A geóloga Adriana Alves conta sua trajetória permeada pelo racismo
Por Fernando Tadeu Moraes, na Folha
A lembrança mais antiga que a geóloga Adriana Alves guarda é a de ter disputado com outras crianças da creche, aos cinco anos, quem conseguiria atirar as próprias meias sobre o muro que separava o estabelecimento de um terreno baldio. Na sua vez, Adriana tentou algo diferente: colocou uma pequena pedra dentro do bolo de meias. Foi a única que conseguiu ultrapassar a parede divisória.
Quando chegou em casa, de noite, foi interpelada pela mãe sobre o que ocorrera com as meias. Acabou contando a verdade. A matriarca então pegou uma vela, uma faca e, com a filha, foi até o terreno baldio resgatar as meias perdidas. Eram as únicas que Adriana tinha.
A recordação, que a geóloga conta sem mostrar sinal de ressentimento, ilustra bem tanto a inteligência da jovem, que posteriormente a ajudou a se tornar uma das pouquíssimas professoras negras da USP, como o ambiente de precariedade material no qual cresceu.
“Lembro a cara de desgosto da minha mãe. Não pelo que eu havia feito, mas por termos de passar por aquela situação”, diz Adriana, 37, em sua sala no Instituto de Geociências, onde é docente desde 2009.
A trajetória improvável foi coroada recentemente com um polpudo auxílio de R$ 100 mil do Serrapilheira, primeira instituição nacional privada de apoio à pesquisa, para ela desenvolver seu projeto.
A geóloga quer entender porque dois eventos geológicos muito similares ocorridos em momento diferentes —erupções vulcânicas na Sibéria, há 250 milhões de anos, e no centro-sul do Brasil, há 136 milhões de anos— tiveram desfechos tão diferentes. Enquanto o primeiro produziu a maior extinção jamais vista na Terra, o segundo, aparentemente causou apenas perturbações leves no clima e a vida seguiu seu curso normal.
Adriana Alves nasceu em Diadema, na Grande SP. Sua mãe era empregada doméstica; o pai, que ela só conheceu tardiamente, motorista de ônibus. Apesar das dificuldades financeiras, a pesquisadora diz ter tido uma infância feliz junto com a irmã gêmea, Luciana, e o irmão mais velho.
A mãe, que não ultrapassara a quarta série, exigia das filhas dedicação total aos estudos. “Ela é a leitora mais voraz que conheço”, diz a geóloga acerca da mãe, “mas que teve retirado o direito de estudar muito cedo. Ela não quis que a história se repetisse com os filhos”.
Quando Adriana tinha 12 anos, os pais se separaram e a família se mudou. A mãe e os três filhos passaram a viver num porão formado por quarto e banheiro. O ambiente era insalubre. “O esgoto da casa de cima escorria e passava no meio do quarto”, diz.
Na nova escola, a adolescente descobriu o racismo. “Havia tirado dez numa prova de matemática, mas a professora, em vez de me parabenizar, disse que na próxima eu iria sentar bem na frente dela. Para ela, eu só poderia ter colado para ter tirado aquela nota.”
No ano seguinte, os pais reataram, e todos se mudaram para um local no extremo da zona sul paulistana. “Era um lugar péssimo, dentro de uma comunidade, mas o racismo diminuiu, pois havia muitos negros.”
Com 15 anos, ingressou numa escola técnica. Além das disciplinas do ensino médio, fazia o curso de processamento de dados. Era a única da sala que nunca havia ligado um computador. Começou a trabalhar nessa época, como atendente em um escritório. O périplo casa-trabalho-escola-casa lhe custava de cinco a seis horas diárias dentro de ônibus.
Durante o curso técnico, o bom desempenho de Adriana chamou a atenção de um professor. “Ele perguntou se eu já havia pensado em fazer vestibular”. Nunca, ela respondeu.
Escolheu tentar o curso de geologia devido a um jogo de computador de que gostava. Nele, uma equipe de cientistas era enviada a um meteoro em rota de colisão com a Terra. “O geólogo era o que fazia as observações mais interessantes.”
Foi aprovada. Na sua turma, era a única negra. Adriana descreve sua dificuldade para se conectar com aquele meio. “Como eu não me via refletida nos meus colegas, achava que eles não me viam como par.”
Aos poucos, contudo, foi fazendo amigos. A estratégia para sobreviver socialmente foi se alienar da questão racial. “Se não tivesse feito isso, acabaria ficando isolada. O resultado é que me dei conta de que existe gente boa de todas as cores e de todos os estratos sociais. Isso é libertador.”
A atitude, porém, não a protegia do racismo difuso no campus. No segundo ano, passou na frente da sala de um professor, que a chamou: “mocinha, mocinha, não tiram o lixo da minha sala há três dias. Isso é um absurdo, você pode resolver isso?”. “Disse a ele que era aluna e ficou aquele clima horrível de constrangimento.”
Adriana concluiu a graduação e ingressou no doutorado. Foi a primeira aluna do programa de pós-graduação a terminar a tese com um artigo aceito numa revista renomada. “Depois da defesa, meu orientador, que nunca fazia elogios, disse à minha mãe que talvez eu fosse a pessoa com mais tino científico que ele já havia conhecido.”
No primeiro concurso para professor que prestou na USP, um episódio colaborou para o seu insucesso. “Um dos membros da banca me disse: ‘A sua erudição é surpreendente para alguém como você’. Isso me desestruturou completamente. Se eu tivesse uma matriz interna diferente, talvez tivesse tomado como elogio. Naquele momento tomei como racismo puro, amplo e irrestrito.”
No concurso seguinte, foi aprovada. Passou então a compor um grupo ainda mais reduzido do que o de alunos negros da USP: o de docentes negros da USP. Esse grupo perfaz apenas 0,3% dos cerca de 5.500 professores da universidade. No topo da carreira, a situação é ainda pior. Dentre os 700 docentes titulares, apenas três são negros —dois deles estrangeiros.
“Cientistas gostam de fingir que fazem ciência fora de um contexto social. Isso não existe. Você acha que eu não trouxe a minha história para a ciência que eu faço? É claro que eu trouxe. Porque eu tive de pensar de modo diferente do status quo, a minha ciência é muito diferente, por exemplo, da praticada pelos pesquisadores mais velhos daqui.”
Como docente, viu na luta pelas cotas raciais —enfim aprovadas na USP no ano passado— uma oportunidade de compensar a alienação do passado.
“Cotas raciais significam representatividade. E isso importa pois, em geral, as pessoas precisam se ver refletidas para cogitarem seguir determinado caminho. Se você é negro, precisa ter a sorte de alguém na sua trajetória te sonhar. Aumentar a representatividade é permitir que essa pessoa diga: eu vejo alguém igual a mim lá, eu posso me sonhar.”
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A Professora Doutora Adriana Alves, no Instituto de Geociências da USP. Foto: Karime Xavier /Folhapress