Por Patricia Fachin, no IHU
O pleito de 2018 tem se desenrolado de uma maneira muito própria em relação aos anteriores. A avaliação é de Clemente Ganz Lúcio, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – Dieese. “Isso tudo coloca em debate alternativas que são profundamente diferentes, sendo que algumas delas estão voltadas para uma restrição ao processo democrático, às liberdades individuais, aos direitos; isso é grave. Mas faz parte do processo democrático enfrentar esse debate”, pondera, na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line.
Dentre os inúmeros debates, a questão das reformas é determinante para o futuro do país. “Há um conjunto de mudanças que precisarão ser realizadas, revertendo reformas que foram feitas recentemente, como a reforma trabalhista, mas também a EC do Teto do Gasto, o papel das estatais, o papel da Petrobras, o sistema elétrico, a infraestrutura econômica e social, que precisa ser retomada, a capacidade do Estado em fazer investimentos e mobilizar o setor produtivo para uma nova estratégia econômica”, discute.
A manutenção da democracia, que deveria ser um debate superado, afinal de contas é o sistema político consolidado pela Constituição Federal, acabou se tornando uma das discussões centrais. No fundo, há também uma disputa pela possibilidade de existência da própria política como campo de disputas. “A política é a opção de fazermos um enfrentamento dessas diferenças a partir do diálogo, portanto, do entendimento e da construção nas diferenças de perspectivas convergentes no limite daquilo que é possível de ser pactuado”, assevera.
Contudo, produzir esse diálogo não deixa de ser uma das tarefas mais difíceis no nosso campo político. “A complexidade dos nossos problemas é crescente, as dificuldades são enormes, o desemprego é muito alto, o nível de atividade econômica é muito baixo, o Estado tem dificuldades enormes para mobilizar investimentos e há um problema fiscal que não é simples de ser resolvido”, avalia.
Clemente Ganz Lúcio é sociólogo, diretor técnico do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos – Dieese e membro do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social – CDES.
Confira a entrevista.
IHU On-Line — Que avaliação faz da conjuntura eleitoral? O que tem lhe chamado atenção nas eleições deste ano?
Clemente Ganz Lúcio — Chegamos ao processo eleitoral depois de uma intervenção muito grave, que foi o afastamento de uma presidente sem fato objetivo, depois de uma mudança radical no desenvolvimento do país, depois de perda de soberania, ou seja, depois de uma série de mudanças institucionais graves e profundas. Chegamos ao processo eleitoral com a sociedade muito dividida, com propostas radicalmente opostas do ponto de vista da condução do país daqui para frente, com graves riscos para a democracia. Isso tudo coloca desafios enormes que fazem com que esse processo eleitoral seja muito diferente de todos aqueles que vivemos até então.
IHU On-Line — Que avaliação faz da última pesquisa Datafolha acerca das intenções de votos para os candidatos à presidência, em que Bolsonaro lidera com 28% das intenções, seguido de Haddad, com 16%, Ciro com 13%, Alckmin com 9% e Marina com 7%?
Clemente Ganz Lúcio — Esse é um processo eleitoral complexo, com uma sociedade dividida, com propostas antagônicas, com sentidos de tratamento do interesse público e da estratégia econômica diferentes, com sentido de manutenção e preservação da liberdade e dos direitos. Isso tudo coloca em debate alternativas que são profundamente diferentes, sendo que algumas delas estão voltadas para uma restrição ao processo democrático, às liberdades individuais, aos direitos; isso é grave. Mas faz parte do processo democrático enfrentar esse debate. Espero que a sociedade faça escolhas no sentido da preservação da democracia, da liberdade e dos direitos, e aposte numa saída na qual o diálogo seja o elemento fundamental do ponto de vista da construção das alternativas e da viabilidade dessas alternativas para o futuro.
As posições dos candidatos são muito diferentes e existem diferenças substantivas nas suas propostas. Nesse sentido, é importante que o eleitor se informe para a escolha dos candidatos não só à presidência, mas também é importante compreender a relevância da escolha dos parlamentares. Isso porque o papel do legislativo cresce de importância, cresce porque a definição das regras é fundamental, e as escolhas que o país terá que fazer daqui para frente incluem múltiplas dimensões, todas elas com grande responsabilidade do legislativo no processo regulatório, na elaboração das leis. Portanto, não só a escolha do governador e do presidente mas também do parlamento é fundamental.
