“Ministro” de Bolsonaro repete erro de Temer ao tratar de trabalho escravo. Por Leonardo Sakamoto

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A campanha de Jair Bolsonaro segue demonstrando incompreensão sobre o que é trabalho análogo ao de escravo e como esse crime vem sendo combatido. Desta vez, Luiz Antônio Nabhan Garcia, presidente da União Democrática Ruralista (UDR), um dos principais conselheiros do presidenciável, afirmou, nesta quarta (24), que empresário que ”está gerando emprego, produzindo, trabalhando, pagando imposto” não pode ser considerado ”escravagista”.

Ele – que está cotado para ser ministro da Agricultura e Pecuária de Bolsonaro – criticou também o que chamou de ”indústria da multa em cima de posições ideológicas e políticas”.

De acordo com registro de Cristiane Agostine, do jornal Valor Econômico, Nabhan opinou que ”se algum produtor eventualmente comete uma arbitrariedade na questão trabalhista, ele não pode ser transformado em um escravagista”. E atestou que ”uma simples irregularidade trabalhista não pode ser transformada em trabalho escravo”.

Uma simples irregularidade trabalhista não é configurada como trabalho escravo. O crime é caracterizado por um conjunto de violações à dignidade ou à liberdade. Não é apenas um problema pontual, como pode ser visto nos casos deste post.

E sim, empresário que ”está gerando emprego, produzindo, trabalhando, pagando imposto” também pode ser flagrado com trabalhadores em condição análoga à de escravo. Basta negar a liberdade ou a dignidade a parte de seus trabalhadores.

Mais de 53 mil pessoas foram resgatadas de centenas de fazendas, carvoarias, oficinas de costura, canteiros de obras, bordeis. Empresários e empresas, de anônimos a famosos, como Odebrecht, M.Officer e Cosan, já foram responsabilizados pelo governo desde 1995. Isso não tem a ver com maldade ou imoralidade, mas com economia – mais precisamente a redução de custos visando a facilitar a concorrência ou aumentar os ganhos.

E, por outra: geração de empregos não é favor de empresário a trabalhador, ao contrário do que alguns querem fazer crer. É um contrato de compra e venda de força de trabalho regido por leis e regras, para garantir que direitos e deveres sejam observados e que a saúde e segurança dos trabalhadores respeitadas. Passar por cima desses regras em nome da produtividade é rasgar esse contrato e, portanto, fomentar a insegurança jurídica no país.

Mesmo equívoco de Temer

No dia 20 de outubro do ano passado, o presidente Michel Temer divulgou quatro autos de infração de irregularidades banais afirmando que isso teria levado a auditores fiscais a considerarem um caso como ”condições degradantes”, um dos elementos que caracterizam trabalho análogo ao de escravo, segundo o artigo 149 do Código Penal.

”O ministro do Trabalho me trouxe aqui alguns autos de infração que me impressionaram. Um deles, por exemplo, diz que se você não tiver a saboneteira no lugar certo significa trabalho escravo”, afirmou em entrevista ao jornalista Fernando Rodrigues, do portal Poder 360. Ele também mostrou autos relacionados a extintor mal sinalizado e beliche sem escada nem proteção lateral.

Contudo, Temer não informou que haviam sido emitidos outros 40 autos de infração na mesma fiscalização, incluindo aqueles que tratavam de problemas graves como o não pagamento de salários, alojamentos superlotados e condições inadequadas de higiene. Ou que a fiscalização foi confirmada pela Justiça do Trabalho, que condenou o empregador.

Isso ocorreu em meio à polêmica sobre uma nova portaria do Ministério do Trabalho que condicionava o flagrante de trabalho escravo ao cerceamento da liberdade com uso de vigilância armada. Isso desconsiderava as condições de trabalho em que se encontravam as vítimas, indo de encontro ao Código Penal. E também em meio à negociação junto à Câmara dos Deputados para que seja rejeitada a segunda denúncia contra Temer, encaminhada pela Procuradoria-Geral da República.

A fiscalização, que resultou no resgate de 63 trabalhadores, ocorreu entre março e abril de 2011, lavrando 44 autos de infração ao todo, e foi coordenada pelo então auditor fiscal João Batista Amâncio. ”Encontramos alojamento que era um lixo, com gente dormindo no chão, sem colchão. Faltava higiene, condições sanitárias. Mas também encontramos trabalhador com carteira de trabalho retida, trabalhador que não recebeu salário algum.”

De acordo com ele, durante uma fiscalização, os auditores são obrigados a lavrar autos de todas as irregularidades encontradas, das mais leves às mais graves de acordo com uma lista de infrações estabelecida pelo Ministério do Trabalho. Algumas autuações focam em detalhes tão banais que podem parecer um exagero. Porém, não é a falta de saboneteira ou de escada de beliche que configura condições degradantes e, portanto, trabalho análogo ao de escravo, mas a somatória das autuações mais graves.

