por Mario Magalhães, em The Intercept Brasil
Divino maravilhoso, de Caetano Veloso e Gilberto Gil, é uma das músicas que ressoam com mais afinação o espírito do tempo de 1968. Lançada naquele ano por Gal Costa, 23, advertia e encorajava: “É preciso estar atento e forte/ Não temos tempo de temer a morte”.
O novo álbum de Elza Soares, “Deus é mulher”, é fecundo em criações que cantam e contam o Brasil de cinquenta anos depois do toque de Gal. Contém onze faixas, com rap, canção, samba, frevo. Chegou às plataformas digitais na quinta-feira. Será vendido em CD e, ói nóis aqui traveiz, vinil e cassete.
Eu cantarolava uma música do disco quando um galho despencou de uma árvore e acertou meu cocuruto. Doeu, desnorteou-me, mas segui em frente. O maldito galho caiu sobre a calçada de uma rua sossegada de Botafogo, pouco antes das duas da tarde do sábado, quando uma ventania de noite de filme de terror sobressaltou o Rio. A pancada foi forte, embora nem galo tenha feito. Vai ver que sou mesmo um cabeça-dura.
Ao escutar o álbum de Elza, lembrei uma história que contavam na faculdade. Um professor de semiótica teria convidado Caetano para conversar com uma turma. Diante do compositor, esquadrinhou letras de autoria do convidado. Interpretou intenções e efeitos: um signo aqui, um significante ali, um significado acolá. Caetano o teria decepcionado ao esclarecer que nada daquilo lhe ocorrera ao compor. Não sei se o causo é verdadeiro, mas que é saboroso é.
Obras de arte, incluindo as obras-primas, podem prescindir de recados. “A arte é um exercício experimental de liberdade”, enunciou o crítico de artes plásticas Mário Pedrosa. E basta. Deus é mulher cose versos que seriam belos e vivazes em qualquer época. Só que talvez sejam mais tocantes ouvidos hoje, no olho do furacão. O crítico musical Luiz Fernando Vianna avaliou o álbum com cinco estrelas, a cotação máxima. Sumarizou: os discos de Elza “com a turma paulista são fundamentais não só para a música brasileira, mas para a vida do país”. Tabelando com melodias inspiradas, as letras não se assemelham a discursos. Comovem mais do que o mais combativo deles. São arte.
‘Pra que negar que o ódio é que te abala?’
A gravação atravessou dezembro, janeiro e fevereiro. Guilherme Kastrup produziu. Elza parece falar não apenas do que passou, mas, profética, do que sobreviria. Assim abre a primeira música, O que se cala, de Douglas Germano: “Mil nações moldaram minha cara/ Minha voz uso pra dizer o que se cala/ O meu país/ É meu lugar de fala”.
Recordei Marielle e as Marielles da vida. Hoje os assassinatos de Marielle Franco e Anderson Gomes completam 70 dias, sem solução. A vereadora era bissexual e, como Elza, carioca, negra e crescida em favela. No dia 8, o repórter Antônio Werneck revelou o depoimento de um miliciano à Polícia Civil. O homem afirmou que o miliciano e ex-policial militar Orlando Oliveira de Araújo, mal-afamado como Orlando de Curicica, e o vereador Marcello Siciliano tramaram o crime. O motivo seria contrariedade com ações políticas de Marielle na Cidade de Deus. Orlando está em cana, mas não como mandante do duplo homicídio. Ele e Siciliano – o sobrenome sugere, mas não prova – alegam inocência. O mistério e a impunidade persistem.
O que se cala indaga “Pra que enganar?”.
Na primeira madrugada do mês, um prédio de propriedade da União ocupado por 171 famílias sem moradia pegou fogo em São Paulo, e seus 24 andares desabaram. Sete corpos foram encontrados nos escombros, como os da trabalhadora desempregada Selma Almeida da Silva e de seus filhos gêmeos, Wendel e Werner, de 10 anos. Ricardo Oliveira Galvão Pinheiro saíra, mas voltou para socorrer quem ficara. Os bombeiros o resgatavam do oitavo andar quando o edifício ruiu e o carregou. Ricardo vivia de descarregar caminhões. O deputado Eduardo Bolsonaro tuitou sobre “o prédio invadido pelo MTST”. Enganação: a ocupação era controlada por uma organização sem escrúpulos que cobrava aluguel dos moradores, e não pelo Movimento dos Trabalhadores Sem Teto. O MTST é coordenado por Guilherme Boulos, o alvo do filho de Jair Bolsonaro.