IHU On-Line — Há possibilidade de algum desses governos barrar as reformas ou fazer novas reformas?
Clemente Ganz Lúcio — Não há dúvida de que o Brasil precisa avançar em reformas no sentido de mudanças institucionais, mudanças na organização do Estado e na organização econômica, que coloquem o país numa trajetória de crescimento sustentável, com uma distribuição de renda e repercussão social que gerem bem-estar e qualidade de vida, e com uma dimensão ambiental que gere equilíbrio e sustentabilidade ambiental. As reformas recentes colocaram o país numa trajetória oposta a essa, seja ampliando a desproteção do trabalho, seja criando graves restrições ao papel do Estado, ao fim da miséria, à reestruturação do espaço urbano para a garantia da qualidade de vida em termos de mobilidade. Ou seja, há um conjunto de mudanças que precisarão ser realizadas, revertendo reformas que foram feitas recentemente, como a reforma trabalhista, mas também a EC do Teto do Gasto, o papel das estatais, o papel da Petrobras, o sistema elétrico, a infraestrutura econômica e social, que precisa ser retomada, a capacidade do Estado em fazer investimentos e mobilizar o setor produtivo para uma nova estratégia econômica. Portanto, mudanças precisam ser feitas e precisarão de um parlamento forte e de um governo disposto a conduzir tais mudanças.
Continuar as reformas que estão sendo feitas no momento agravará a nossa alternativa em termos de desenvolvimento econômico no sentido de enfraquecer uma alternativa soberana de desenvolvimento econômico, e o país se submeterá cada vez mais ao controle do capital externo, submeterá suas riquezas a um controle externo e, portanto, perderemos ativos fundamentais para promover um desenvolvimento soberano.
IHU On-Line — A última pesquisa feita pelo Ibope mostra que se o segundo turno for disputado entre Haddad e Bolsonaro, a probabilidade é que o petista vença no segundo turno. Se esse for o cenário, que possíveis alianças serão feitas pós-eleições?
Clemente Ganz Lúcio — Considero que um governo eleito com essa perspectiva de um projeto de desenvolvimento nacional soberano – que é o campo da centro-esquerda, como está sendo proposto por Haddad, Ciro e outros, como o Boulos, que propõe uma agenda na qual o crescimento econômico seja resultado de escolhas em que a produção econômica gere bem-estar social e equilíbrio ambiental – deve reunir forças. Um primeiro campo de alianças são as forças de centro-esquerda dispostas a consolidar uma abordagem de desenvolvimento que trate da nossa complexidade, com escolhas determinadas, e que sejamos capazes de enfrentar as mudanças que precisam ser feitas e de mobilizar a sociedade para as dificuldades que teremos. Precisamos ser claros com a sociedade, porque não teremos vida fácil pela frente.
As decisões serão pesadas e difíceis, mas são necessárias para recolocar o país numa outra trajetória. Esse campo democrático de centro-esquerda deveria abrir um espaço de diálogo com todas as forças da sociedade que apostam na democracia e estão determinadas a colocá-la no centro da nossa estratégia de desenvolvimento político futuro, para que tenhamos não só uma escolha de caminho econômico, mas uma afirmação determinada de que a democracia será fortalecida e que mudanças institucionais também promoverão o fortalecimento das nossas instituições e da nossa democracia.
É importante a construção de um espaço amplo de diálogo com as forças que estão dispostas. Mesmo perdendo as eleições, mesmo se o seu projeto econômico não for autorizado nas urnas, essas forças precisam ser reunidas em um processo no qual, de um lado, a democracia seja fortalecida e, de outro, haja um entendimento de quais são as mudanças que darão ao padrão de desenvolvimento econômico condições de um investimento de longo prazo. Esse campo amplo converge, por exemplo, em relação ao papel da educação. Não há dúvidas de que nós temos que ter uma solução estrutural para o desafio educacional, assim como o desafio de estruturar um sistema de segurança pública capaz de enfrentar as mazelas nessa área. Há uma grande convergência no que se refere à enorme dificuldade e ao desafio que significa também a estruturação de um sistema de proteção social que amplie e consolide a proteção não só laboral, mas social em sentido amplo. Mesmo com as diferenças que possam existir, há um campo de diálogo para investimentos de duas décadas, cujos compromissos ultrapassam os quatro anos de um governo. Ou seja, esses são compromissos que podem ser construídos numa mesa de diálogo, ainda mais se esse diálogo for orientado pela convicção de que a democracia é um bem universal e que precisamos defendê-la com toda nossa força.
