Bispos resistem à apuração da pedofilia. Papa enfrenta-a — mas seu poder é limitado e suas dificuldades são exploradas pelos conservadores na igreja e sociedade. Encontro em fevereiro pode ser decisivo
Marco Politi, entrevistado por Elena Llorente | Tradução: Inês Castilho, em Outras Palavras
O escritor e especialista em Igreja Católica Marco Politi afirma que pela primeira vez estão juntos uma oposição teológica conservadora e ambientes políticos conservadores. “Os detratores do Papa servem-se dos escândalos de pedofilia para debilitá-lo. Antes era um ataque à Igreja, agora é um ataque à credibilidade deste Papa”, sustenta.
Depois das denúncias sobre o ex-arcebispo de Washington feitas pelo ex-núncio (embaixador) do Vaticano nos Estados Unidos, Carlo María Viganó — que pediu a renúncia do papa Francisco — e as centenas de abusos contra menores e adultos por parte de membros da Igreja que vieram à luz nos últimos anos no Chile, Estados Unidos, Irlanda, Austrália, Holanda e Índia, a credibilidade da igreja católica atravessa um momento muito crítico. Onde irá parar, se as coisas não mudarem? As denúncias de abusos sexuais terminaram ou ainda há muito a ser descoberto? O que pode ser feito para acabar com esse fenômeno que, presumivelmente, respinga em todos os países católicos do mundo?
Em entrevista a Pagina/12, o jornalista vaticanista e escritor Marco Politi respondeu a essas perguntas ressaltando que “essa explosão de revelações de abusos é uma espécie de 11 de setembro para a Igreja católica”.
Comentarista do diário Il Fatto Quotidiano e professor da Universidade Uninettuno, Marco Politi ocupa-se da informação religiosa há mais de 40 anos. Foi correspondente de dois importantes jornais italianos, Il Messaggero e La Repubblica, e fez numerosas viagens pelo mundo com João Paulo II e Bento XVI. Escreveu vários livros, entre eles Sua Santidade, sobre João Paulo II, e Francisco entre os lobos, ambos publicados em várias línguas.
Esses abusos referem-se, em geral, a tempos passados, não?
Depende das medidas que os episcopados nacionais tomaram. Por exemplo, no informe surgido na Pensilvania vê-se que grande parte dos abusos ocorreu antes de 2002, momento em que os bispos norte-americanos intervieram. É interessante também o informe que acaba de sair na Alemanha. Pela primeira vez um episcopado nacional confia a investigação a três instituições independentes, que não são parte da Igreja, as quais descobriram, entre outras coisas, que algumas dioceses destruíram ou esconderam a documentação referente a esses casos. As medidas reformadoras promovidas pelo pontificado de Francisco para impor “tolerância zero” contra os abusos esbarram, por um lado, em um grande número de delitos desse tipo ainda ocultos, e por outro nas diferentes sensibilidades dos episcopados nacionais para revelá-los. Por exemplo, a conferência episcopal italiana criou recentemente uma comissão para enfrentar o problema, com o novo chefe nomeado por Francisco em 2017, o cardeal Gualtiero Bassetti.
Houve denúncias na Itália?
Sim, na Itália houve denúncias, mas não há um órgão central responsável por ajudar as vítimas. Na Alemanha, por outro lado, em cada diocese há um organismo especial que escuta as vítimas. Nesses centros há equipes tanto religiosas como laicas que tratam de ajudá-las. Há um bispo designado que se ocupa de controlar, em nível nacional, como as coisas estão indo, e existe a vontade declarada da Igreja alemã de investigar o passado.
O que veio à luz até agora é tudo, ou ainda falta muito para descobrir?
Ainda falta muito para descobrir, porque há países em que nem a justiça civil nem a Igreja se mobilizaram para descobrir esses delitos. E os abusados, crianças ou adultos, frequentemente têm dificuldades para denunciar esses abusos. No caso, por exemplo, das monjas de Kerala, na Índia, adultas porém abusadas por um bispo local. Para ser escutadas tiveram de fazer uma manifestação diante da chefatura da polícia. Ou o caso da Itália, onde nunca havia sido criada uma comissão de investigação sobre esses casos, nem pelo governo nem pela conferência episcopal. Houve só uma diocese – em 200 –, a de Bressanone-Bolzano (ao norte), que em 2010 criou uma comissão para investigar e escutar as vítimas. E num só ano vieram à luz 14 casos. Se pensarmos que é uma pequena diocese e teve 14 casos, é de supor que na Itália pode haver cerca de 3.000 casos escondidos.
Por que aconteceram os abusos?
A questão dos abusos é um fato secular. Já no ano 300 d.C. foi realizado um primeiro sínodo de bispos na Espanha onde se condenaram os abusos contra crianças. Isso significa que temos 17 séculos de abusos, e tem razão o papa Francisco quando diz que isso foi favorecido pelo clericalismo — quer dizer, pelo poder clerical que quer esconder os delitos. Já em 2010 Bento XVI, em sua carta aos irlandeses, dizia que isso se devia ao fato de que os bispos não cumpriam seu dever e tinham uma falsa ideia de prestígio da Igreja. Não se pode esquecer, contudo, que dois terços dos abusos no mundo ocorrem no ambiente familiar. Mas o que é grave para a Igreja católica e corrói seu prestígio em nível mundial é que se trata de uma organização que sempre fala de castidade, de pureza, em que os sacerdotes deveriam ser celibatários e castos.
