“o Um sem o Outro é nada”

Por Livia Jacob

Minha pesquisa de doutorado se iniciou com os estudos autodidatas que fiz sobre um pensador que eu acho difícil pra caramba de entender – Emmanuel Lévinas. Ele era judeu lituano e quando bem jovem foi para Paris cursar Filosofia. Como serviu durante a guerra ao exército francês, acabou capturado pelas tropas da S.S, sendo mantido como prisioneiro dos nazistas por cinco anos. Lévinas se ocupou de escrever sobre alteridade. Ele dizia que a filosofia, ao invés de se preocupar com “ser ou não ser, eis a questão”, deveria pensar mais os problemas concernentes à ética, já que esta sempre passa pelo outro. Ética não se confunde com empatia que demanda pathos, paixão. A ética é um exercício de racionalidade. Você não precisa e nem deve amar ninguém para que possa respeitá-lo. Essa atitude parte do entendimento de que todos somos humanos e que merecemos, portanto, garantias básicas e igualitárias que nos salvaguardem a dignidade.

Mas o que isso tem a ver com a foto que ilustra esse texto? – Você deve estar se perguntando a esta altura da leitura. É que Lévinas, sendo judeu e profundo conhecedor das escrituras hebraicas, dizia que Deus só poderia ser sentido numa experiência face a face, pois se espelha no “rosto do outro”. Claro que esse rosto é uma entidade abstrata, não se refere necessariamente ao rosto propriamente, mas à compreensão de existências externas a nós. Às vezes, porém, esta epifania pode de fato se dar literalmente através da face. E foi o que aconteceu comigo.

Desde que cheguei aqui no Canadá, comecei a ter muitas dificuldades de me comunicar com as pessoas do Brasil. Muitos encaram minha vinda para cá como a travessia de alguém que achou um portal para o paraíso. Eu tenho tentado mostrar que a minha experiência tem sido muito mais próxima a uma experiência de morte – eu larguei um emprego e abri mão de muitas coisas para estar aqui e, acreditem, sigo uma vida muito mais austera atualmente para poder realizar o meu sonho de acabar o doutorado. Sei que é difícil entender a morte sob a perspectiva da transformação. Por isso quase sempre fico calada. Porque também a morte, em qualquer âmbito, é para ser vivida sob luto. E tudo o que a gente vive em profundezas é mesmo só nosso. De todo modo, o que sempre tenho tentado comunicar ao Brasil é que não existe essa sociedade perfeita com a qual vocês sonham e que nossos antepassados guaranis chamavam de “terra sem males”. Pelo menos não existe neste plano. O Canadá, como o Brasil, tem problemas sociais diversos sobre os quais não irei me estender. Dá pra comparar? Não dá, pois são países historicamente construídos sob colonização diversa, a densidade populacional é totalmente díspar, bem como a cultura das pessoas, dentre outras questões.

Infelizmente, agora sou o exemplo vivo de tudo o que eu tentava mostrar às pessoas enquanto permanecia sendo ignorada. Eu tirei essa foto após ser espancada por uma gangue de jovens aqui numa rua de Winnipeg, bem próximo de onde estou morando. O ataque foi absolutamente inesperado, às três da tarde, à luz do dia. Eles basicamente me puxaram pelos cabelos e começaram a me socar, enquanto riam, achando graça da piada. Tentei fugir, mas eles logo me alcançaram, e voltaram a me espancar e quando dei por mim, estava no chão e eles estavam tirando minhas roupas. Eu tive a certeza, naquele segundo, de que ia morrer ou, ao menos, ficar bastante ferrada. Foi extremamente assustador. Eles eram quatro – três garotas e um rapaz – e podiam me chutar e socar até a morte facilmente. E aparentemente, era o que eles queriam, já que não pediram dinheiro, celular, nem objeto de valor.

Algumas pessoas passavam na rua… vários carros. E , claro, pessoas não param. Mas finalmente alguém parou. Era um senhor. Ele estava olhando tudo a alguns metros. Até que ele pousou os olhos sobre meus olhos. Naquele momento (e só naquele momento) senti que podia gritar… senti que alguém se importava verdadeiramente. E gritei, olhando nos olhos dele, em inglês (que eu tinha esquecido como se falava naquele momento, mas graças à luz nos olhos daquele homem, o inglês voltou): “Me ajude, eles estão tentando me matar, eu não sei quem são eles, eu não os conheço, eu não sou daqui”. O homem se aproximou… e a partir do movimento que ele fez, alguém que passava numa bicicleta também veio. Não éramos mais só uma pessoa sendo espancada por quatro… éramos três. O que fez a gangue ir embora correndo.

O homem ligou para a polícia. Eu não tinha condições de falar. Estava em choque. Ele fez todo o serviço e me deixou na porta de casa para que os paramédicos me buscassem… chegaram em cinco minutos e fui levada ao hospital. Uma médica me atendeu após três horas de espera e a consulta custou literalmente os olhos da cara – mil dólares canadenses. Não, aqui, ao contrário do que vocês pensam, a saúde não é “para todos”. É para os cidadãos e ainda assim não cobre alguns casos específicos. Você acharia um absurdo um estrangeiro ser violentado no Brasil e ainda ser obrigado a pagar a conta? Eu também acharia. Mas aqui é assim que funciona.

