Por Maria Souza*, especial para o blog do Sakamoto
Sou brasileira e fiz um aborto legal e seguro morando nos Estados Unidos.
Decidi dividir isso por duas razões. Primeiro, acredito que o maior desafio para nós, que queremos o legalização do aborto no Brasil, é romper o silêncio. Aborto será sempre um tabu enquanto não pudermos falar abertamente sobre como uma em cada cinco mulheres até 40 anos já fizeram um no país. Segundo, para que todos saibam que fazer um aborto pode ser simples, tranquilo e seguro em uma cidade onde o procedimento não apenas é legalizado, como também respeitado e protegido.
O Supremo Tribunal Federal irá analisar, a partir da semana que vem, a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 442, que pede que sejam considerados inconstitucionais os artigos 124 e 126 do Código Penal – que tratam da criminalização do aborto. Com isso, deixaria de ser crime a interrupção da gestação induzida e voluntária realizada nas primeiras 12 semanas, podendo ser realizada em hospitais públicos. Em qualquer circunstância e não apenas nos casos de estupro, risco de vida para a mãe e anencefalia, como é hoje.
Segundo a ADPF, os artigos violam os preceitos fundamentais da dignidade, da cidadania, da não discriminação, da inviolabilidade da vida, da liberdade, da igualdade, da proibição de tortura ou tratamento desumano ou degradante, do acesso à saúde e do planejamento familiar de mulheres, adolescentes e meninas. As primeiras audiências para ouvir as entidades com interesse na causa ocorrerão nos dias 3 e 6 de agosto – ainda não há data para o julgamento. Nesse contexto, meu relato pode ser útil.
Eu tinha 29 anos e há quase dois morava em Nova York, onde estava terminando um mestrado em Política e aguardando para saber se seria admitida para o programa de doutorado. Em um dia especialmente seco de fim de inverno, ao tirar minhas lentes de contato, arranhei a córnea e precisei ir à emergência do hospital, por conta da dor nos olhos. Antes de ser atendida por qualquer profissional da saúde, a recepcionista do hospital me entregou um pote coletor de urina junto com os formulários que eu precisaria preencher. E estamos tão acostumadas a deixar nossa autonomia na porta quando entramos em um hospital, que apenas devolvi o pote com a minha urina dentro, sem sequer perguntar para que seria usada.
Bem mais tarde, descobri que é protocolar nas emergências estadunidenses a coleta de urina de todas as meninas e mulheres entre 14 e 45 anos, para a realização de teste de gravidez. Quando a médica que iria me atender entrou na sala de consulta onde eu a estava aguardando, ela me deu bom tarde e logo perguntou quando havia sido minha última menstruação. Sem entender muito bem qual seria a conexão da minha menstruação com a minha córnea, respondi que estava três dias atrasada – sempre controlei muito bem o meu ciclo – mas que este tipo de atraso não era incomum. “Daqui a pouco, vem, doutora.” Bem assertivamente, sem nenhum açúcar, a médica então me respondeu: “não, não vai vir. Você está grávida”.
A minha primeira reação, imediata, antes mesmo que tivesse tempo suficiente para absorver aquela informação, foi explodir em choro. Nem eu mesma sabia que, naquele momento da minha vida, a rejeição que eu tinha pela maternidade era tão forte. Mas era. Quanto mais a ideia de uma gestação ia se embrenhando em mim, mais me sentia sufocar em uma mistura de angústia e desespero. Foi difícil conseguir parar de chorar para ouvir o que mais a médica tinha para falar: “aqui está o encaminhamento para a sua próxima consulta, com uma ginecologista. Com ela, você poderá discutir as suas opções.”
“Opções?”
“Sim, suas opções. Com a ginecologista, você poderá discutir se irá continuar ou interromper a gestação.” Opções!
A imposição da maternidade funciona por mecanismos ao mesmo tempo tão sutis e poderosos que a notícia de gravidez, mesmo quando categoricamente indesejada, vem com o peso esmagador de ser inescapável. Estar grávida sempre nos é apresentado como um estado definitivo, como uma sentença da qual não cabe qualquer recurso. Ainda quando, como no meu caso, estamos em um país onde o aborto é legalizado, quando viemos de uma família não-religiosa com uma mãe e um pai que nos educam de uma maneira não-sexista e quando nossa formação política é dentro do feminismo, ainda assim, a ligação entre a ideia de estar grávida e poder não estar só ocorre depois de ultrapassada uma serie de obstáculos construídos ao longo de nossa socialização como meninas e mulheres.
Marquei então minha consulta com a ginecologista-obstetra para discutir minhas opções. Na verdade, durante os dois dias que se passaram entre o diagnóstico de gravidez e a ida à ginecologista, já havia me decidido por interromper. Aqui, talvez devesse elaborar os argumentos para explicar minha decisão e apresentar as justificativas que a tornariam mais legítima perante aqueles que andam sempre com pedras nas mãos esperando qualquer brecha para poder atira-las. Mas a verdade é que não queria ser mãe naquele momento e isso foi suficiente para a minha decisão. Não foi difícil escolher, não passei noites em claro, não tive nenhuma dúvida. Eu não queria, naquele momento, passar por uma gestação, parir e me tornar mãe. E sabia com muita segurança que não queria. Assim como nenhuma mulher é questionada quando diz ter o sonho de ser mãe, a vontade de recusar esse trabalho reprodutivo precisa ser igualmente respeitada e valorizada. Pode até ser que algum dia tope uma gestação. Também pode ser que esse dia nunca chegue.
