com o condomínio, cujo custo fica em torno de R$ 50.

A gestão do prefeito Fernando Haddad (PT) prometeu entregar 55 mil moradias até o fim de 2016. Os números mais atualizados mostram que 8,6 mil unidades habitacionais foram concluídas e 19,2 mil estão em obras.

A prefeitura explica que o plano das 55 mil novas moradias estava sustentado no desempenho do programa Minha Casa, Minha Vida até 2012.

“Entretanto, a partir de 2013 o programa Minha Casa, Minha Vida teve seus investimentos progressivamente reduzidos, até serem praticamente congelados. Com isso, o planejamento da Prefeitura foi prejudicado”, diz a secretaria.

Entre as alternativas estão a locação social, a reurbanização de favelas, a recuperação de edifícios ociosos na área central da cidade e ações de regularização fundiária.

Como se fosse um edifício residencial regular, igual a outro qualquer na cidade de São Paulo, um porteiro recebe a reportagem e pergunta o nome do morador que acolherá a visita.

Sem cerimônia, pede à repórter que espere na calçada.

“Você não pode entrar. Precisa ter a carteirinha ou uma autorização de alguém que more nesta ocupação.”

Na invasão Sete de Abril, que há cerca de quatro anos ocupa um antigo edifício comercial na rua Sete de Abril, a entrada é restrita, um expediente comum nos prédios de que os sem-teto se apoderam no centro de São Paulo.

Quando enfim aparece Eduardo Santos, o Netinho, um dos organizadores da invasão, as portas se abrem para um hall de entrada parcialmente ocupado por sacos de cimento empilhados à espera do reparo a ser feito em um dos banheiros e o cheiro de produto de limpeza atesta o asseio com que os habitantes tratam o local.

As cerca de 70 famílias que vivem nas salas comerciais convertidas em apartamentos de um ou dois cômodos (sem banheiros privativos e com cozinhas improvisadas) são comandadas por regras quase militares e um clima de opressão que resultam no esmero que à primeira vista surpreende.

Para evitar a intervenção do corpo de bombeiros, a organização proíbe o uso de botijões de gás. Só é possível cozinhar no micro-ondas ou em panelas elétricas. Nas janelas foram colocadas redes de segurança para a proteção das crianças.

REGULAMENTO INTERNO

Os banheiros, dois em cada andar, são compartilhados e precisam ser limpos após o uso.

Em cada um dos 11 andares, um mural estampa o “regulamento interno” redigido pela UAMP (União de Associações de Moradia Popular), entidade organizadora da invasão.

Sob pena de serem expulsos do prédio, os moradores são induzidos a cumprir uma escala de limpeza dos corredores. Recados afixados nos painéis indicam os nomes dos vizinhos que se ocuparão da limpeza em cada dia da semana. Quem descumpre a obrigação recebe multa de R$ 30 e uma advertência escrita.

O recurso, de acordo com “parágrafo único” do regimento, será divido em R$ 15 para o morador que fizer a faxina do dia seguinte e o restante vai para o caixa da UAMP, “para ser investido na melhoria do prédio”.

A portaria é outra incumbência revezada pelos condôminos, mas em caso de falta, a multa é de R$ 50, sendo R$ 30 para o morador substituto e R$ 20 para o caixa.

A lista de obrigações arroladas pelo regimento inclui a participação em reuniões mensais, “sendo que três faltas seguidas e não justificadas levam à expulsão”, conforme o regimento.

Também é um obrigação participar das “atividades importantes pela luta por moradia”. Os recentes protestos contrários ao impeachment da presidente Dilma Rousseff fizeram parte do conceito de “luta por moradia”, segundo confirmou o organizador Netinho à Folha.

Para não serem colocados para fora, os moradores também precisam assinar um livro sempre que entram ou saem do edifício, não podem usar “entorpecentes” dentro do prédio nem praticar violência.

Em uma das visitas realizadas pela reportagem à ocupação Sete de Abril, um cartaz com a foto de um dos moradores determinava na legenda a proibição de sua entrada. Ele fora expulso do prédio após bater na mulher, segundo justificativas dos organizadores. A Folha não conseguiu localizar o morador para confirmar a versão.

Após o fim das filmagens realizadas pela reportagem, um dos ocupantes que aparece nos vídeos (e pediu para não ter seu nome revelado) também foi expulso. Diz que havia favorecimento por parte dos organizadores a alguns moradores e que, ao discordar, teve de sair.

TAXA DE R$ 200

Embora os serviços de segurança e limpeza sejam realizados pelos próprios habitantes, é obrigatório o pagamento mensal de uma taxa de R$ 200 “para custear a manutenção do prédio”.

Alguns movimentos sem-teto são hoje alvo de investigação do Ministério Público de São Paulo por supostas cobranças abusivas e práticas coercitivas de arrecadação de fundos.

Netinho explica que os recursos alavancados na ocupação Sete de Abril são usados para conserto do elevador, colocação de corrimão na escadaria, pagamento de pedreiros e material de construção para os reparos necessários, além de custo com advogados em caso de pedido de reintegração de posse.

Nas três visitas que a Folha realizou ao local em um mês, ouviu de moradores que o elevador nunca foi ativado e não havia corrimão na escadaria.

Segundo Netinho, desde que se instalaram no edifício da Sete de Abril, há cerca de quatro anos, a organização da ocupação ainda não recebeu nenhum pedido de reintegração de posse.

A prefeitura afirma que não pode conceder informações sobre edifícios privados invadidos. O Tribunal de Justiça também não identifica se houve pedido de reintegração de posse com base apenas no endereço.

Texto: Joana Cunha / Videos: Estúdio X+X | Mabel Feres e Roberta Dabdab / Design e Desenvolvimento: Thiago Almeida

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.

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