Precisa desenhar?

Por Dodô Azevedo, em seu blog

Fim de semana de vitória brasileira no maior evento geek do planeta: na San Diego Comic Con 2018 foi  anunciado o Eisner, maior prêmio do mundo dos quadrinhos, o vencedor de melhor publicação não-norte americana.

Deu “Cumbe”, de Marcelo D’Salete, professor, historiador e quadrinista.

Cumbe quer dizer quilombo. D’Salete, autor da monumental obra “Angola Janga”, a história do Quilombo dos Palmares, para onde corriam os escravos em busca de uma terra para si, escreve, em “Cumbe”, contos fictícios, baseados em suas extensas pesquisas, cujos protagonistas são negros durante período colonial escravocrata brasileiro.

Tudo contado do ponto de vista do personagem negro, uma preciosa e rara decisão narrativa que faz toda a diferença.

O Brasil teve o maior porto escravagista da história da humanidade. E todas as notícias que você vir, relacionadas ao Brasil, neste site são derivadas deste fato. Da corrupção endêmica de nosso dia a dia à criminalidade crescente, passando por índices de desigualdade social estratosféricos, tudo é herança do período que Marcelo D’Salete narra em “Cumbe”.

Deu para entender ou precisa desenhar?

Precisa desenhar. As histórias em quadrinhos, primeiro relacionadas a entretenimento infantil, são mães de todas as histórias que existem. Pinturas nas cavernas são, a rigor, histórias em quadrinhos.

Alguns dos autores literários mais interessantes dos últimos 20 anos atuam apenas no universo dos quadrinhos. Gaiman, Moore, Miller – toda iconografia do século XXI deve mais a estes do que qualquer escritor ou mesmo cineasta do período.

Por seu estilo narrativo visual, autores como Graciliano Ramos seriam quadrinistas, ao invés de escritores, se tivessem vivido neste século.

Assim como D’Salete, se tivesse vivido na época de Graciliano, fosse um escritor e sua obra hoje tão considerada quanto “Os Sertões”.

A importância do prêmio para o Brasil, especificamente neste momento onde no Rio de Janeiro apenas as peças de teatro com temática negra estão lotando todas as suas sessões, onde motorista de Uber é preso por engano pelo simples e monstruoso fato de acharmos que negros são todos fisicamente iguais, é incomensurável.

O jovem, a cada dia mais geek (no Brasil chamamos nerd), é nosso futuro.

E a cultura geek cada dia mais acessível às comunidades periféricas (um smartfone vagabundo e uma banda larga mequetrefe já são suficientes pra garotada acessar tudo).

Como já dito, “Cumbe”, em banto, quer dizer quilombo. Mas como os dialetos mais sofisticados, o banto possui palavras com campos semânticos vastíssimos. “Cumbe” também que dizer luz, sol, fogo e “o que está distante”.

A consciência do que somos está a cada século mais próxima.

Mas ainda muito, decisivamente distante.

É preciso continuar desenhando.

Imagem de ‘Cumbe’, de Marcelo D’Salete. Foto: Divulgação

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