Ou seja, segundo Amâncio, não foram as irregularidades banais que caracterizaram o trabalho escravo. ”O presidente, como dirigente de um órgão público, antes de dar uma informação dessa deveria consultar o setor competente, buscar o relatório da fiscalização e dar a informação completa E não pinçar um auto de infração”, avalia.

A análise foi confirmada a este blog naquela época por Silvio Beltramelli, procurador do Ministério Público do Trabalho que esteve na operação. ”Obviamente a caracterização de trabalho escravo não saiu só desses autos de infração.” Para ele, ”compreendidos isoladamente, certamente não caracterizam o trabalho escravo”. ”Se você soma tudo, o número de pessoas que a casa não comporta, pessoas sem conseguir tomar banho, gente dormindo no chão da cozinha, sem material de higiene. Tudo isso junto caracteriza essa condição.” Segundo o procurador, tudo coopera para o descumprimento de normas de saúde e segurança, que se enquadra no artigo 149 do Código Penal como condições degradantes.

A sentença da juíza da 1a Vara do Trabalho de Americana, Natália Antoniassi, de agosto de 2013, afirma que ”lamentavelmente, a existência de trabalhadores em condição análoga à de escravo restou perfeitamente caracterizada. A ação conjunta do Ministério do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho foi extremamente minuciosa, não deixando dúvidas que a ré se utilizava de mão de obra escrava em suas construções”. Ela confirmou as condições degradantes a que estavam submetidos os trabalhadores e ressaltou outros elementos, como o aliciamento. Trazidos de ”regiões miseráveis do Norte e Nordeste” com a promessa de que teriam a viagem custeada pela empresa e que ganhariam um bom salário, eles encontraram outra realidade ao chegar à cidade.

Pedidos de ruralistas e da construção civil

No dia 16 de outubro de 2017, o então ministro do Trabalho Ronaldo Nogueira atendeu a um antigo pedido da bancada ruralista no Congresso Nacional e de empresas da construção civil e reduziu o conceito de trabalho escravo, o que dificultou a libertação de pessoas. As condições de trabalho a que estavam submetidas as vítimas, por piores que sejam, passavam a ser acessórias para determinar o que é trabalho análogo ao de escravo pelos auditores fiscais e a concessão de seguro-desemprego aos resgatados.

Isso ia de encontro ao que está na lei. Quatro elementos podem definir escravidão contemporânea: trabalho forçado (que envolve cerceamento do direito de ir e vir), servidão por dívida (um cativeiro atrelado a dívidas muitas vezes fraudulentas), condições degradantes (trabalho que nega a dignidade humana, colocando em risco a saúde e a vida) ou jornada exaustiva (levar ao trabalhador ao completo esgotamento dado à intensidade da exploração, também colocando em risco sua saúde e vida).

A procuradora-geral da República Raquel Dodge criticou duramente a portaria em mais de uma ocasião. Segundo ela, ”ao adotar um conceito de trabalho escravo restrito à proteção da liberdade e não da dignidade humana, a portaria fere a Constituição”. A medida acabou suspensa pela ministra Rosa Weber, do Supremo Tribunal Federal, e revogada pelo próprio governo com a publicação de nova portaria no final de dezembro – devido à intensa pressão da sociedade, de políticos, magistrados, procuradores, agências das Nações Unidas e parte do empresariado e investidores estrangeiros, fora o vexame na mídia internacional. O ministro Ronaldo Nogueira, que reassumiu o cargo de deputado federal na virada do ano, não conseguiu se reeleger neste mês de outubro.

Confisco de propriedades com o apoio de Bolsonaro

A declaração de Nabhan não foi a única relacionada ao tema durante a campanha.

O próprio Jair Bolsonaro, mais de uma vez, já tratou do tema. Em seu programa de governo, propôs revogar a principal legislação aprovada, nos últimos anos, para o combate ao trabalho escravo contemporâneo no país – a emenda constitucional 81/2014, que prevê o confisco de propriedades flagradas com esse tipo de mão de obra e sua destinação à reforma agrária e à habitação popular.

O item consta das propostas para ”reduzir os homicídios, roubos, estupros e outros crimes”: ”Retirar da Constituição qualquer relativização da propriedade privada, como exemplo nas restrições da EC/81”.

A emenda 81/2014 não criou o confisco de propriedades sem indenização, apenas alterou o artigo 243 da Constituição Federal, que já tratava da expropriação de imóveis flagrados com cultivo de plantas psicotrópicas ilegais, acrescentando a questão dos trabalhadores escravizados. Ou seja, essa ”relativização” foi prevista pela Assembleia Constituinte de 1988. O programa de Bolsonaro não cita se irá propor também a revogação da previsão de confisco para plantações de maconha.