IHU On-Line — O que se pode esperar de um novo governo petista? Esse diálogo entre as forças progressistas será possível após a divisão da esquerda nas eleições deste ano?
Clemente Ganz Lúcio — O desafio do diálogo é recente na política. A política nada mais é do que a constatação de que pensamos diferente, temos visões diferentes, as quais são associadas às condições e interesses econômicos, mas também a uma visão de mundo, a valores e a perspectivas diferentes. A política é a opção de fazermos um enfrentamento dessas diferenças a partir do diálogo, portanto, do entendimento e da construção nas diferenças de perspectivas convergentes no limite daquilo que é possível de ser pactuado. Não vejo outro caminho para enfrentarmos nossos problemas que não seja essa insistência determinada de construção de alternativas, que é o papel da política. A esquerda muitas vezes tem mais dificuldade de fazer esse diálogo, ela precisa fazer um movimento persistente de insistir nessa construção, e esse movimento exige, evidentemente, todo um trabalho a ser realizado.
A expectativa é que um governo, nesse campo de centro-esquerda, seja capaz, de um lado, de recuperar esse campo de entendimento, de diálogo, de um debate propositivo para fazer escolhas para enfrentar os problemas que temos; por outro lado, que seja capaz de construir um campo de diálogo comprometido com uma frente mais ampla. Se seremos ou não capazes, a história mostra que no passado recente o espaço de diálogo, as conferências e os instrumentos institucionais que foram desenvolvidos — não foram poucos, foram muitos — precisam ser aprofundados, muitos precisam ser fortalecidos e recuperados e outros precisam ser estabelecidos.
Há um espaço de diálogo fundamental a ser construído com o Congresso Nacional, é necessário estabelecer outro nível entre o Executivo e o Legislativo. Há um espaço de diálogo com o Judiciário, que também precisa ser construído. Esse é o papel não só do governo, mas também dos partidos políticos, das lideranças, e os movimentos sociais precisam estar mobilizados para aportar sua visão, suas propostas. Portanto, o diálogo é um processo contínuo de debate, e de um debate de intervenção, propositivo, deliberativo para que a sociedade faça suas escolhas e elas tenham repercussão positiva no nosso desenvolvimento.
IHU On-Line — Qual será a consequência política de uma vitória da esquerda no segundo turno? Que implicações uma vitória da esquerda poderá gerar na direita que tem se formado no país?
Clemente Ganz Lúcio — Uma vitória do campo da esquerda significa, primeiro, que a sociedade faz uma escolha que é fundamental, isto é, ela não está aceitando uma saída autoritária, nem uma saída antidemocrática, nem pelas armas ou que coloque em risco a liberdade e muito menos os direitos. Essa escolha do partido é fundamental e um elemento essencial desse processo eleitoral.
Segundo, uma vez feita essa escolha, esse campo tem que ter clareza da sua responsabilidade, porque precisa fazer não só uma entrega pela escolha que a sociedade fez e fazer um governo com esses valores, mas um governo que tendo esses valores seja capaz de fazer a entrega socioeconômica, ou seja, entregar um país que consiga recolocar o desenvolvimento econômico e o desenvolvimento social agregado a ele e de forma estrutural à dimensão ambiental.
Essa entrega não é simples, pois a complexidade dos nossos problemas é crescente, as dificuldades são enormes, o desemprego é muito alto, o nível de atividade econômica é muito baixo, o Estado tem dificuldades enormes para mobilizar investimentos e há um problema fiscal que não é simples de ser resolvido. Ou seja, temos muitos problemas, então será preciso uma comunicação muito clara para a sociedade, mobilizar os agentes econômicos para escolhas fundamentais e espero que tenhamos um governo e um Congresso Nacional capazes de iluminar a sociedade para suas escolhas, capazes de dar à sociedade orientações claras de qual é a trajetória do nosso desenvolvimento. Espero que essa seja uma tarefa contínua de um governo que saiba fazer isso a partir de um diálogo do entendimento, da construção, num campo de diversidades e de diferenças, mas com escolhas determinadas pelo sentido, que espero que no voto a sociedade faça, que é a escolha de uma saída democrática e de um campo democrático para governar o país.