Logo em seguida, me levaram para a polícia. Gravaram meu depoimento e me mostraram as fotos dos suspeitos para que eu os identificasse. Entrei em desespero. Tive vontade de chorar:

– Sinto muito, eu não consigo reconhecê-los, falei ao detetive.

É que a pessoa que mais me agrediu – uma menina – tinha metade da cara coberta por uma bandana e todos os outros agora me parecem iguais, parecem a mesma pessoa…

Enquanto eu explicava meu embaraço, meu medo de acusar alguém injustamente, entendi que os agressores não tinham face porque o mal não tem face. Seguindo a esteira de Lévinas arrisco dizer que pra mim eles não tinham nenhum Deus.

O que eu vim fazer aqui não foi arranjar um marido (como tanta gente perguntava) ou uma via de escapar de um país em crise, que é como hoje enxergamos o Brasil. Vim estudar os processos de descolonização envolvendo as populações indígenas que são extremamente marginalizadas até hoje na América do Norte. Os jovens que me atacaram e quase me mataram são muito provavelmente indígenas, e nos mostram os frutos podres deste processo de imperialismo perverso. Eles já foram presos, cometeram furtos e mais duas tentativas de homicídio minutos após terem me atacado, um deles com uma faca (a pessoa foi hospitalizada e passa bem). Os locais acreditam que se tratava de um “batismo” de novo membro da gangue. O neófito precisa muitas vezes matar alguém para que seja aceito como parte do grupo. Aparentemente este intento não foi cumprido e não tenho ideia do risco de ser novamente espancada. A polícia não acredita que isso possa acontecer, mas naturalmente o assombro me ronda todo o tempo… só consigo pensar que podem reaparecer e realmente me matar…. Já sabem quem sou, onde moro, tentaram me matar e não conseguiram. O pânico é inevitável.

Esse longo texto não serve para denegrir a imagem do Canadá. Não acredito que este incidente represente o país e muito menos as pessoas que conheci aqui. Pelo contrário, sou muito grata aos meus amigos canadenses e amo esta linda terra. Meu propósito é que no Brasil se pense: o que justifica a violência? Existe algum lugar do mundo hoje onde estejamos imunes a ela? Eu jamais sofri nada parecido no meu país, considerado um dos mais perigosos do mundo. E me admiro quando vejo pessoas sensatas e bem educadas apoiando candidato cujo discurso faz apologia à tortura, ao estupro, ao massacre de minorias…

No Brasil diariamente pessoas são mortas por desconhecidos pelo simples fato de serem homossexuais ou “parecerem ser” (como o caso de pai e filho que foram mortos porque se pensava que era um casal). Temos o caso do Amarildo, que foi torturado (exatamente) pela própria polícia porque possivelmente era bandido, e quando se provou o contrário, já era tarde demais – estava morto. Outro problema corriqueiro é a violência contra mulheres, abrimos os jornais e todos os dias encontramos casos parecidos, todos escabrosos. A morte dessas pessoas é ignorada, afinal, são os outros, não me dizem respeito, não pertencem à minha comunidade. A solução para muitos brasileiros de classe média é imigrar, afinal já que não podemos lidar com nossos problemas, é melhor, então, lidar com os problemas dos outros. Fico me perguntando onde foi parar a nossa razão. Quando foi que começamos a entender que “eu me basto”. Que existe um “eu” em oposição aos “outros”. A autossuficiência que nos sufoca a lógica é a mesma que autoriza quatro jovens a violentarem uma estrangeira (sim é o que somos aqui e sempre o seremos), uma desconhecida. Não à toa me espancaram a face que não viram. Quem não tem cara, não tem caráter, essência, humanidade. É fácil exterminar.

Quando o papa Bento XVI visitou os campos de concentração na Alemanha e perguntou: “onde estava Deus neste momento?” ninguém entendeu nada. Afinal, o próprio havia sido membro das forças nazistas, numa época em que não se podia escolher um outro caminho, pois o nome do regime governamental é auto-explicativo – totalitarista. As pessoas acharam que o papa estava sendo irônico. Ele só estava, talvez sem saber, vivenciando em profundidade a filosofia de Lévinas. Deus, durante a segunda guerra, estava realmente morto. Pois Deus só existe dentro da gente. O que existe fora, é o outro. E o Um sem o Outro é nada.

OBS: Eu deixo um link com a matéria em inglês, relatando o caso. Está nos comentários (AQUI). Também imagino que muitos vão me mandar mensagens de solidariedade. Eu já agradeço antecipadamente, avisando que provavelmente não poderei responder imediatamente, pois estou em repouso. Os olhos ainda doem bastante. Por fim, quero agradecer mais uma vez a todos os canadenses que me ajudam cotidianamente e ajudaram neste momento difícil (specially you, Karen Froman, you are amazing!). Pessoas incríveis e solidárias. What happened has nothing to do with Canadians… it can happen anywhere to anyone, that’s what this text is about.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Isabel Carmi Trajber.

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

vinte − treze =