Falando com a Márcia. Por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

Oi Marcinha,

Tudo bem? Sei que estamos proibidos de conversar por decisão do juiz Rafael Cruz, nesta segunda-feira (16/07), que deu prazo de 15 dias úteis para o teu patrão Marcelo Bezerra Crivella se manifestar por escrito diante da acusação de improbidade administrativa, sob o risco de ser afastado do cargo de prefeito do Rio. Por isso, para despistar o juiz, me identifico aqui com meu nome traduzido ao inglês: Joseph Oversea Too Much, 71 anos, professor em duas universidades e colunista do Diário do Amazonas.

Menina, nem te conto! Descobri que a bolinha dentro do meu olho está meio nebulosa, minha vista embaçada não me deixa corrigir os trabalhos dos meus alunos. Aí, menina, me contaram que a Prefeitura está fazendo o mutirão da catarata nos hospitais do Rio. Estou inscrito, mas tem uma fila com milhares de velhinhos e eu estou lá na rabiola. O que fazer? Esperar o ano 2020? Os alunos me matam se eu não entregar as notas do semestre.

Eis que, de repente, surge solução ao meu problema com o jornalista Bruno Maia Abbud, que se infiltrou no evento “Café da Comunhão” realizado no dia 4 de julho, no Palácio da Cidade, quando o prefeito Marcelo Crivella, bispo licenciado da Igreja Universal do Reino de Deus (IURD), conversou com pastores e líderes de diversas igrejas evangélicas, usando o espaço laico e os recursos da Prefeitura. A matéria investigativa de Abbud, amplamente divulgada, prestou inestimável serviço à cidade do Rio de Janeiro.

O que Abbud, não prejudica?  Lá, na reunião, ele gravou a fala do Crivella, que indicou o caminho de como os fiéis das igrejas evangélicas, especialmente da IURD, podem furar a fila, seguindo o exemplo da mamãe Crivella.

– Se os irmãos conhecerem alguém com problema de catarata, por favor, falem com a Márcia ou com o Marquinhos, é só conversar com a Márcia que ela vai anotar, vai encaminhar, e daqui a uma semana ou duas eles estão operando.

Não vou mentir

Crivella pediu votos ainda para dois candidatos do PRB (vixe vixe), ofereceu isenções de IPTU dos imóveis utilizados pelas igrejas evangélicas, além de incentivar os fiéis a furarem a fila de outras cirurgias: vasectomia, varizes e hemorroidas, o que me sensibilizou em razão de uns probleminhas na próstata que vão me permitir passar na frente dos outros.

– Nós temos que aproveitar que Deus nos deu a oportunidade de estar na Prefeitura para esses processos andarem, pra gente dar um fim nisso – disse Crivella.

Portanto, aproveitemos. Pensei inicialmente em procurar o irmão Marquinhos, numa conversa de homem pra homem, mas mudei de ideia, porque Crivella, na conversa gravada por Abbud, disse que você trabalha com ele há quinze anos, que conhece os diretores de todos os hospitais da rede municipal – Miguel Couto, Souza Aguiar, Lourenço Jorge, Salgado Filho, Piedade e por aí afora, além de diretores da Rede Federal dos hospitais do Rio – Ipanema, Lagoa, Andaraí, Bonsucesso, Fundão etc.

Foi ai que pensei:

– O Marquinhos não está com nada. A Márcia é “o cara”.

Mas como identificar quem pode furar a fila? É fácil. Os órgãos do Município realizaram ilegal e invasivamente censos religiosos e, além disso, quando preenchi o formulário para utilizar o programa, tive de informar o estado de saúde e a minha opção religiosa.

Olha, Marcinha, eu não vou te mentir, Miga. Sem me vangloriar e até com espírito autocrítico, te digo que me identifico com aquele personagem do meu amigo, o escritor amazonense Erasmo Linhares, que disse meio machista, mas de forma sincera:

– “Não senhor, não sou homem de potoca. Nesta minha velha e cansada vida, se menti algum vez, foi só pra pescar mulher”.