Por que “tanto mentir?”, pergunta O que se cala.
O Facebook lançou no Brasil um programa de verificação de informações para combater mentiras fermentadas com má-fé. Duas plataformas de checagem lideradas por jornalistas qualificadas e íntegras, Lupa e Aos fatos, participam do projeto. O Movimento Brasil Livre lançou uma campanha de desmoralização dos jornalistas das agências. Tem seus motivos: quando o MBL ajudou a disseminar falsidades sobre Marielle –“estava engajada com bandidos”, “foi eleita pelo Comando Vermelho”– a checagem jornalística contribuiu para desmascarar a mentira. Uma de muitas, muitíssimas.
Mais interrogação: “Pra que negar que o ódio é que te abala?”.
O MBL se propôs a patrulhar a leitura alheia, “denunciando” um jornalista que tinha na estante de casa meu livro Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo. Procurado pela Agência Pública para esclarecer dados alardeados pelo movimento extremista sobre regime prisional semiaberto, o MBL respondeu com a imagem de um bilau e a frase “check this!” (“cheque isto!”). Freud – e a política – explica.
‘Eu não obedeço porque sou molhada’
Em Exu nas escolas, de Kiko Dinucci e Edgar, Elza confronta a educação que despreza a cultura africana: “Exu no recreio/ Não é Show da Xuxa”, “Exu nigeriano”, “Deus iorubano”.
No começo do mês noticiou-se que a professora Maria Firmino foi afastadadepois de dar uma aula, na cidade cearense de Juazeiro do Norte, sobre “patrimônio material, imaterial e natural de matriz africana”. Em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, o terreiro de candomblé Centro Espírita Caboclo Pena Branca foi vandalizado e queimado. Nas paredes, os invasores picharam “Fora macumbeiros, aqui não é lugar de macumba”. O Estado é laico, mas deveria ensinar sem preconceitos a história das religiões – de Santo Agostinho a Exu, de Martinho Lutero a Allan Kardec, e daí em diante.
Edgar, coautor de Exu nas escolas, faz parceria no vocal com Elza: “Exu te ama. E ele também está com fome. E as merendas foram desviadas novamente”.
De Tulipa Ruiz, Banho expõe Elza ainda mais sensual, acompanhada das percussionistas do Bloco Afro Ilú Obá de Min: “Acordo maré/ Durmo cachoeira/ Embaixo sou doce/ Em cima, salgada/ Meu músculo musgo/ Me enche de areia/ E fico limpeza debaixo da água”. “Quando tá seco/ Logo me desço/ Eu não obedeço porque sou molhada.”
Enquanto Elza entoa o prazer e a liberdade, avança na Câmara a tramitação de um dos projetos elaborados com o invólucro Escola Sem Partido. A dita bancada evangélica o patrocina. Seriam proibidas disciplinas que falassem em “gênero” e “orientação sexual”.
Ninguém canta o desejo hoje no Brasil como, aos 87 anos, Elza Soares. E ninguém escreve sobre o desejo como Sérgio Sant’Anna, de 76, impressão renovada pelo seu livro Anjo noturno.
‘Deus há de ser fêmea’
Eu quero comer você, de Alice Coutinho e Romulo Fróes, inicia na retranca: “Eu quero dar pra você/ Mas eu não quero dizer/ Você precisa saber/ Ler”. Transita para o ataque: “Eu quero comer você”. É a dialética do desejo e da emancipação. Fecha com um “uiii” deleitoso de Elza.
Língua solta, também de Alice e Romulo, estimula: “É dia de encarar o tempo e os leões/ Se tudo é perigoso, solta o ar/ Escuta a maré, a língua, o rádio, a previsão/ Por nós só nós e um mundo inteiro pra gritar”. Recusa a pregação para convertidos e a conversa restrita a quem pensa igual: “Nós não temos o mesmo sonho e opinião/ Nosso eco se mistura na canção/ Quero voz e quero o mesmo ar/Quero mesmo é incomodar”.
Hienas na TV, de Kiko Dinucci e Clima, reitera o apreço pelo diálogo e o pensamento autônomo: “Sim/ Digo sim pra quem diz não/ E pra quem quiser ouvir/ Eu digo não”.
