por Bruna de Lara, em The Intercept Brasil
A esterilização voluntária de Janaína Aparecida Quirino ainda não tinha ganhado os noticiários quando, fazendo um levantamento inédito de dados do SUS sobre laqueaduras, me ocorreu a suspeita: será que as mulheres estão sendo esterilizadas à força? Eu havia acabado de descobrir que existem laqueaduras de emergência e que em 2017, pela primeira vez, elas foram mais comuns do que as eletivas. Comparando o primeiro trimestre deste ano com o de 2008, o número de esterilizações urgentes duplicou. E ninguém sabe explicar por que isso está acontecendo – nem o que, afinal, é uma laqueadura de urgência.
A laqueadura, popularmente conhecida como “ligadura de trompas”, é uma cirurgia de esterilização feminina – ou seja, um método anticoncepcional permanente, destinado a mulheres que desejam nunca engravidar. Como a finalidade do procedimento é evitar uma gestação, é muito estranho pensar em uma laqueadura feita em caráter de urgência.
Falei com pesquisadoras, médicas, funcionárias da SES, a Secretaria Estadual de Saúde do Rio de Janeiro, e uma enfermeira. À primeira vista, a maioria estranhou o termo. “Não existe laqueadura de urgência”, escreveu Sandra Garcia, doutora em Demografia, uma frase que foi repetida pela enfermeira Edineia Lazzari, que trabalha em uma clínica da família na Rocinha, favela do Rio. Há 20 anos atuando no Programa de Atenção Integral à Saúde da Mulher, Criança e Adolescente da SES, a especialista em saúde pública Tizuko Shiraiwa também afirmou desconhecer essa classificação para laqueaduras.
De forma vaga, o Ministério da Saúde afirmou que, de fato, não são feitas laqueaduras de urgência. Mas, às vezes, a cirurgia pode ser registrada no código de atendimento urgente “por, provavelmente, ter-se identificado risco à saúde da mulher em futura gestação”. Seria, portanto, uma forma de indicar que a laqueadura foi feita por razões médicas, e não como método contraceptivo. Pelo menos na teoria.
Para uma mulher fazer uma laqueadura no Brasil, a Lei de Planejamento Familiar determina desde 1997 que ela tenha mais de 25 anos ou pelo menos dois filhos vivos. Quem é casada precisa ainda da autorização do marido. Uma hipótese para o mistério das laqueaduras urgentes é que elas sejam uma versão de um clichê brasileiro: o jeitinho. Sem acesso ao método contraceptivo que desejam por não atenderem a requisitos pensados há mais de 20 anos, é possível que as mulheres, em acordo com os médicos, tenham encontrado uma brecha no sistema. “A urgência pode ser uma estratégia para elas conseguirem a laqueadura sem atender esses critérios. Por exemplo, sem pedir permissão ao marido”, arriscou Carmen Lucia Luiz, coordenadora da Comissão Interdisciplinar de Saúde da Mulher do Conselho Nacional de Saúde.
É apenas um palpite. Porém, outras pessoas da área, como a enfermeira Edineia, igualmente surpresas com os dados, também apostam nele. Embora a laqueadura tenha sido legalizada com a lei de 1997, ainda são poucos os serviços que podem fazer o procedimento. Como essa é uma cirurgia “mutilatória, de difícil reversão”, segundo Carmen, as mulheres precisam passar por 60 dias de aconselhamento, recebendo informações sobre outros métodos contraceptivos.
Também por isso, a demanda pela cirurgia é muito maior do que a oferta, explicou André Junqueira Caetano professor da PUC Minas, especialista em Demografia. “Você detectou uma consequência dos critérios restritivos da lei“, avaliou. “Dá mais trabalho ir ao serviço credenciado do que fazer uma combinação com o médico.”
Não é coincidência que, em 2017, as laqueaduras em cesarianas também tenham ultrapassado as esterilizações feitas em outros momentos da vida. É um acontecimento inédito desde a aprovação da Lei de Planejamento Familiar, que proibiu as laqueaduras no parto para evitar cesarianas desnecessárias. Antes dela, médicos e pacientes combinavam cesáreas para encobrir as laqueaduras, ainda não legalizadas. Assim, os custos do hospital com a cirurgia eram reembolsados pelo SUS, e os profissionais, muitas vezes, recebiam pelo procedimento extra por fora.
A lei permite uma exceção para laqueaduras no parto: quando o médico julgar que o número de cesarianas anteriores da mulher pode colocar sua vida em risco caso ela engravide novamente. “A conversa que rola no ouvido das mulheres, ainda que possa não haver base científica para isso, é que depois de duas cesarianas não tem mais que ter filho. Quantas fizeram laqueadura na cesárea como urgência por causa de cesarianas anteriores?”, questiona Carmen.
O Ministério da Saúde não soube responder. Em 5 de junho, solicitei ao órgão o número de laqueaduras de urgências feitas no SUS, de acordo com a quantidade de cesáreas anteriores das pacientes. Fui informada de que a ficha de autorização de internações não tem um campo para preenchimento de histórico obstétrico e, por isso, o ministério não tem como indicar as cesarianas anteriores das mulheres laqueadas.
