Salvador em Carrara, cinco séculos depois: O racismo no Brasil é patológico

Por Marcio José Silva, no Justificando

“Encontrei uma cidade de tijolos, deixei mármore”.

Teria dito o primeiro Imperador de Roma, Augusto. Provavelmente este regente fizesse referência a um dos materiais mais utilizados para conferir luxo e beleza às construções mesmo nos dias atuais: o mármore Carrara, material de alta qualidade e coloração normalmente branca, abundante na Itália. De fato, este mantém, mesmo atualmente, grande beleza e alto custo financeiro.

A população afrodescendente soteropolitana que chega a cerca de 86% mas que, na novela, foi recoberta de Carrara, fazendo Salvador, em seus cinco séculos de existência, branca como nunca.

Este artigo, porém, não tratará deste material, sua beleza e utilidade, mas da principal patologia social brasileira, internalizada no pensamento social brasileiro, passando a ser parte do comportamento deste povo, por manipulação de superestrutura de grande poder mobilizador, naturalizando o comportamento doentio, desumanizando seres humanos, criado de modo calculado e intencional para resultar em ações que eternizam séculos de injustiça e extermínio simbólico.

A cidade de Salvador, segundo dados oficiais do IBGE, é a maior cidade da região Nordeste, com população aproximada de três milhões de habitantes. Em 2004, a estimativa era de 86,6% pessoas não-brancas. Portanto, a conclusão evidente é: quase todo soteropolitano não é branco. Há, como afirma Santos (2018, p. 127) o obscuro sociológico brasileiro do “ser este nada de café com leite – totalmente positivado pelo quantum de sofrimento que traz – porta também a possibilidade de ser seu oposto, o tudo” (destaque do original).

Entre o ‘nada’ e o ‘tudo’ temos milhões de humanos que transitam entre a negação de existência, embora, por serem numericamente expressivos e evidentes, tornam-se um tudo que é impossível ser ocultado. Esta realidade soteropolitana, que se estende a muitas cidades brasileiras, torna-se algo mais delicado e preocupante ao recordarmos a obra de Bourdieu Sobre a Televisão (1996, no Brasil 1997) na qual o sociólogo faz análise da amplitude do poder simbólico que este meio de comunicação é capaz de atribuir aos campos de ação social e na formação do habitus dos sujeitos que estão sob a influência deste, no caso brasileiro, especialmente, cerca de 60% de sua população.

Na obra A Miséria do Mundo (1993, em português 2003), Bourdieu será grandemente criticado ao afirmar (p. 13) que este veículo, que possui potencial para ser um “instrumento de democracia direta”, pode facilmente se converter em “instrumento de opressão simbólica”. Esta opressão, adquirida como comportamento naturalizado pode criar habitus extremamente pernicioso quando existe pregressa história de comportamento nocivo entre a população.

Que o Brasil é um país existencialmente racista não há como negar. Ainda que haja alguns que refutem tal argumentação com falaciosas questões desarmadas pelo raciocínio, como se expõe, esta patologia social ganha maior amplitude quando se analisa o que as mídias têm ofertado à população com natural desnaturalidade, aberrações de beleza encantadora, a teratologia do racismo com romanticismo descabido e ofensivo.

Os que resistem à realidade do racismo fazem-no ao mesclar esta patologia com a questão da identidade, conceito que é amplamente discutido na psicologia, antropologia, filosofia e sociologia com única conclusão razoável: o caráter subjetivo, daí a preferência que alguns têm pelo termo subjetividade ao invés de identidade. Neste sentido, racismo desconecta-se da questão de identidade, seja simbólica, cultural ou física porque ao passo que identidade ainda é aspecto debatido e debatível, o racismo é reconhecido pelo seu aspecto estereotipador, que elimina identidades ou identificações individualizadas, fazendo dos afrodescendentes apenas uma massa de ‘outros’ despersonalizados e não-humanos.

Outra argumentação também falha liga a suposta fragilidade do racismo com a miscigenação do povo brasileiro. De fato, o Brasil é miscigenado, índio, europeu, africano, asiático etc. Não obstante, a miscigenação, diferentemente de criar uniformização entre as pessoas, trouxe à tona o combustível principal da patologia racista: a avaliação de caráter e personalidade por fenótipo. Ainda que pareça incoerente, a miscigenação abriu as portas ao sintoma do nigericismo, isto é, pessoas não brancas são tratadas segundo o tom de pigmentação da pele, sendo que, aos mais claros e com cabelo menos crespo, dispensa-se tratamento diferenciado do dado ao que tem tom de pele mais pigmentado ou cabelos mais encaracolados. O tratamento é degradantemente humilhante na proporção do tom da pele.