Quando você diz que esse escândalo é para a Igreja como o 11 de setembro em Nova York, entendo que quer dizer de alguma maneira que a Igreja está desmoronando… O que está sendo feito para melhorar essa situação?
Quando foi eleito, em 2013, o papa Francisco falou de “tolerância zero” com relação aos abusos e deu provas disso. Foi o primeiro papa que convocou um embaixador, isto é, o ex-núncio vaticano na República Dominicana, e em 2013 instituiu contra ele um processo eclesiástico. Então dom Jozef Wesolowski, após o processo canônico, deixou de ser bispo e de ser padre. Mas o papa insistiu para que ele sofresse também um processo penal segundo as leis do Vaticano. Wesolowski morreu de infarto antes de ser julgado. Mas essa foi a primeira vez que um papa tomou essa decisão. Bento afastou centenas de sacerdotes por pedofilia, silenciosamente. Mas não teve coragem, por exemplo, de processar o mexicano Marcial Maciel, criador e líder dos Legionários de Cristo (soube-se que havia abusado de seminaristas e tido filhos). Impôs a ele somente o isolamento e uma vida de preces. Francisco endureceu as penas em geral e também as referentes à pornografia infantil. Há poucos meses foi processado um diplomata da nunciatura de Washington, monsenhor Carlo Capella, e condenado pelo Vaticano a cinco anos de prisão por posse de de material pornográfico infantil.
O que foi que não funcionou?
Era necessário intervir nas conferências episcopais de todo o mundo de maneira enérgica, mas isso não foi feito. Francisco criou no princípio uma comissão para a proteção de menores e essa comissão havia proposto criar um tribunal para os bispos acobertadores de crimes. A assessoria de imprensa do Vaticano disse em 2015 que esse tribunal seria criado. Em vez disso, o projeto foi sabotado pelo cardeal Gerhard Müller, da Congregação para a Doutrina da Fé. Outros cardeais e membros do Vaticano também foram contra. Em 2017 descobrimos que esse tribunal nunca foi criado. As duas vítimas que faziam parte da comissão para proteção dos menores renunciaram a seus cargos dizendo que a comissão não tinha poder para mudar as coisas. De sua parte, o papa sustenta que é melhor não ter um tribunal fixo, mas júris locais criados a cada vez. Contudo, se não houver um mecanismo claro espalhado pelo mundo, com um responsável mesmo em nível dos bispados locais, os fiéis não se sentirão estimulados a fazer denúncias para um bispo negligente. E essa é uma falta importante no papado de Francisco. O projeto deu em nada porque muitos, no Vaticano, temiam que a criação de um tribunal similar, no qual os abusados contassem suas histórias, pudesse ser transformado numa perigosa – e aberta – “caixa de Pandora” (onde se escondiam, segundo a mitologia grega, todos os males do mundo).
Que repercussão pode ter para o Papa o caso Viganó?
O caso Viganó é muito perigoso, muito desestabilizador para o pontificado de Francisco. Pela primeira vez temos a conjunção de uma oposição teológica conservadora – surgida contra o papa por parte de quatro cardeais por causa de sua posição em relação à comunhão aos divorciados que casaram novamente – e a indignação da opinião pública pelos casos de pedofilia. E pela primeira vez há um ataque direto ao pontífice. Os fieis estão muito desorientados. Viganó pertence aos setores conservadores da Igreja que estão contra o Papa, mas é ao mesmo tempo um diplomata profissional. Se é verdade o que ele diz sobre as denúncias contra o arcebispo de Washington, Theodore McCarrick – condenado recentemente pelo abuso de um menor, mas acusado por Viganó por suas relações com seminaristas adultos –, enviadas pelos núncios dos EUA ao cardeal Angelo Sodano e em seguida ao cardeal Tarcisio Bertone, ambos ex-secretários de estado do Vaticano (número dois da Santa Sé), o Vaticano deveria assumir uma posição. A Santa Sé não fez nenhuma declaração oficial sobre o caso e isso causa muitos danos ao papa atual. Esse caso é particularmente perigoso para o papado porque se aproveita da indignação da opinião pública internacional sobre o tema dos abusos. Além do mais, tudo isso satisfaz as forças políticas e financeiras que são contra a política social de Francisco, relativas às mudanças climáticas ou às desigualdades sociais, por exemplo.
Que setores são esses de que você fala?
Os setores conservadores dos Estados Unidos, mas não só desse país. Há muitos portais na Internet que afirmam ser o papa um comunista, um marxista. O que se vê é que há uma conjunção entre ambientes teológicos conservadores e ambientes políticos conservadores. Antes era um ataque à Igreja, agora é um ataque à credibilidade deste Papa. No Vaticano há uma espécie de guerra civil subterrânea, os opositores servindo-se dos escândalos de pedofilia para debilitar Francisco.
O que se espera da reunião extraordinária sobre os abusos, dos presidentes das conferências episcopais de todo o mundo com Francisco, que será realizada em fevereiro do ano que vem no Vaticano?
Essa convocatória demonstra o nível de periculosidade da situação, e como é forte a tentativa de desestabilizar o pontificado de Francisco. Mas, ao mesmo tempo, o momento exige que a reunião chegue ao fim com decisões concretas, que sejam criados mecanismos eficientes e transparentes em todas as Igrejas do mundo.