Três histórias sobre intervenção militar, por Ayrton Centeno

Sul21

Muitas vozes pedem intervenção militar no Brasil. A mais longa intervenção militar da história nacional durou duas décadas e terminou 33 anos atrás. Meio milhão de brasileiros foram investigados, 50 mil presos, 11 mil acusados, 10 mil torturados, 10 mil exilados, 4.862 cassados e 475 assassinados. Na época da sua implantação foi saudada como o remédio para todos os problemas do país. Da intervenção militar vem muitas lembranças. Entre tantas, vale escolher três para esclarecer do que exatamente estamos tratando:

Os seios de Sonia

Gaúcha de Santiago do Boqueirão, Sonia Maria Moraes Angel Jones, 17 anos, acompanhou o pai, coronel do exército, à marcha que comemorou a queda do governo constitucional e a intervenção militar de 1964. João Luiz Moraes levou a esposa e as filhas adolescentes para festejar aquele esplendoroso 2 de abril no Rio, para onde a família se mudara. Cinco anos depois, Sonia trocara de lado e foi presa numa manifestação de estudantes. Libertada, exilou-se na França. Em 1973, ao saber que seu marido, Stuart Angel Jones, estava desaparecido, voltou ao Brasil. Militava na Ação Libertadora Nacional, a ALN. No mesmo ano, foi morta trocando tiros com a polícia política.

Na verdade, não houvera confronto, Sônia não trocara tiros nem fora morta. Presa, estava sendo chacinada. “Nas dependências do DOI-CODI do I Exército, minha filha foi torturada durante 48 horas, culminando essas torturas com a introdução de um cassetete da Polícia do Exército em seus órgãos genitais, que provocou hemorragia interna”, descreveu o coronel Moraes. Estuprada, Sonia sofreu massacre tão feroz que teve os seios arrancados. Seu pai e sua mãe foram detidos. Agredido, o coronel foi ameaçado de ser metralhado e jogado do terceiro andar. Solto, recebeu advertência que estava “falando demais”. Certo dia, recebeu um presente inusitado do comandante do DOI-Codi, general Adyr Fiúza de Castro. Era um cassetete. E era um aviso. Com aquele cassetete sua filha fora estuprada e morta.

As costelas de Chael

Chael Charles Schreier cursava o 5º ano de Medicina e integrava a direção da UNE. Após o AI-5, caiu na clandestinidade e ingressou na VAR-Palmares. Preso, foi visto pela última vez com o pênis dilacerado e o corpo ensopado do sangue que vertia de vários ferimentos. No entanto, a versão oficial indicava que morrera de “um ataque cardíaco”.

Na vida real, Chael fora massacrado por oficiais do Centro de Informações do Exército (CIE) e da 2ª Seção da Companhia da PE, no Rio. Entre seus algozes estava o capitão Airton Guimarães Jorge, hoje mais conhecido como banqueiro do jogo do bicho. Torturado até a morte, Chael recebeu chutes por todo o corpo. O atestado de óbito citou sete costelas quebradas, hemorragia interna, hemorragia puntiforme cerebral e equimoses disseminadas.

Quatro dias após o assassinato, o corpo de Chael foi entregue à família em São Paulo. Veio em caixão lacrado. Mas, para ser enterrado em conformidade com os rituais do judaísmo precisaria ser lavado. Então, acabou sendo aberto mesmo com o cemitério infestado de agentes armados. Sigilosamente, uma junta médica realizou uma nova autópsia, que constatou a tortura. A morte de Chael foi notícia no New York Times. No Brasil, os jornais divulgaram sua prisão quando ele já estava morto.

O fígado de Paiva

No dia de janeiro de 1971, agentes do Centro de Informações da Aeronáutica, o Cisa, bateram na casa do engenheiro Rubens Paiva no Leblon, zona sul do Rio. Não tinham mandado de prisão mas arrastaram o ex-deputado do PTB.   Cassado, Paiva não militava na luta armada. Porém, sua atuação incisiva na CPI que investigara as relações carnais do direitista Instituto Brasileiro de Ação Democrática (Ibad) com a CIA, a agência de inteligência dos EUA, e a nutrição com dólares de campanhas parlamentares no Brasil, nunca fora esquecida. “Pois é, deputado, finalmente vamos nos entender com o senhor”, teria avisado um dos seus carrascos logo na chegada.

No quartel da 3ª. Zona Aérea, comandado pelo brigadeiro João Paulo Moreira Burnier, sofreu as primeiras torturas. Logo, o Cisa repassou o preso ao Departamento de Operações e Informações, o DOI do I Exército. Lá, foi torturado pelo agente Antonio Hughes de Carvalho. Era de tal violência e intensidade que outro oficial achou melhor advertir seu superior que, daquela maneira, Paiva morreria. Um médico, Amílcar Lobo, chamado para avaliar a situação, constatou um quadro de hemorragia abdominal através de ruptura do fígado. Não havia muito mais o que fazer, diagnosticou. Seu corpo nunca foi encontrado.

Em 2014, o coronel do exército Paulo Malhães admitiu ter dado sumiço nos restos mortais. Disse primeiramente que os enterrou e, numa segunda versão, desencavou-os e jogou-os num rio. A família nunca pode lhe dar sepultura digna.

Nem Sonia, nem Chael, nem Paiva foram acusados de causarem qualquer ferimento ou morte, embora os dois primeiros pertencessem à organizações de combate armado ao regime. Suas prisões foram ilegais. Não tiveram direito a julgamento ou sentença. O que os matou foi a decisão do regime de eliminar aqueles que o confrontavam. O poder sem limites que uma intervenção militar propicia.

Painel com rosto de alguns dos mortos e desaparecidos durante a ditadura militar no Brasil. (Reprodução)

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