Um povo que tem raízes na África e nas matas, mas que se enamora da Europa

Evidentemente o termo nigericismo é neologismo para descrever a amplitude da patologia do racismo. As ciências médicas tendem a usar o sufixo ‘ismo’ para descrever comportamentos doentios e viciosos, tais como tabagismo, alcoolismo, fetichismo etc. De modo que este termo é criado a partir da fusão da palavra latina niger (preto em latim) a conjunção et (‘e’ em latim) e o sufixo ‘ismo’ para mostrar que o racista tem transtorno doentio que cria neste aversão ao tom de pele daquele (que é humano como este).

Contudo, como esta patologia ganha espaço no imaginário e pensamento social brasileiros? A análise simples de uma novela ensina muito a respeito. Está no horário nobre, é transmitida em território nacional, portanto, acessível a milhões simultaneamente, servindo de régua ideológica para internalizar habitus intencionais. Ambientada em Salvavor, Bahia, cuja população é predominantemente afrodescendente e seu brilhante elenco principal: 26 artistas, três afrodescendentes. Para o bom assentamento do Carrara, esta régua é indispensável.

Não é apenas o número pífio que inverte a realidade soteropolitana que espanta. A atribuição das personagens é uma afronta e, além de ser o louvor e glorificação da patologia racista, busca-se transmitir a todo povo brasileiro como ver afrodescendentes e qual tratamento deve ser dado a tais. As personagens destes atores são: homem de caráter torpe, envolvido com crimes gravíssimos, que enriqueceu de maneira ilícita; doméstica que é amante desde sempre do empregador e que lhe gerou dois filhos, o estereótipo para humilhar a mulher; a esposa possessiva, com ciúme doentio, insuportável e que beira à insanidade.

Estas são as três personagens reservadas para representar à população afrodescendente soteropolitana que chega a cerca de 86% mas que, na novela, foi recoberta de Carrara, fazendo Salvador, em seus cinco séculos de existência, branca como nunca! O disparate e abuso do autor é tal que o mesmo usa até a proporção inversa no elenco principal: 86% brancos e meros 14% de afrodescendentes para fazerem os papéis descritos, duvidosos ou humilhantes ao passo que os demais, mesmo praticando atos tão deploráveis quanto, são sempre amenizados ou afagados por um olhar terno, um sorriso dócil ou pela generosidade espontânea que somente brancos podem demonstrar. Faz nojo!

Evidentemente, tal espetáculo de horror não é acaso ou coincidência, mas obra da ideologia. Nas palavras de Marx (1976, p. 19) tal é:

A forma como os indivíduos manifestam a sua vida reflete muito exatamente aquilo que são. O que não coincide, portanto, com a sua produção, isto é, tanto com aquilo que produzem como com a forma como produzem.

O cotidiano reflete o que as pessoas são, quanto ao modo como certos comportamentos ocorrem, existe a produção ideológica, ou seja, a manobra das ideias com intenção e direção determinada para produção de efeitos específicos.

Atualizando o pensamento de Marx sobre a superestrutura, que está especialmente sob o poder dos que detêm o poder político, cultural e econômico (é necessário que os três coexistam porque a ausência de um destes torna o acesso a superestrutura  inviabilizado ), o historiador Raymond Williams (2005, p. 213) menciona:

A noção moderna de ‘mediação’, na qual algo mais do que simples reflexo ou reprodução – de fato algo radicalmente diferente tanto de reflexo quanto de reprodução – ocorre de forma ativa.

Diferentemente de uma unidade estática de acesso ou área, a superestrutura (Überbau) é mais bem descrita como este espaço de mediação em que se dispõem as ideias para se criar a aparência de normalidade e normatividade (ideologia) ao ponto de inferir regularidade, simetria e naturalidade ao que é anormal, incomum e monstruoso.

Assim, a patologia do racismo, por meio da régua ideológica da novela, veiculada pelo canal de televisão mais assistido no Brasil, chega aos lares como justificável, afinal, sendo os afrodescendentes pessoas de comportamentos bizarros e Salvador tornada uma cidade branca como Carrara, que mal há em desconsiderar o preto ou a preta?

