Resistência e Memória na Destruição do Museu Nacional

Barbara Cruz, doutoranda em antropologia social no Museu Nacional, descreve as inúmeras perdas para a população negra e não negra com a destruição de parte do prédio

Por Barbara Cruz, no Alma Preta

O Museu é um emaranhado de afetos. Sua estrutura, imponente mesmo depois de um incêndio de proporções catastróficas, guarda tantos atravessamentos quanto as incontáveis singularidades que de uma ou outra forma passaram e continuam a passar por ali.

Das crianças e seus sorrisos de espanto e encantamento durante as inúmeras excursões escolares ou passeios de fins de semana que revelavam um primeiro contato com um universo de dinossauros, animais gigantes, histórias da formação do país, reinos africanos, culturas indígenas, lugares próximos e longínquos, ciência, antropologia, arqueologia, botânica.

Dos funcionários, professores e pesquisadores que construíram carreiras de uma vida inteira dedicadas à produção de conhecimento. Das pesquisas brasileiras que mudaram os rumos de diversos campos do conhecimento ao redor do mundo e que possuem status de excelência acadêmica, apesar de toda a falta de incentivo. Dos objetos que contavam das complexas e violentas relações coloniais, de ontem e de agora.

Da parte do acervo que mal fora tocada ou, mais ainda, de toda a potência das novas propostas e formas de relação impulsionadas pelos estudantes negros e indígenas que adentraram os portões daquela universidade. Do público trazido pelas linhas do trem e metrô vizinhas, que parece saber muito mais do que aquele lugar era e significava do que muitas das notas de lamento e discursos oficiais deslocados.

É também museu dos pleitos de devolução dos objetos expropriados pelas empreitadas coloniais. Símbolo de tempos de escravização, tendo sido inicialmente morada de um dos maiores traficantes de pessoas que essas terras viram. Palco da assinatura da independência do Brasil.

Um lugar que se propõe a relacionar acervo museológico, educação básica, pós-graduações de excelência internacional e respeitadas em círculos científicos de ponta, de tal modo que um pólo inevitavelmente afeta o outro.

Casa do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social que também habitava aquele complexo e foi pioneiro na implementação de ações afirmativas na pós-graduação no país, sendo composto por dezenas de alunos negros e indígenas de diversas etnias. Berço do primeiro coletivo negro da pós-graduação. Espaço de produção de conhecimento por onde passam pensadores vários, jongueiros, integrantes de escolas de samba, quilombolas, indígenas.

Assim, é certo que um lugar que evoca tantas memórias e paixões, diante de uma tragédia da magnitude do que se passou, provoca muitas reações. Se há choro e lamento, há também uma série de objeções levantadas sobre o papel dos museus, o que significavam e de que modo foram obtidos alguns dos objetos mantidos em seu acervo, embora várias experiências conectadas àquele espaço demonstrem que há muitas formas de se relacionar com as coisas e que há muita gente colocando novas questões e enfrentando as feridas que persistem abertas como desdobramentos da forma violenta como os povos indígenas e negros foram tratados nessas terras.

Quero dizer: em um certo sentido, se parte do que estava contido ali fora apreendido em situações de violência colonial, ver tudo aquilo queimar e ruir é testemunhar a atualização dessa violência, algo que intenta impedir novas composições e tomadas de ação diante daquilo que se apresenta.

Se a universidade tantas vezes encarna um lugar excludente, é certo que nos últimos anos as mudanças que a tem atravessado dão pistas de novos caminhos e possibilidades de encontro e relação com aquilo que aparentemente tinha ficado para trás. Reconhecer isso não precisa implicar nem em desmerecer as universidades e museus de uma maneira geral e tampouco em rechaçar ou se negar a ver a pertinência de se levantar esse tipo de questionamento.

Definitivamente não penso que a tragédia que aconteceu ontem seja em qualquer sentido positiva para quem quer que seja, mesmo para aqueles que torcem pelo caos visando algum tipo estranho de lucro – esses também perdem parte das luzes que os acúmulos de experiências coletivas transformam em conhecimento e potências de outros mundos possíveis.

Talvez as vozes que expressam os tensionamentos presentes na existência dos museus possam ser ouvidas como aquilo que faz lembrar que qualquer retomada demande também processos de cura, como os povos submetidos às práticas genocidas ao longo de séculos já demonstraram incansavelmente. Ou seja, tomar seriamente em conta aquilo que nos faz pensar que não é possível seguir em frente sem ouvir as objeções, o que nos lembra que é preciso atentar para o caminho, parar e desacelerar o passo mesmo diante das urgências do mundo. Não porque devemos nos deter e estancar aí, mas porque não há retomada possível sem que cuidemos do caminho, ignorando etapas e correndo o risco de reterritorializar toda essa trágica experiência em algo ainda mais sombrio.

Ontem me perguntaram se um povo sem memória é um povo sem resistência. Eu creio sinceramente que não. Primeiro porque a memória não se resume a escritos documentais ou objetos, embora a dimensão material esteja intrinsecamente ligada e importe sim, e muito. Mas carregamos na bagagem existencial os atravessamentos dos tempos passados e mesmo dos futuros, e é preciso saber acessar tudo isso de que os processos de colonização – antigos e em seus modos de atualização – tantas vezes nos afastam. Talvez seja o caso de inverter a frase e pensar que um povo sem resistência, esse sim é um povo sem memória. Definitivamente não é nenhum dos casos aqui.

Como disseram os mestres Ailton Krenak e Antonio Bispo dos Santos, nós não temos fins. Somos começo-meio-começo. Isso só pode implicar em que se resignar diante da barbárie não seja uma opção, justamente porque a barbárie nunca é o fim total, embora também não seja possível meramente “desfazê-la”; talvez nos diga que os tempos se atravessam e é preciso agir diante daquilo que o mundo nos apresenta, mesmo que violentamente.

Uma estudante indígena da etnia Terena da UFSCAR disse a um professor do PPGAS (Programa de Pós-graduação em Antropologia Social), uma das importantes pós-graduações cuja casa também sempre foi o Museu Nacional: é tempo de resiliência e de resgatar aquilo que ficou pelo caminho. A frase vinda de alguém que sabe bem o que a palavra resgate significa é quase uma ordem.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Oiara Bonilla.

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