Posto que aqui não se trata disso, vou te falar a verdade. Respeito a fé e a religiosidade das pessoas, qualquer que seja ela, porque acho que é algo de profundo, de íntimo, de verdadeiro, mas não sou da Igreja Universal, o que paradoxalmente pode salvar o bispo Crivella na resposta que ele dará ao juiz, se você me ajudar a furar a fila da catarata. Eu me explico.

Fé de mais

Oriundo de família muito católica, fui coroinha e até seminarista. Pois é, menina, eu ia ser padre, olha só. Depois, cultivei enorme simpatia pelas religiões afro-brasileiras que tocam no fundo de minha alma, pelo budismo, pela Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) que tem uns teólogos, pastores e pastoras porretas, pelo espiritismo, mas hoje me identifico mesmo é com a religião Guarani. Invoco sempre Nhanderu.

Como o bispo-prefeito permitirá que fure a fila das cirurgias um simpatizante de religiões afro-brasileiras e indígenas? Preconceituoso e fundamentalista, ele cortou o patrocínio a eventos como o “Barco de Iemanjá”, uma procissão declarada patrimônio cultural do Rio e incorporada através de lei municipal ao Calendário Oficial da cidade, organizada anualmente pela Congregação Espírita Umbandista do Brasil. Deixou o Instituto dos Pretos Novos a ver navios, tentando sufocar uma instituição tão vital para a memória da cidade. Diante disso, tive uma ideia, Marcinha.

A promotora de Justiça Gláucia Maria da Costa Santana entrou em 11 de julho com ação civil pública por ato de improbidade administrativa com pedido liminar. Diante da peça tão brilhante e irrefutável, na segunda-feira (16), o juiz de Direito Rafael Cavalcanti Cruz proibiu Marcelo Crivella de utilizar a máquina pública municipal para defender interesses pessoais ou de seu grupo religioso, de realizar censo religioso dos funcionários para xeretar a fé de cada um, ou de conceder financiamento ou qualquer outra forma de estímulo a entidades religiosas fora das hipóteses legalmente previstas.

E é aqui que eu entro, Marcinha, sua Louca. Se você me ajuda a furar a fila, enganamos a promotora e o juiz e camuflamos a escandalosa fala do Crivella, que contraria os princípios da legalidade, impessoalidade e moralidade administrativa, além de descumprir as normas do SISREG – o sistema nacional que regula o acesso aos procedimentos ambulatoriais e hospitalares. Sabemos que o Estado laico respeita a fé de cada cidadão, justamente porque separa o poder político das organizações religiosas.

Nunca votei no Crivella, nem votarei nos candidatos que ele levou para a reunião no Palácio da Cidade, para quem pediu votos dos “homens e mulheres de Deus”, o que constituiu propaganda eleitoral proibida pela lei. Portanto, se eu furo a fila, o bispo-prefeito, com seu olhar de peixe-morto, estará garantindo a liberdade religiosa dos furadores de fila. Serei a única contraprova de que não são apenas os que pertencem a igreja do prefeito que gozam de tal privilégio.

Já pensou, Marcinha, você ajudar um eleitor do Tarcísio Motta de Carvalho (PSOL) para governador do Rio de Janeiro? Pensa nessa ideia útil para criar um álibi justificador das falcatruas do Crivella, que aliás nem acredita em Deus, porque se acreditasse teria medo do inferno e não ficaria usando mercadologicamente o nome de Deus. Em vão?

P.S. 1 – Se você ajudar minha amiga Cecília Coimbra, do Grupo Tortura Nunca Mais (GTNM) a furar a fila para tratar de sua coluna, ficará com duas contraprovas.

P.S. 2 – O samba do Luiz Fernando “Fala com a Márcia” já viralizou nas redes sociais. Como você, Márcia, pode fazer parte do samba-enredo de alguma escola de samba no próximo ano, deixo aqui o link:

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