No sul do país, muitas das terras tradicionais foram transformadas em fonte de renda, em capital especulativo através do plantio de grãos, gado e por especulação imobiliária. Milhares de indígenas vivem em pequenas áreas de terras ou acampamentos na beira das estradas.
Por Cimi Regional Sul
Um grupo de famílias do Povo Kaingang retomou, na madrugada de domingo para segunda-feira, 16 de julho, parte de uma área de terras que consideram como terra ancestral. A área ocupada está localizada no município de Canela (RS) e foi sobreposta por um parque ambiental administrado pelo governo federal, denominado de Floresta Nacional de Canela. A área está localizada a sete quilômetros do centro da cidade. No parque existem cursos d’água e vegetação nativa, em especial a araucária.
É a terceira vez que famílias Kaingang, ao longo dos últimos dez anos, ocupam aquele território. Eles reivindicam – junto à Funai, Ministério da Justiça e Ministério Público Federal – a realização de estudos circunstanciados de identificação e delimitação da área, pois é considerada por eles como sendo de seus antepassados.
As famílias Kaingang são coordenadas por irmãos, filhos, netos e sobrinhos do Kujã – Líder Religioso – Zílio Kaingang, falecido no ano passado. As lideranças afirmam que seu Zilio morreu triste por não ter conseguido, apesar de toda a luta desencadeada ao longo de décadas, viver em paz sobre sua terra tradicional. O Kujã, no período em que se encontrava doente, vítima de um câncer, dizia aos parentes que sonhava com a terra e que nela desejava ter vivido e criado seus filhos e netos.
Essa retomada dos Kaingang compõe um contexto de luta por direitos consagrados constitucionalmente, mas vai além desse sentido. Está relacionada a mística e a cosmovisão Kaingang de viver naquela terra onde os umbigos de seus antepassados então enterrados.
Os Kaingang, ao longo da história, acabaram sendo expulsos de suas terras tradicionais, no entanto permaneceram em seus entornos, circulando sempre nas proximidades das terras, acampando, movimentando-se e ensaiando o regresso. Essa é a maneira de estabelecerem relações contínuas com seus lugares sagrados e com o mundo dos espíritos daqueles que morreram.
Lamentavelmente, milhares de indígenas vivem hoje em pequenas áreas de terras ou acampamentos na beira das estradas no centro do estado, na serra gaúcha, no litoral e na região metropolitana de Porto Alegre.
E neste processo, as terras foram degradadas e pouco restou, no Sul do país, do que eram os territórios quando eram de usufruto exclusivo dos Kaingang: áreas com matas, com animais para caçar, com rios e lagos sem poluição.
Muitas de suas terras foram transformadas em fonte de renda, em capital especulativo através do plantio de grãos (soja, milho, trigo), através da implantação de grandes latifúndios (criação de gado e de grandes granjas da monocultura). Novas ameaças vem surgindo para a expansão imobiliária. E, nas últimas décadas, áreas que não serviam para a agricultura e nem para a criação do gado de corte, sobre as quais restavam recursos ambientais significativos ou, em muitos casos, em processo de extinção por causa da exploração indiscriminada da madeira, foram transformadas em reservas ou parques de preservação.
São aspectos que difere significativamente do modo de exploração desenfreada que caracteriza as sociedades capitalistas, para as quais as terras e os recursos naturais são vistos como bens para consumir, mesmo que isso signifique destruir. Na concepção da maioria dos povos, a terra é mãe e como tal precisa ser cuidada e protegida.
As ações de retomada de terras originárias são as formas encontradas pelos povos indígenas com o objetivo de chamar a atenção da sociedade brasileira para essa realidade e, ao mesmo tempo, para cobrar do governo brasileiro que a Constituição Federal seja respeita e, portanto, o direito à demarcação das terras assegurado em definitivo.
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Foto: Cimi Sul.