O deputado federal, contudo, votou a favor dessa emenda que, agora, se coloca contrário, de acordo com o registro do primeiro turno de votação, ocorrido em 11 de agosto de 2004. Ela corria na Câmara sob a alcunha de PEC 438/2001. Naquele dia, todos os partidos e bancadas recomendaram a aprovação da emenda e 326 deputados votaram a favor. Mesmo com a orientação, dez se posicionaram contra e oito se abstiveram.

A chamada PEC do Trabalho Escravo levaria oito anos para ser analisada e aprovada em segundo turno na Câmara, em 22 de maio de 2012. Foram 360 favoráveis, 29 contrários e 25 abstenções. Nessa data, o registro de votação não indica a presença do deputado no plenário.

A emenda veio a ser promulgada, em 2014, após dois turnos de votação no Senado Federal e 19 anos de trâmite. Até agora, contudo, ela ainda não foi regulamentada devido à tentativa de parte da bancada ruralista de usa-la para inserir uma mudança na definição legal do que são condições análogas às de escravo.  Com isso, a emenda constitucional foi aprovada, mas não é usada. A proposta de texto que tramita para regulamentá-la afirma que o processo de confisco começaria após condenação judicial transitada em julgada, ou seja, sem possibilidade de recursos – e não apenas devido à fiscalização de auditores.

Grave infração trabalhista não é escravidão

No dia 8 de outubro, em entrevista a Marco Antonio Villa, na rádio Jovem Pan, Jair Bolsonaro cometeu o mesmo erro de Temer e de Nabhan.

“Marco, me permite dar um exemplo? Eu fui estudar, são 180 itens. Por exemplo, na sua propriedade tem uma senhora de trinta anos, que está com máscaras, luva, roupa e bota, e está pulverizando uma plantação de alface para combater pulgão. Chega o Ministério Público do Trabalho, faz um teste de gravidez dela, e nem ela sabia que tava grávida. Vai que tá grávida? Então, em cima do ativismo judicial, [fazem um] processo para expropriar o imóvel. Isso não pode continuar acontecendo.”

Reportagem de Piero Locatelli, para o Intercept, ouviu o procurador Ulisses Dias de Carvalho, vice-coordenador da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho, sobre a declaração. “Isso aqui em nenhum lugar do mundo é trabalho escravo”, resumiu o procurador. Para ele, um caso desses até poderia se tratar de uma grave infração trabalhista, mas não de trabalho escravo.

E Maurício Krepsky, auditor fiscal que comanda a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério do Trabalho, afirmou na mesma matéria: “Não é uma simples irregularidade que caracteriza trabalho escravo, mas todo um contexto de ações e omissões do empregador em garantir uma condição mínima de trabalho”.

Capitalismo comunista

Por fim, o Brasil não é para principiantes, realmente. Tive a oportunidade de ouvir no Congresso Nacional que a fiscalização de formas contemporâneas de escravidão e mais especificamente a ”lista suja” do trabalho escravo (cadastro público de empregadores flagrados por esse tipo de exploração) são coisa de ”comunista”.

Ou seja, o combate ao trabalho escravo, que, em última instância, significa garantir que o contrato de compra e venda de força de trabalho, base do capitalismo, seja feito corretamente, é coisa de ”comunista”.

Considerando que o mercado precisa de informação de qualidade circulando livremente para que investidores, financiadores e parceiros comerciais possam tomar decisões baseadas na realidade, eu não imagino nada mais capitalista do que um instrumento como a ”lista suja”. Afinal, fornece subsídios para que se realize gerenciamento de riscos. O que os críticos a elas prefeririam? Uma economia planificada em quinquênios, em que um Estado autoritário obrigasse às empresas a comprar de uma lista fechada de fornecedores chancelados pelo comitê central do partido no poder?

O problema é que vivemos em um capitalismo de periferia, selvagem e que não gosta de regras. Parte de nosso empresariado não aguentaria nem cinco minutos em um livre mercado, sem um governo que injete bilionários subsídios e perdoe bilionárias dívidas, privatizando lucros e socializando os prejuízos com o resto do país. Ao mesmo tempo, não sobreviveria a um sistema de sindicatos realmente fortes e livres, em que os trabalhadores ajudam a decidir os rumos das empresas. Não admira que sintam-se desconfortáveis quando informação de interesse público sobre impactos negativos de ações empresariais corre livremente, sendo usada para tomar decisões.

Imagem: Trabalhadores produzindo peças para oficina responsabilizada por trabalho escravo (Foto: MPT/Divulgação)

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