Uma ponte intransponível? Titulação para quê? Debates sobre Favelas no Rio falam línguas muito diferentes

Por Ezra Spira-Cohen, no Rio On Watch

Dois eventos realizados no dia 18 de setembro, demonstraram uma grande divisão entre debates sobre questões relacionadas a favelas e moradores das favelas do Rio de Janeiro. Ambos os eventos tinham mais de cem pessoas presentes e cada um contou com um influente pensador global para ajudar a fomentar o debate.

O primeiro evento, “Brasil Mais Simples”, foi um seminário exclusivo sobre regularização fundiária produzido pelo SEBRAE, realizado no auditório do Infoglobo Comunicações no Centro do Rio, e transmitido ao vivo pelo Facebook. O economista peruano Hernando de Soto, fundador do Instituto para Liberdade e Democracia e famoso por evangelizar os direitos à terra como uma solução final para a pobreza, apresentou seu trabalho sobre os direitos de propriedade formal e desenvolvimento econômico em todo o mundo. O segundo evento foi o seminário inaugural do curso Olhares Periféricos, realizado no campus Maracanã da UERJ, na Zona Norte da cidade. A urbanista brasileira e arquiteta, Raquel Rolnik, ex-relatora especial da ONU para o Direito à Moradia Adequada (2008-2014), que documentou numerosas violações dos direitos à moradia nos preparativos da Copa do Mundo no Brasil, contribuiu para o seminário com uma crítica às perspectivas dominantes sobre as favelas e a informalidade.

Ambos os eventos destacaram a importância de reconhecer e gerar valor nas favelas, mas a divisão entre essas abordagens contrastantes pode ser uma ponte intransponível. Considerando o trabalho de dois convidados de renome mundial, a distância é clara. A ênfase de De Soto no fortalecimento dos direitos de propriedade e fornecimento de títulos formais de terra nas favelas divergem enormemente da visão crítica de Rolnik sobre abordagens que pressupõem desenvolvimento econômico, mas que em última análise acabam reforçando desigualdades e exclusão, apenas exacerbando a pobreza nas cidades do mundo.

A única potencial solução que pode ser vista como uma ponte para essa divisão foi destacada no final do debate “Brasil Mais Simples” por Jailson de Souza do Observatório de Favelas, quando ele descreveu o modelo do Termo Territorial Coletivo recentemente compartilhado no Rio por comunidades de Porto Rico.

“Brasil Mais Simples”

O evento no Infoglobo abriu com uma série de oradores, incluindo o Prefeito Marcelo Crivella e o Governador Luiz Fernando Pezão. Houve um painel sobre os desafios e oportunidades para a regularização fundiária urbana, com a participação de representantes do Ministério das Cidades, Caixa Econômica, Instituto de Terras e Cartografia do Estado do Rio de Janeiro (ITERJ), Fundação Getúlio Vargas (FGV), Governo Municipal de Campinas, Sindicato da Habitação do Rio (SECOVI) e Observatório de Favelas.

Seguido do painel, houve uma apresentação do Hernando de Soto e uma sessão de perguntas e respostas com a plateia sobre o papel da titulação fundiária na redução de conflitos e geração de desenvolvimento econômico em lugares tão diversos quanto a Amazônia, o Japão e o Oriente Médio. O evento terminou com o lançamento oficial de um projeto encabeçado por Roberto Medina para “construir uma favela” no Rock in Rio do ano que vem. Em parceria com a SEBRAE, Viva Rio e a Central Única das Favelas (CUFA), o projeto de Medina, “Comunidade Faz Negócio” irá prover oportunidades para moradores de favelas participarem do “Espaço Favela” no Rock in Rio, o qual irá destacar arte, comida e música das favelas do Rio.

“Olhares Periféricos: Centralidades Urbanas”

No mesmo dia, membros da comunidade acadêmica e ativista do Rio participaram de um evento na UERJ, organizado pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos (IESP/UERJ) e pelo Instituto Raízes em Movimento, uma organização comunitária amplamente respeitada no Complexo do Alemão. Consistido em palestras dadas pelos professores Raquel Rolnik (Universidade de São Paulo) e Luiz Antonio Machado (IESP) seguido por um debate, o evento marcou a inauguração de um curso de extensão que irá destacar a desconstrução de narrativas existentes sobre as periferias urbanas ao longo dos próximos meses.

Durante observações introdutórias, Alam Brum do Instituto Raízes em Movimento explicou o propósito do curso: “A gente vem de dentro de algumas favelas, sobretudo do Complexo do Alemão, produzindo pesquisas, produzindo saberes populares, organizando, sistematizando… disponibilizando para outros pesquisadores, disponibilizando para os ativistas e os movimentos sociais… A partir de um curso como esse, [nosso propósito é] dividir com toda a sociedade e trocar [saberes]”.

O pesquisador Ricardo Moura descreveu como o curso emergiu do CEPEDOCA (Centro de Estudos, Pesquisa, Documentação e Memória do Complexo do Alemão), o qual desde 2013 tem fornecido uma plataforma de convocação para todos os pesquisadores que estão trabalhando nos grandes complexos de favelas, através da qual universidades que atuam na área se envolvem com moradores para desenvolver pesquisas com eles de maneiras que beneficiem e empoderem mais a comunidade: “Ações que pudessem efetivamente construir pontes e caminhos junto às universidades e às pesquisas acadêmicas… para o desenvolvimento das pesquisas nas favelas junto com os movimentos sociais e grupos locais”.