Por fim, como deslinde desta tragédia social que é imposta ao Brasil, qual consequência mortal da sua patologia mais antiga, o racismo, mais evidenciado após a tentativa frustrada de se liberar os escravizados no século XIX, chega-se ao habitus internalizado, adquirindo forma no pensamento social, o sistema coletivo que pode criar ou consolidar diferenciações estigmatizadoras e cruéis numa sociedade de plurais, mas sem diversidade, num país de muitos, mas sem coletividade, num país de miscigenação, que rejeita sua negritude, de um povo que tem raízes na África e nas matas, mas que se enamora da Europa.

Há um terrível dilema moral, ético e social nesta novela mencionada, sobre a qual houve manifestos isolados por parte de alguns artistas e o silêncio ensurdecedor dos acadêmicos, para grande decepção e vergonha nossa. Motivo? A errônea percepção de que as novelas sejam intelectualmente desnecessárias ou não atraentes. Contudo, são estes mecanismos  populares  que estão invadindo os lares brasileiros e formatando as mentes do povo para solidificar e concretizar o projeto de patologização nacional e extermínio simbólico ou literal das populações negras, especialmente pobres e periféricas, mortas diariamente.

De onde surge esta brutalidade? Do habitus que cria a ideologia patológica racista, naturalizada pelo sistema de comportamentos imposto pela branquitude e seus privilégios intocados em uma superestrutura que está sob o controle direto de pessoas brancas que precisam manter o “povo faminto, xucro e feio” (RIBEIRO, 2011, p. 56). Nosso silêncio, como acadêmicos, juristas ou cidadãos há de cobrar alto preço!

Marcio José Silva é formado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica do Peru, é formado em Letras pela Universidade de Guarulhos, possui Mestrado em Educação, Arte E História Da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, MBA em Gestão Escolar pela Universidade de São Paulo-USP e atualmente é aluno do curso de direito no Mackenzie. 

1 Encontramos grande obstáculo estrutural nos dados devido à patologia social em análise porque o Brasil cria o termo ‘pardo’, mas não define o que é tal ser humano assim caracterizado. Portanto, pelos dados, podemos afirmar que os números indicam pessoas que se autoafirmam não-brancas, sem se definir como se veem. Disponível em:<https://ww2.ibge.gov.br/home/presidencia/noticias/04062004pmecoreshtml.shtm>. Acesso em: 12 ago. 2018.

2 Na concepção de Bourdieu, habitus é a maneira como o sujeito incorpora como que por imitação as tendências que organizam o meio (campo) no qual este está inserido, criando por sua percepção, ação e reação a socialização com o meio, seja pela classe, religião, nacionalidade, educação, profissão etc.. É como a capacidade de o indivíduo ‘habitar’ o ambiente como ser social por normas estabelecidas sem a necessidade de imposição coercitiva, mas por necessidade de adesão e acolhimento por aquele meio. Assim, o habitus é o instrumento que unifica e, ao mesmo tempo, separa e diferencia pessoas.

3 Conforme diz Bento (2018, p. 148) difícil é ao branco aceitar que o racismo existe para justificar os privilégios conferidos pela branquitude. De fato, quem não sofre as agruras do racismo tende sempre a amenizar ou inverter a realidade, chegando a atribuir a responsabilidade à vítima de racismo.

4 Usa-se o substantivo régua referindo-se à ferramenta usada na construção civil para nivelar pisos ou paredes após a aplicação de argamassa ou assentamento do piso.

REFERÊNCIAS

BENTO, Maria Aparecida Silva. Branquitude – O lado oculto do discurso sobre o negro. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia Social do Racismo. Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 6ª. Ed.. Petrópolis: Vozes, 2018.

BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1997.

BOURDIEU, Pierre. A miséria do mundo. Petrópolis: Vozes, 2003.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Lisboa: Editorial Presença, 1976.

RIBEIRO, Darcy. Ensaios Insólitos. Rio de Janeiro: Batel, 2011.

SANTOS, Rosa Maria Rodriges dos. De café e de leite… In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia Social do Racismo. Estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. 6ª. Ed.. Petrópolis: Vozes, 2018.

WILLIAMS, Raymond. Base e superestrutura na teoria cultural marxista. Trad. Bianca Ribeiro Manfrini. Rev. Maria Elisa Cevasco. Revista USP, São Paulo, n° 65, p. 210-224, mar./maio 2005.

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