IHU On-Line — Que papel os sindicatos estão desempenhando nesta eleição?
Clemente Ganz Lúcio — Os sindicatos desempenham um papel importante no Brasil — e no mundo —, pois são a instituição que representa o mundo do trabalho, que vocaliza o interesse econômico e social dos trabalhadores em um mundo onde o sistema produtivo mobiliza conhecimento, capacidade material e riqueza, por meio do empresário e do capital, e a força de trabalho materializada na capacidade produtiva de homens e de mulheres que participam do sistema produtivo. O sindicato representa essa dimensão dos trabalhadores e traz para a vida política e econômica a repercussão dos seus interesses, propostas, seja negociando acordos para melhorar os salários, repartindo resultados econômicos, no dia a dia da produção, em salários e condições de trabalho, regulando a proteção do trabalho, o direito. O grande negócio do sindicato é produzir direito; ele produz o direito materializado no direito ao trabalho.
Tem uma outra dimensão que é a intervenção institucional, ou seja, os sindicatos têm uma intervenção muito importante na vida pública e política. No caso do Brasil o sindicalismo tem uma intervenção grande na legislação, na regulação máxima, no papel junto ao Congresso Nacional, tem um papel importante na vida política, isto é, muitas lideranças sindicais têm uma militância político-partidária também grande — essa é uma caraterística da nossa organização sindical do ponto de vista da sua militância. Não se trata de que o sindicato tem um partido, não é isso, mas sim que os dirigentes sindicais têm vida partidária, pois muitos sindicatos têm dirigentes sindicais em diferentes partidos. Portanto, isso também é uma característica importante que dá ao movimento sindical uma camada de responsabilidade muito grande, não só de regular as relações de trabalho, mas também de ter uma incidência importante na vida pública em geral.
Os sindicatos, daqui para a frente, terão, cada vez mais, um papel fundamental de incidir na macrorregulação, na regulação geral feita a partir da legislação, de proteção não só laboral mas também social — discussão da Previdência, da Assistência, da Saúde, da Educação e da Habitação —, isto é, todas as condições que são reguladas por legislações nacionais e que precisarão cada vez mais ser respondidas, no âmbito da intervenção do movimento sindical, com propostas. Portanto, não só propostas para melhorar o patamar de direitos de proteção na relação laboral direta no âmbito da empresa e da categoria, mas também da macrorregulação, na regulação institucional, dando ao trabalho uma proteção legislativa ampla, assim como ao direito social de forma também bastante ampla.
IHU On-Line — Como está a disputa eleitoral para governador no estado de São Paulo? Como o senhor interpreta os dados da última pesquisa Datafolha, em que João Doria tem 26% das intenções de voto e Paulo Skaf, 22%?
Clemente Ganz Lúcio — São Paulo é um estado fundamental no caso brasileiro, é a principal Unidade da Federação do ponto de vista econômico e tem um dinamismo fundamental que precisa ser recolocado na sua centralidade. Nós temos uma perspectiva de transformação econômica muito grande no sistema produtivo, pois o Brasil precisa ser reindustrializado e isso passa, em grande medida, por uma reorganização do sistema produtivo no estado de São Paulo — é importante que as escolhas aqui possam caminhar nesse sentido. O debate aqui tem uma predominância forte desse campo de centro-direita, essa é uma característica desse processo, e a sociedade terá que fazer o debate e fazer suas escolhas. Espero que abram caminho para escolhas que permitam a reconexão do estado com uma agenda de desenvolvimento produtivo. Acredito que em parte o estado abandonou essa perspectiva, porque o sistema produtivo privado por si só não é capaz de articular esse tipo de intervenção, precisa intervenção do Estado, e o protagonismo de São Paulo para uma intervenção e uma articulação nacional também é fundamental.
Desejo que o governo eleito no estado de São Paulo seja um governo que se conecte com uma escolha nacional de recolocar o país numa trajetória de desenvolvimento produtivo de sentido amplo, que São Paulo seja, de fato, uma locomotiva para essas transformações e que o estado possa contribuir não só para o desenvolvimento do seu território e da sua população, mas para o desenvolvimento do país.
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Foto: Dida Sampaio, AE