Quatro críticas centrais que surgiram na audiência pública ‘Ocupações em Áreas Federais’

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Na quinta-feira, 27 de setembro, a Defensoria Pública da União (DPU) organizou uma importante audiência pública para tratar da situação das favelas localizadas em terras federais que estão enfrentando ameaças de remoção. Representantes de diversas comunidades que participam do Conselho Popular estiveram presentes, incluindo (mas não se limitando a) Horto, Vila Hípica, Indiana, Barrinha, Rio das Pedras, Rádio Sonda, Maracajás, Araçatiba, Providência, Vila Autódromo e Vila Laboriaux na Rocinha. O evento também foi transmitido ao vivo no Facebook.

Houve uma expressiva participação de entidades públicas na audiência que se mostraram dispostos a engajar e responder às perguntas do público: a Defensoria Pública da União, o Núcleo de Terras e Habitação da Defensoria Pública do Estado (NUTH), a Secretaria do Patrimônio da União (SPU), a Procuradoria-Geral da União (AGU), o Ministério Público Federal (PGR), o Instituto Estadual do Ambiente (INEA) e o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio). Muitos dos representantes do governo presentes eram de departamentos internos de proteção ambiental de suas respectivas agências, incluindo um promotor público federal que representa especificamente o Instituto de Pesquisas do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. A seguir estão quatro críticas importantes que surgiram na audiência pública.

1. Remoções no Rio violam Lei Internacional dos Direitos Humanos

Durante toda a audiência, muitos participantes debateram o caso do Horto –uma comunidade que existe há mais de 200 anos. Tanto o advogado do Horto quanto o procurador federal que representava o Jardim Botânico estavam presentes e fizeram declarações apoiando seus respectivos argumentos jurídicos. No entanto, foi a moradora e líder comunitária do Horto, Emília de Souza, que foi direto ao ponto, defendendo o direito de permanência do Horto. Perto do final da audiência, Emília dirigiu-se à mesa de autoridades para anunciar uma notícia emocionante: os moradores haviam recebido recentemente uma carta do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos dirigida ao governo brasileiro em apoio à causa da comunidade. Segue um trecho resumido da carta:

Igualmente se expressa uma grave preocupação quanto à ameaça iminente de remoções de moradores do bairro do Horto, o que teria um impacto deletério em seu direito à moradia adequada e em seu direito de participar da vida cultural e de desfrutar e ter acesso a sua herança cultural. Também estamos preocupados que a decisão de remover foi tomada sem qualquer consulta prévia às pessoas, em causa, e que parece ter um impacto desproporcional sobre as pessoas de ascendência africana. Gostaríamos de lembrar ao governo de sua obrigação de garantir o direito a um padrão de vida e moradia adequados e o direito de participar da vida cultural, garantido por vários instrumentos internacionais de direitos humanos aos quais o Brasil aderiu.

O documento de oito páginas dá ao governo brasileiro sessenta dias para responder a várias questões pertinentes ao caso. Apesar da carta ter sido redigida em abril, os moradores do Horto só recentemente souberam de sua existência. Até que a ONU receba uma resposta do governo brasileiro, a carta exige a suspensão de todas as ações adicionais no Horto–uma demanda que ao que tudo indica não foi observada. No entanto, esta carta questiona seriamente a política de remoções que de fato tem prevalecido no Rio na última década, criando mais desigualdade em uma cidade já dramaticamente desigual.

2. Existe inépcia e inércia sistêmica por parte do governo

Vários casos levantados durante a audiência chamaram a atenção para o fracasso das entidades governamentais, encarregadas de acompanhar processos de regularização fundiária, em cumprir os seus deveres. Araçatiba é um caso claro de inação e falta de comunicação do governo. Quase todos os representantes do governo que discutiram sobre Araçatiba mencionaram a complexidade da situação, que envolve múltiplas entidades públicas federais e locais. No início deste ano, Araçatiba viveu um momento de urgência quando policiais federais apareceram na área. Os moradores afirmam que a polícia federal questionou o status legal da comunidade, apesar do fato do governo federal ter concluído um registro de moradores em 2012 para iniciar o processo de titulação de terras. A SPU também passou vários meses em conversações com um homem que afirmava ser o presidente da associação de moradores local–mesmo que tal associação não exista há dez anos. Um morador questionou: “Por que o Ministério Público chamou uma pessoa que se dizia ser presidente da associação para uma reunião–para discutir o futuro de sessenta famílias–se a associação não existe há dez anos? Por que fez uma reunião de portas fechadas com uma pessoa que não representa Araçatiba?”

