As condições reais de vida determinam a consciência. Por Gilvander Moreira*

Não cabe dicotomia entre sujeito e objeto no processo de pesquisa, nem separação entre teoria e prática. O sujeito vê/analisa o objeto, mas este também vê/influencia o sujeito. Não apenas o escultor faz uma escultura a partir da pedra, mas a pedra também molda o escultor. Segundo a filosofia sartreana “a obra constrói seu próprio autor ao mesmo tempo que ele cria a obra” (MÉSZÁROS, 1991, p. 38). Essa perspectiva teórica nos dá a possibilidade de nos aproximarmos/afastarmos metodologicamente do objeto da pesquisa. Esse processo dialético de tensão entre sujeito/objeto não pode ser entendido como neutralidade ou completo afastamento teórico-metodológico do objeto em questão. Ao contrário, por essa razão o processo de pesquisa é um processo dialético. “Toda vida social é essencialmente prática. Todos os mistérios que induzem a teoria ao misticismo encontram sua solução racional na prática humana e na compreensão dessa prática” (MARX; ENGELS, 2007, p. 534 e 539). A Observação Participante “é uma técnica de eleição para o pesquisador que visa compreender as pessoas e as suas atividades no contexto da ação, podendo reunir na Observação Participante, uma técnica de excelência que lhe permite uma análise indutiva e compreensiva” (CORREIA, 2009, p. 31).

Existem muitas alternativas ao sistema do capital e ao pensamento eurocêntrico-colonial na América Latina atualmente. Essas alternativas se expressam na constante desconstrução da ideologia dominante e em lutas sociais que buscam alterar as condições materiais históricas para se efetivar a superação do capitalismo. Essas alternativas estão na episteme de relação, na ideia de libertação através da práxis, na redefinição do papel do/da pesquisador/a social, no reconhecimento do Outro como si mesmo, no caráter histórico, indeterminado, indefinido, inacabado e relativo do conhecimento, na pluralidade epistêmica, na constante revisão de métodos, no (re)conhecimento de outros saberes. Nessa estrada têm sido imprescindíveis as contribuições da Teologia da Libertação, da Filosofia da Libertação, da Sociologia da Libertação e da obra de Paulo Freire – Pedagogia da Libertação -, sem contar inúmeros outros saberes e pensadores que dialogam, se complementam e se inspiram mutuamente.

Ao refletir sobre o sentido do passado, Eric Hobsbawm pondera e pergunta: “É evidente que a sensação de pertencer a uma tradição antiquíssima de rebelião fornece satisfação emocional, mas como e por quê?” (HOBSBAWM, 1998, p. 32-33). Ele mesmo responde: “Nadamos no passado como o peixe na água, e não podemos fugir disso. Mas nossas maneiras de viver e de nos mover nesse meio requerem análise e discussão” (HOBSBAWM, 1998, p. 35).

O mundo é construído pelo trabalho humano, que exige cérebro, músculos, nervos, mãos, enfim todo o corpo, através da ação humana coletiva. O ser humano é um animal histórico, porque trabalha e, por isso, constrói o mundo, transformando a natureza. Podem-se distinguir os seres humanos dos outros animais pela consciência, pela religião ou por outra dimensão, mas eles começam a se distinguir dos outros animais tão logo começam a produzir seus meios de vida. “Ao produzir seus meios de vida, as pessoas produzem, indiretamente, sua própria vida material. O modo pelo qual as pessoas produzem seus meios de vida depende, antes de tudo, da própria constituição dos meios de vida já encontrados e que eles têm de reproduzir” (MARX; ENGELS, 2007, p. 87).

Refutando todo e qualquer idealismo, inclusive os de esquerda, Marx e Engels enfatizam que “tal como os indivíduos exteriorizam sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com a sua produção, tanto com o que produzem como também com o modo como produzem. O que os indivíduos são, portanto, depende das condições materiais de sua produção” (MARX; ENGELS, 2007, p. 87). No mesmo sentido, “a produção de ideias, de representações, da consciência, está, em princípio, imediatamente entrelaçada com a atividade material e com o intercâmbio material das pessoas, com a linguagem da vida real” (MARX; ENGELS, 2007, p. 93). O ser das pessoas é o seu processo de vida real.

