O racismo vem da boca

Por Jarbas Tomaschewski, no Diário Popular

A mesma boca e o mesmo caso clínico, com uma única diferença: através da manipulação digital, a imagem do paciente ganhou duas cores de pele, branca e preta. Levada à análise de 636 dentistas de quatro municípios brasileiros, Pelotas, Caxias do Sul, Aracaju (SE) e Fortaleza (CE), foi solicitado aos profissionais a decisão pelo melhor tratamento. E aqui essa história muda de rumo. Sai de cena o tratamento odontológico e sobe ao palco o racismo institucional. Ao paciente de pele negra – que na verdade é branca -, a orientação foi por procedimentos menos complexos e mais baratos.

Para Marcos Britto Corrêa, professor adjunto da Faculdade de Odontologia da UFPel, professor permanente do Programa de Pós-Graduação (PPG) em Odontologia e docente colaborador do PPG em Epidemiologia, não restam dúvidas quanto ao resultado da pesquisa conduzida por ele e os colegas. A cor da pele influenciou diretamente na decisão do tratamento. Com o reforço de um segundo pilar: a todos os entrevistados foi deixado claro que não havia restrição financeira aos procedimentos. Mesmo assim, ao negro as opções dadas foram as mais baratas.

O docente lembra que um trabalho semelhante, no início dos anos 2000 e feito no Nordeste, já havia comprovado a diferença na decisão de dentistas conforme a cor da pele do paciente. Foi indicada mais extração de dentes cariados aos negros. Na pesquisa feita pela Faculdade de Odontologia, a UFPel utilizou-se da ação cooperativa com outras universidades federais, do Sergipe e do Ceará, para realizá-la. Além disso, os alunos da graduação aplicaram presencialmente os questionários.

“O caso (dos dois pacientes) era exatamente o mesmo. A gente manipulou as imagens no photoshop, internas da boca, porque a gengiva do paciente negro tem algumas pigmentações, particularidades. E a foto externa da boca, aí sim, ou de um paciente negro ou de um paciente branco. Mas o caso em si, o dente, era exatamente o mesmo. Era sorteado se ele ia observar o paciente branco ou o paciente negro”, explica Corrêa.

O que foi proposto

Sem diferença financeira aos dois. Mas…

A questão racial também está associada ao fator econômico. No Brasil, sabe-se, negros são mais pobres. Em uma década, de 2005 a 2015, embora tenha aumentado o número de negros entre os brasileiros mais ricos, de 11,4% para 17,8%, brancos continuaram sendo maioria – oito em cada dez – entre o 1% mais rico da população. Já entre os mais pobres, três em cada quatro são negros, informa o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

E justamente para eliminar qualquer dúvida em relação ao custo do tratamento, no momento de apresentação do caso foi dito aos profissionais que eles tinham total liberdade de escolha, sem restrição financeira.
A situação envolveu ainda tomadas de decisão pelos dentistas, lembra Correa, que muitas vezes consideram apenas a parte técnica e ignoram outros componentes, outras questões, importantes na hora da escolha. Ou seja, enxergar o paciente além da boca.

Saiba mais sobre os resultados

– Em nenhum dos quatro municípios houve diferença de resultados em relação ao racismo no tratamento. O mesmo padrão se repetiu.

– Os casos para análise foram apresentados aos profissionais em clínicas, consultórios particulares e públicos.

– Também assinaram a pesquisa Luiz Alexandre Chisini, Thaís Gioda Noronha, Ezequiel Caruccio Ramos, Reginaldo Batista dos Santos Junior, Kaio Heide Sampaio e André Luis Faria e Silva.

– A conclusão do trabalho foi direta: “A cor da pele do paciente influenciou a escolha do tratamento pelo dentista”.

– O resultado da investigação foi publicado na revista internacional Clinical Oral Investigations.

O trabalho pode ajudar em relação ao tema?

“Esse trabalho alerta. Essas questões devem ser discutidas. Como fatores subjetivos podem estar influenciando nas decisões que a gente toma. Essas questões têm que ser abordadas na graduação, na formação dos profissionais. Têm um papel importante de denúncia. A gente não vai eliminar a questão racial com esse trabalho. Mas isso precisa ser dito, para que, enquanto sociedade, a gente entenda esses resultados e reforce a necessidade de combater discriminações. A própria exposição do resultado reforça a necessidade de que se combata”, alerta Marcos Britto Corrêa, professor.

Reflexos

Para Fábio Gonçalves, presidente do Conselho da Comunidade Negra de Pelotas, o resultado não chega a ser uma surpresa, embora não diminua o impacto do fato e da denúncia. É grave, admite Gonçalves. Torna visíveis comportamentos discriminatórios frequentemente observados no cotidiano do trabalho, de uma forma mascarada. A pessoa pratica o racismo, mas se vê segura em relação a isso, sob o argumento de que “não deixei de fazer, de atender”.

Num exercício em torno da pesquisa, o presidente do Conselho inverte os papéis para lembrar que situações opostas também deixam aflorar práticas racistas. Dentistas, médicos e outros profissionais negros, não apenas na área da Saúde, e em atividade diária, enfrentam contestações de pacientes e do público, como se não pudessem estar ocupando tais cargos. O olhar da população é quase sempre à procura de alguém branco para atender, nos consultórios, nas repartições públicas e privadas, no comércio.

Fotos: Divulgação Diário Popular.

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