Representantes da SPU e do INEA pediram desculpas aos três moradores de Araçatiba presentes na audiência. Além disso, um promotor público pediu desculpas pelos incidentes envolvendo forças policiais federais, que ele explicou serem resultado de confusão devido à venda ilegal de terras públicas em áreas próximas, na região de Guaratiba, onde Araçatiba está localizada. No entanto, muitas questões permanecem sem resposta. Por que forças policiais federais questionaram os moradores sobre o status legal da comunidade quando a comunidade–que existe há mais de quarenta anos–está atualmente em processo de regularização fundiária e titulação? Por que as agências governamentais responsáveis não verificaram com quem estavam falando, antes de convidar esse indivíduo para tomar decisões importantes sobre o futuro de toda a comunidade? Por que os líderes reconhecidos da comunidade não foram contatados?

Moradores da Vila Laboriaux, na Rocinha, e da Vila Autódromo também se manifestaram sobre a inação do governo. Um morador da Vila Laboriaux mencionou que, após as remoções em uma parte da comunidade, nada foi feito com a área deserta. O terreno baldio já foi ocupado por indivíduos que não são da comunidade –e ainda assim, o governo não tomou medidas.

Maria da Penha, da Vila Autódromo, também observou que o acordo de reassentamento coletivamente negociado entre a comunidade e a Prefeitura não foi respeitado. O acordo –que foi alcançado após uma longa luta que terminou com a remoção da grande maioria dos moradores– incluiu a promessa da documentação oficial para provar a posse e urbanizações futuras para os moradores remanescentes. “Nós temos um acordo, a Vila Autódromo tem um acordo com a prefeitura, dela nos dar os documentos. Até hoje, nada foi feito. Estou morando há dois anos sem documentação e sem a segunda parte da obra. O que nós temos que fazer é realmente lutar e dizer que temos o direito de ficar. Favela faz parte da cidade, é lá que nós moramos, é lá que nós estamos felizes. E nós não temos que ser removidos. As favelas têm que ser urbanizadas e respeitadas. Direito de moradia é para todos, não só para a minoria.”

3. Moradores esperam promessas não cumpridas

Outro caso discutido foi o da Vila Hípica, onde a eletricidade está cortada há anos, sem explicação. O ICMBio, que administra o Parque Nacional da Tijuca, é o responsável direto neste caso. O representante presente na audiência prometeu que voltaria a ligar a eletricidade e trabalhar com a comunidade, afirmando: “Nós vamos resolver isso”. Ele também observou que ninguém pode viver sem eletricidade. Porém, não é a primeira vez que um representante do ICMBio promete corrigir a situação na Vila Hípica. Após a reunião, os moradores permanecem céticos de que tudo mudará, mesmo com a promessa do representante do ICMBio que foi registrada.

4. Plano Estratégico do Prefeito Crivella ainda paira

A ameaça iminente do Plano Estratégico de Crivella foi mencionada por muitos moradores e pela representante do NUTH. O Plano contém duas metas específicas relacionadas a remoções, o primeiro requer estudos sobre a “requalificação urbana” e a verticalização de Rio das Pedras–o que envolveria a interrupção e provável remoção de partes significativas da grande comunidade. O segundo prevê a remoção de 14.000 casas na região do Maciço da Tijuca devido a “risco ambiental”. Os moradores de Rio das Pedras estiveram presentes na audiência e afirmaram que a remoção continua sendo uma preocupação, apesar da vitória da comunidade em derrotar a proposta original de verticalização de Crivella no ano passado. Este ano, a Light tem pressionado intensamente os moradores. Embora uma lei tenha sido aprovada em abril–forçando a Light a remover medidores elétricos problemáticos–os moradores continuam recebendo contas de eletricidade muito altas. A comunidade também sofreu um déficit de professores de escolas públicas no início do ano, dificultando a garantia do direito constitucional das crianças à educação pública.

Além disso, alguns moradores acreditam que o projeto de Crivella para Rio das Pedras, conforme definido no Plano Estratégico, não está, de fato, morto. Crivella recentemente negociou terras com o governo do Estado do Rio de Janeiro e adquiriu uma área perto de Rio das Pedras, onde ele alega que pretende construir 10.000 unidades habitacionais até 2020. Ninguém sabe se este anúncio sinaliza a preparação para outra tentativa de remoção na área, mas os moradores continuam comprometidos em resistir a tais ameaças. O presidente da Comissão de Moradores de Rio das Pedras disse: “O tormento da remoção continua. Nós vamos lutar e ele não poderá fazer isso porque somos fortes”.

Houve também conclusões positivas da audiência pública. Os moradores expressaram suas opiniões e algumas autoridades do governo prometeram trabalhar em busca de soluções positivas. Os membros das comunidades agradeceram aos defensores públicos federais e estaduais por sua dedicação e prometeram seguir em frente na luta por seus direitos.

 

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