O “índio” enquanto o Outro foi atirado num espaço de antítese às ideias de civilização, progresso, tecnologia, ciência, educação e moral
por Felipe Milanez, em Carta Capital
Cacheira, bela cidade no Recôncavo da Bahia, palco das lutas históricas do povo negro pela liberdade, território sagrado dos quilombos e dos terreiros, recebe esta semana indígenas de todo o Brasil para um encontro inédito para debater o racismo contra os povos indígenas.
Um encontro raro e que surpreendeu o antropólogo Kabengele Munanga, professor titular na Universidade de São Paulo e atualmente professor visitante na Universidade Federal do Recôncavo da Bahia:
“Os indígenas são nossos irmãos de luta. Estamos no mesmo barco, mas a ideologia que nos discrimina não quer que nós nos juntemos para discutir problemas comuns, os quais somos todos vitimas. Eu me surpreendi… Tantos anos na Universidade de São Paulo e eu nunca tive uma reunião de negros com índios para discutir e enfrentar nossos problemas comuns. Sempre separados. Sempre me perguntei por que? Esse encontro para mim é o único na minha história de vida como intelectual e pesquisador aqui no Brasil.”
A mesa de abertura, que começa às 18 horas e terá transmissão pela Radio Yandê, conta com a liderança indígena Ailton Krenak, um dos organizadores do evento, Kabengele Munanga, a escritora indígena Eliane Potiguara e o diretor do Memorial dos povos Indígenas, a liderança indígena Álvaro Tukano.
O projeto de nome “Racismo e anti-racismo no Brasil: o caso dos povos indígenas” nasce de uma rede entre a Universidade de Manchester, a Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, e o Núcleo de Cultura Indígena, e conta com o financiamento do Arts and Humanities Research Council, do Reino Unido, e que visa a se expandir em novas alianças.
Os principais objetivos deste encontro entre pessoas indígenas de diversos povos e regiões do Brasil são refletir sobre o racismo, debater sobre a opressão causada pelo racismo e visibilizar as formas como o racismo age contra pessoas e povos indígenas.
Ao longo da história da formação do Brasil, “o índio” foi submetido às mais brutais formas de violência: genocídio, etnocídio, assassinatos, tortura, estupro, expulsão de seus territórios tradicionais, ataque às suas espiritualidades, desumanização, homogeneização das diversidades e das diferenças, escravização, sequestro de crianças, prisões, maus-tratos, desaparecimentos forçados, extermínio em “guerras justas”, correrias ou “caçadas” em que a sua captura era comparada à de animais selvagens.
A relação do Estado com os povos indígenas sempre se caracterizou como um misto de omissão e violência, desde as violações sistêmicas do colonialismo às violações de direitos humanos e esbulho de territórios.
A violência de 518 anos dessa construção do Outro dentro da formação de um país colonial, e de políticas eugênicas de “integração” e “assimilação”, têm a sua forma atual também na difamação nas redes sociais; manchetes de ódio na imprensa; comentários negativos em portais ou nas ruas; declarações públicas de parlamentares de cunho profundamente racista contra indígenas; no líder indígena queimado num ponto de ônibus na Capital Federal; na criança degolada numa rodoviária; nos indígenas presos por cortarem bambu em lago de hidrelétrica que inundou seu território; nos indígenas presos acusados de crime ambiental por caçarem porco do mato numa fazenda de soja que invadiu seu território; nos indígenas atacados e linchados no Maranhão; na indígena atacada e linchada em Santa Catarina; no professor indígena morto a paulada porque, disse o assassino, “o índio mexeu com o meu cachorro”; em indígenas expulsos de transporte público; na recusa a atendimento médico; na esterilização forçada de mulheres indígenas; nos juízes que julgam se os povos originários chegaram antes de 1988 no território ancestral do qual foram expulsos violentamente; nos argumentos sobre um suposto “marco temporal” da colonização. Indígenas são atacados por sua cultura, seu modo de vida, suas práticas espirituais, seu vestuário, suas línguas, sua aparência, mas também por não “serem mais índios”, por usarem roupas ocidentais e falarem português.
A construção do imaginário alegórico do “índio” foi tecida simultaneamente à construção da alegoria do próprio estado brasileiro. O “índio” enquanto o Outro foi atirado num espaço de antítese às ideias de “civilização”, “progresso”, “tecnologia”, “ciência”, “educação” e “moral”, que foram transformadas em hegemônicas pelo processo colonial.
Talvez essa visibilidade invisível do racismo contra indígenas tenha a ver precisamente com o fato de não se pensar nesses ataques como sendo racistas. Daí a importância dessa reflexão ser exposta, e a oportunidade de se questionar sobre o que o racismo visibiliza e o que ele também pode invisibilizar.
A ideia é dar nomes, nomear e investigar a construção do racismo e da forma como ele opera. Indígenas de várias regiões com diferentes experiências e cujos povos tenham diferentes trajetórias de opressão e resistência à colonização e ao colonialismo, poderão se encontrar para discutir, falar, ouvir, levantar, desinvisibilizar o racismo que se intersecciona com outras formas de opressão e a desigualdade das relações de poder escondidas pelo racismo; para denunciar o racismo, e pensar em estratégias anti-racistas e de construção de alianças descoloniais e anti-racistas.
As artes do encontro, como a imagem que ilustra essa coluna, foram criadas pelo artista e designer Denilson Baniwa. As mesas e os debate serão transmitidos via a página no Facebook da Radio Yandê, um canal de etnomídia e comunicação indígena brasileiro, referencia internacional na luta anti-racista e pelos direitos dos povos indígenas, nesta segunda-feira, às 18h.
Muito interessante essa proposta. Qual sabe, em uma outra oportunidade estarei presente para lançar ou apresentar a enci opédia de povos amerindios, com 13.000 verbetes, que estou a finalizar, em Portugal.