Uma segunda hipótese
Há dez anos, seis a cada dez laqueaduras de urgência aconteciam no parto. Hoje, já são quase 90% – a maioria em mulheres negras. Em 2017, elas foram submetidas ao procedimento 2,5 mais vezes do que em 2008, segundo dados obtidos via Lei de Acesso à Informação.
Levando em conta que é o profissional de saúde quem define os casos em que cesáreas anteriores justificariam uma esterilização, me questiono a possibilidade de estarem mais dispostos a recomendar o procedimento às negras do que às brancas. Em 2008, 32,7% de todas as laqueaduras eram feitas em negras, e 32,8% em brancas. Hoje, são 43,5% em negras, e 29,9% em brancas.
A ginecologista da UFRJ Michele Pedrosa, que trabalhou dez anos anos na Secretaria Estadual de Saúde do Rio, tem outra hipótese para explicar as urgências: o aumento das gestações de alto risco. Em 2002, só 5,8% das cesáreas feitas no SUS eram em gestações arriscadas. Ano passado, já eram quase 20%. Para ela, o aumento desse tipo de gravidez tem a ver com uma piora da saúde pré-natal nos últimos anos, que pode levar às laqueaduras no parto.
“A gente sabe que acontecem combinados entre o médico e a paciente. Na Baixada Fluminense, é comum as mulheres fazerem cesariana pelo SUS e pagarem por fora para serem laqueadas. Isso acontece Brasil afora, mas só com esses dados [do levantamento do The Intercept Brasil] não dá para afirmar que é isso”, ponderou Pedrosa. O único consenso entre as profissionais e pesquisadoras é que as urgências não indicam a possibilidade de os médicos estarem fazendo esterilização forçada nas mulheres. Ainda assim, é curioso que, dias após nossas conversas, tenha vindo a público um caso como o de Janaína, mulher em situação de rua esterilizada à força por ordem da Justiça. E que, duas décadas depois da CPI que investigou laqueaduras compulsórias no Brasil, elas tenham voltado a ser alvo de discussão no parlamento. Na última quarta-feira, duas comissões da Câmara dos Deputados se reuniram para discutir o caso de Janaína.
O paradoxo do acesso
O acesso à laqueadura no Brasil é um paradoxo complexo. E não poderia deixar de ser, em um país que não permite às mulheres terem autonomia sobre seus corpos e insiste em lutar por retrocessos nos direitos sexuais e reprodutivos. Por um lado, critérios de uma lei ultrapassada podem estar incentivando mulheres e médicos a fazer cirurgias ilegais; por outro, muitas mulheres que atendem aos requisitos da lei têm o direito à laqueadura negado por profissionais que se recusam a fazer o procedimento, acreditando que elas irão se arrepender. A situação é tão comum que mulheres sem filhos, mas com mais de 25 anos, criam grupos para recomendar os médicos que fazem a laqueadura legal.
Ainda assim, a esterilização feminina é a forma de contracepção mais comum no Brasil, que tem a décima maior taxa desse método no mundo, de acordo com estudo de 2015 da Organização Mundial da Saúde. “Os americanos chegavam aqui nos anos 70 distribuindo equipamento para os médicos fazerem laqueaduras na população de baixa renda”, lembra Pedrosa, referindo-se ao investimento estrangeiro no controle populacional no Brasil, que também foi alvo da CPMI das laqueaduras.
A laqueadura é um direito das mulheres. Mas o histórico brasileiro, combinado à ausência de informações e à dificuldade de acesso a outros métodos anticoncepcionais de longo prazo, como o DIU, faz com que a opção nem sempre seja consciente. “Como as pessoas falam ‘ligar as trompas’ para se referir às laqueaduras, muitas mulheres vão ao nosso laboratório pedindo para ‘desligar’ depois da cirurgia. Elas não estavam cientes de como funcionava o método quando o escolheram”, contou Pedrosa.
Você já passou por uma laqueadura de urgência? É profissional de saúde e já praticou o procedimento? É pesquisador(a) e está por dentro do aumento desse tipo de cirurgia? Conta para a gente.
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Ilustração: Ana Persona
Que matéria impressionante. Sou só filha de mulher laqueada nos fim dos anos 80 e curiosa do assunto. Mas o mais incrível que constatei com o seu texto e leituras anterioes, é de que na verdade, todas essas medidas/práticas que existem no Brasil, são na verdade modos de controlar o corpo feminino. A sociedade patriarcal nao pode ver um corpo feminino que quer dominar, incidir sobre. Tipo: a mulher quer a laqueadura, não pode. A mulher não quer a laquedura, ela é forçada a fazer. Por mais louco que seja, parece ser assim. O que mais canso de ver são reportagens no qual o centro motivador é o corpo/escolha da mulher sendo contrariada, nao interessa se o tema é amamentação, menstruação, gravidez, ou cor das meias, o patriarcado só existe se for assim.