Clareza, de Rodrigo Campos, relativiza certezas: “Clareza um sopro de dúvida”.
Um olho aberto, de Mariá Portugal, ilumina: “Ora, cara, não me venha com esse papo/ Sobre a natureza/ Cada um inventa a natureza que melhor lhe caia”.
E dói: na quinta-feira em que Deus é mulher veio ao mundo, celebrou-se o Dia Internacional Contra a Homofobia. A rádio Jovem Pan veiculou nas redes sociais um apelo-campanha ultrajante: “Para falar dos números crescentes de violência contra #LGBTQ no Brasil, convidamos todos vocês a se colocarem dentro desta triste estatística, manifestando qual seria #MinhaUltimaMusica”. Não música para viver, mas para ser morto.
No dia 7, a polícia informara que a estudante Matheusa Passareli, de 21 anos, havia sido assassinada por traficantes do morro dos 18, na zona norte do Rio. Seu corpo teria sido queimado. Aluna de artes visuais na Uerj, Matheusa se identificava como pessoa não binária (nem somente homem, nem somente mulher).
Em Credo, mais uma de Douglas Germano, Elza torna a peitar o obscurantismo: “Minha fé quem faz sou eu/ Não preciso que ninguém me guie/ Não preciso que ninguém me diga/ O que posso e o que não”. “A mentira conheço tão bem/ Não preciso que ninguém me aponte/ O castigo que serve só para vender o perdão”.
O pastor evangélico e deputado Marcos Feliciano, em pregação hidrófoba, condenou o catolicismo como “religião morta e fajuta”. Há duas semanas, o padre católico Fábio de Melo, em vez de semear tolerância, rosnou: “Com todo respeito a quem faz a macumba, pode fazer, pode deixar na porta da minha casa que, se tiver fresco, a gente come”. Como pegou mal, o sacerdote zeloso com a imagem de bom moço desculpou-se.
A penúltima faixa, Dentro de cada um, de Pedro Loureiro e Luciano Mello, combina epifania e catarse: “A mulher dentro de cada um não quer mais silêncio/ A mulher de dentro de mim cansou de pretexto/ A mulher de dentro de casa fugiu do seu texto/ E vai sair de dentro de cada um”.
A mulher está nas mulheres, mas não só. “A mulher é você”; “A mulher sou eu.” Em suma, lute como uma garota. De preferência, uma garota feminista.
A saideira, Deus há de ser, de Pedro Luis, traz o verso que rendeu o título do disco: “Deus é mulher/ Deus há de ser/ Deus há de entender/ Deus há de querer/ Que tudo vá para melhor”. “Deus há de ser fêmea.” “Deus é mãe.”
‘Querem matar os nossos sonhos’
No dia do lançamento do álbum de Elza, anunciaram números da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Os brasileiros que desistiram de procurar trabalho já são 4,6 milhões, recorde da série instituída em 2012. O IBGE chama esses cidadãos de “desalentados”.
A subutilização da força de trabalho afeta 27,7 milhões, outro recorde do governo Michel Temer. O resultado soma desempregados, subocupados por insuficiência de horas de trabalho e “desalentados”.
Soube-se neste mês que, quase uma década e meia depois da queda mais recente, a mortalidade infantil voltou a subir: 11% em 2016, em relação ao ano anterior.
Elza Soares teve um filho que morreu de fome. Na década de 1950, o apresentador Ary Barroso perguntou à jovem caloura, vestida com modéstia, de que planeta ela vinha, Elza respondeu: “Eu venho do planeta fome”.
Um dia depois da prisão de Lula, em abril, Elza se apresentou em Buenos Aires. Soltou a voz: “O meu país enfrenta um triste momento político e social. Querem matar os nossos sonhos, prender nossas liberdades. Não irão conseguir. Lutarei por ele, por nós. Viva a democracia!” O público reagiu com gritos de “Lula livre!” e “Lula libre!”.
No futuro, quem quiser narrar os perrengues, as lutas e as esperanças do ano de 2018 terá à disposição uma tremenda trilha sonora, o álbum Deus é mulher. Hoje, a voz de Elza, como a de Gal em 1968, adverte e encoraja.
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Expressão plena de talento coragem e humanidade. Há vários anos acompanho e me deleito com a obra e a presença dessa talentoso artista.