Outro questionamento que possivelmente está passando pela cabeça de quem está lendo este texto agora é a cobrança que recorrentemente aparece quando uma mulher fica grávida sem querer: “mas se não queria, por que não se cuidou?” E escolho aqui não responder a essa pergunta por que acredito que este tipo de questionamento, além de ilegítimo do ponto de visto ético e político, é hipócrita e cínico. Que atire a primeira camisinha quem nunca fez sexo assumindo o risco de uma gestação – e se cale definitivamente quem sequer precisou se preocupar com isso porque não tinha útero e jamais assumiu para si essa responsabilidade. Sim, de fato há diferentes opções de métodos contraceptivos, mas nenhuma delas é absolutamente eficaz, nem completamente segura. E todas nos exigem uma constante vigilância a qual às vezes não damos conta de manter. E gravidez não pode ser castigo. O trabalho de fazer um ser humano, traze-lo ao mundo e cria-lo é importante e sério demais para ser imposto a quem não o quer.
Quando cheguei na consulta com a ginecologista-obstetra – alias, a primeira vez que fui atendida por uma médica negra, que por sua vez estava sendo auxiliada por uma estudante de medicina muçulmana e de véu – ela me perguntou por que eu estava ali. Respondi que, há dois dias, tinha feito um exame de urina na emergência do hospital e o resultado foi positivo para gravidez. Sem exibir nenhuma reação –estava temendo pelo “parabéns, mamãe” que as pessoas nos serviços de saúde distribuem para quem acaba de descobrir uma gravidez, sem nem mesmo saber se a noticia é mesmo um motivo de celebração para a mulher que a recebe – ela me perguntou se queria manter ou abortar e completou se colocando a disposição para responder quaisquer perguntas que tivesse em relação a cada uma das opções.
Ao ouvir minha resposta – “eu quero abortar” – ela escreveu em meu prontuário que o encaminhamento era interrupção. Isso garantiu que, em todos os espaços em que circulei no hospital, as profissionais envolvidas imediatamente soubessem que a paciente ali não era uma futura mãe. Ninguém me tratou como tal e tampouco houve quem se esforçasse para deixar claro que não concordava com a minha decisão. Inclusive, talvez esta tenha sido a experiência em que mais senti minha autonomia sendo respeitada dentro de um hospital. As profissionais da saúde constantemente me explicavam o procedimento que estavam realizando e para qual finalidade, todas falavam naturalmente sobre aborto e algumas inclusive compartilhavam suas próprias histórias de interrupção, em um evidente esforço para me deixar confortável e demonstrar apoio. Até mesmo a técnica do ultrassom conversou comigo sobre assuntos triviais enquanto olhava a tela do exame, a qual estava sem som e virada de costas para mim.
Apesar de a minha primeira opção ter sido o remédio, quando este falhou em promover as contrações, recorri ao procedimento de sucção. No hospital onde foi feito, fui atendida por uma equipe de quatro profissionais da saúde, que me acompanharam a todo momento: uma médica ginecologista, que operava a cânula de sucção, uma técnica de ultrassom, que guiava a médica até o local de fixação do embrião, uma enfermeira, que controlava os meus sinais vitais, e um médico anestesista, que aplicava a anestesia local e ministrava um leve sedativo para que eu dormisse durante o procedimento.
Cerca de uma hora depois de ter chegado no hospital, acordei na sala de recuperação, já não mais grávida. Vesti minha roupa e segurei a mão do meu companheiro, que havia me acompanhado e apoiado durante todas as etapas dessa experiência. Pegamos juntos o metrô de volta para casa.
Lembro-me exatamente de como me senti enquanto caminhava pela rua saindo do hospital: uma estranha mistura de alívio e leveza com raiva e indignação. De um lado, me sentia muito bem de ter podido escolher não ser mãe naquele momento. De outro, me lembrava das tantas amigas próximas e conhecidas que precisaram se submeter às incertezas e inseguranças da clandestinidade para poderem abortar no Brasil. A raiva fervia em mim. Como um procedimento tão simples, rápido e seguro pode ser negado às mulheres que estão certas de que querem abortar? Por que tantas pessoas se esforçam para que as mulheres que já tomaram a decisão de abortar sejam castigadas e torturadas para conseguirem interromper a gestação?
Tenho a serenidade de saber com segurança que tomei a decisão certa e a consciência de perceber o meu acúmulo de privilégios para poder ter tido uma experiência tão saudável e digna. O privilégio de estar morando em uma cidade onde não só o aborto é legalizado, mas onde a vontade da mulher é socialmente respeitada. O privilégio de poder acessar um serviço de saúde de qualidade. O privilégio de não sofrer racismo institucional. A nossa luta é para que essa oportunidade não seja só disponibilizada a poucas privilegiadas, mas que seja a experiência universal de qualquer mulher que decida autonomamente abortar.
A decisão de não usar meu próprio nome para contar minha história veio de uma conversa com minha mãe sobre esse texto. Ela ponderou que o mundo das redes sociais está violento demais para este tipo de exposição. De mártires dessa luta bastam as mulheres que todos os dias se colocam em perigo de vida por conta da clandestinidade do aborto. Minha família, minhas amigas e amigos, todos já me ouviram relatar a experiência, com todos conversei a respeito. Muito mais importante do que meu nome – que em nada acrescenta ao que eu tenho para contar – é a minha história em si, que descreve uma experiência de realização de aborto que ilustra bem o que significa ter de fato, concretamente, o direito à saúde reprodutiva à minha disposição.