A (Im)Possibilidade de Fazer a Ponte Entre Estas Perspectivas
Apesar de claras diferenças no tom e na abordagem, os dois eventos compartilham uma ênfase na importância de construir parcerias entre instituições e promover o intercâmbio entre áreas “formais” e “informais” dentro da cidade.

Durante “Brasil Mais Simples”, o foco foi no Estado e setores corporativos. Virtualmente todos os participantes pediram uma melhor coordenação entre os governos federal, estadual e municipal. Houve grande concordância com o fato de que a Lei 13.465 (aprovada em 2017) contribuiu positivamente para o processo de regularização fundiária e é uma resposta para muitos problemas urbanos. De acordo com Gilmar dos Santos, chefe da Secretaria Nacional de desenvolvimento Urbano (um ramo do Ministério das Cidades), a nova “ lei é o que é mais importante hoje, para política pública de qualidade… que muda a vida do cidadão”. O Governador Pezão ecoou essa visão dizendo que “não tem política pública melhor” para trazer pessoas para o setor formal. O Prefeito Crivella assegurou que “estamos devotados a essa causa” da regularização fundiária.

Além de falar de formalizar os direitos de propriedade em assentamentos informais fornecendo títulos de propriedade aos moradores de favelas, o evento elogiou os benefícios de parcerias com entidades corporativas como a SEBRAE e o Rock in Rio, que visam ajudar empreendedores em favelas vistos como limitados pela insegurança do setor informal para crescerem.

Em contrapartida, o evento Olhares Periféricos levantou críticas à relação entre autoridades públicas e empresas e alertou contra a dependência de soluções institucionais. Em vez disso, as parcerias que visam atender às necessidades dos moradores de favelas não devem apenas reconhecer que a organização social e econômica nas favelas tem atributos positivos, mas também trazer recursos diretamente para as entidades sociais e econômicas nas favelas, a fim de evitar a destruição, desapropriação e violência que recursos institucionais e a formalização podem gerar.

Enquanto as opiniões de políticos e atores institucionais expressas durante o “Brasil Mais Simples” ecoavam na cobertura da mídia sobre o evento, a visão de que títulos de terra são uma solução simples para problemas em favelas teve um momento notável de reflexão crítica. No painel sobre regularização fundiária, Jailson de Souza e Silva, fundador do Observatório de Favelas, foi o último a falar e ofereceu uma avaliação contundente dos comentários das autoridades públicas que compartilhavam o palco e que haviam falado anteriormente.

Jailson começou criticando o fato de que as mulheres estavam ausentes do debate: “A presença das mulheres é central… Porque elas [as mulheres] são as principais organizadoras, articuladoras de todo processo de construção de uma comunidade, de uma favela… É impossível discutir esse tema sem participação [das mulheres]”.

A crítica continuou. “A primeira coisa que a gente deve discutir é o seguinte: que conceito da cidade que a gente está trabalhando? A cidade não é apenas equipamentos e serviços, a cidade também é convivência, cidade também é diversidade, cidade também é solidariedade, cidade também é afetividade”. Jailson comentou sobre o Termo Territorial Coletivo como um exemplo: “Tem experiências, como em Porto Rico por exemplo, que faz claramente uma distinção entre conceder o direito ao imóvel [direitos de superfície] e, necessariamente, não conceder o direito ao solo”.

O evento se concentrou menos na periferia distante, mas no Vidigal, Cantagalo e Rocinha. Nas palavras de Jailson:

“[Essas favelas] são espaços centrais que têm que ser levados em conta como ente cultural, e têm que ser preservados contra a lógica de transformar esses ativos de vida em ativos de mercado, em ativos simplesmente voltados para a necessidade de pensar a nossa cidade dominada pela lógica do capital. Têm soluções criativas e inovadoras que simplesmente não passam pela lógica da propriedade formal. Nós podemos criar, por exemplo, [como foi feito em Porto Rico] mecanismos que garantam a presença do morador, garantam aquele ambiente cultural e permitam que a gente possa fazer distinção entre o solo e o imóvel [situadas sobre ele]”.

Para Jailson, é necessário “romper” com a política de habitação pública em massa do Minha Casa Minha Vida e “sua lógica de expandir a cidade… habitação é muito mais que moradia e nós podemos construir uma cidade mais diversa, mais rica, mais viva quando a gente leva em conta as pessoas que nela vivem. Principalmente as mulheres negras que são tão responsável por sua construção”.

Conclusão

A possibilidade de fazer a ponte entre as abordagens dos dois eventos parece desanimadora. Uma produz iniciativas como “Comunidade Faz Negócio” e a outra desafia a validade de categorias dicotômicas, como formal-informal e soluções baseadas em um processo simplista de levar as favelas à cidade formal. Enquanto um “Espaço Favela” no Rock in Rio pode parecer considerar as potencialidades que existem nas favelas, ele representa fundamentalmente a própria narrativa que Raquel Rolnik e outros querem inverter. Cria um espetáculo de comunidades pobres e atribui valor às favelas apenas quando elas são inseridas no mercado formal. Essa é uma visão distorcida da potencialidade que vem de dentro das favelas, pois seu valor é considerado apenas em termos de potencial comercial e expansão de negócios. Os benefícios podem surgir para alguns poucos nas favelas, mas isso efetivamente gera enorme riqueza para grandes empresas sem produzir mudanças substanciais para os pobres.

Ezra Spira-Cohen é doutorando em Ciência Política. Sua pesquisa foca nos impactos das políticas fundiárias e da intervenção estatal sobre a segurança fundiária no Brasil.

Favela do Metrô, no Rio de Janeiro, após demolição de ocupações consideradas irregulares, em 2014 / Tania Rego/ Agência Brasil

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