Ao pesquisar devemos partir das pessoas realmente ativas, do seu processo de vida real, como ensinam os autores de A ideologia alemã: “[…] não se parte daquilo que as pessoas dizem, imaginam ou representam, tampouco das pessoas pensadas, imaginadas e representadas para, a partir daí, chegar às pessoas de carne e osso; parte-se das pessoas realmente ativas e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. […] As pessoas, ao desenvolverem sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também, com esta sua realidade, seu pensar e os produtos de seu pensar. Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS, 2007, p.  94).

Marx e Engels desconstroem o idealismo demonstrando sua esterilidade quanto à capacidade de emancipar. Somente mudança de mentalidade não muda nada, só na aparência. Conquistar o fundamental para a produção e reprodução da vida humana e social – alimentação, bebida, moradia e vestuário – em qualidade e quantidade adequadas, é o elementar no processo de emancipação. Asseveram Marx e Engels: “Só é possível conquistar a libertação real [wirkliche Befreiung] no mundo real é pelo emprego de meios reais. […] … não é possível libertar as pessoas enquanto estas forem incapazes de obter alimentação e bebida, habitação e vestimenta, em qualidade e quantidade adequadas. A “libertação” é um ato histórico e não um ato de pensamento, e é ocasionada por condições históricas, pelas con[dições] da indústria, do co[mércio], [da agricul]tura, do inter[câmbio]” (MARX; ENGELS, 2007, p. 29).

Não esqueçamos: “O modo de produção capitalista não se circunscreve à produção; ele é modo de produção e modo de circulação de mercadorias e de troca de mercadoria por dinheiro e de dinheiro por mercadoria” (MARTINS, 1983, p. 171). Quanto mais se desenvolve o modo de produção capitalista, com novas técnicas e novos descobrimentos científicos, e com o aprofundamento da divisão do trabalho, mais a história torna-se história mundial. Por exemplo, “se na Inglaterra é inventada uma máquina que na Índia e na China tira o pão a inúmeros trabalhadores e subverte toda a forma de existência desses impérios, tal invenção torna-se um fato histórico-mundial” (MARX; ENGELS, 2007, p. 40). Com isso, a submissão dos trabalhadores a um poder que lhes é estranho – poder dominação – aumenta cada vez mais o mercado mundial. E, por isso, a necessidade de superação do sistema do capital tornou-se questão de vida ou morte. Quanto mais de desenvolve o capitalismo mais ele tritura todo tipo de vida.

Referências.

CORREIA, Maria da Conceição Batista. A observação participante enquanto técnica de investigação. In: RevistaPensar Enfermagem, Vol. 13, n. 2, p. 30-36, Lisboa: 2º Semestre de 2009.

HOBSBAWM, Eric. Sobre história. São Paulo: Companhia das letras, 1998.

MARTINS, José de Souza. Os Camponeses e a Política no Brasil: as lutas sociais no campo e seu lugar no processo político. 2ª edição. Petrópolis: Vozes, 1983.

MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã: crítica da mais recente Filosofia alemã em seus representantes Feuerbach, B. Bauer e Stirner, e do socialismo alemão em seus diferentes profetas (1845-1846). São Paulo: Boitempo Editorial, 2007.

MÉSZÁROS, István. A obra de Sartre: busca da liberdade. São Paulo: Ensaio, 1991.

Belo Horizonte, MG, 18/9/2018.

Obs.: Os vídeos, abaixo, ilustram o texto, acima.

1 – Início das Missões da XXI Romaria/Águas/Terra/MG/Lagoa da Prata/MG/2a Parte/08/9/2018.

2 – Palavra Ética na TVC/BH: Despejo e resistência em Nova Serrana, MG, Ocup. Nova Jerusalém. 07/6/2018.

3 – Vida em primeiro lugar!/24º Grito dos Excluídos/BH/MG – 2ª Parte – 07/9/2018.

*Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.

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