Reunidos em seu XXXV Encontro em Trancoso, Bahia, cerca de 200 procuradores da República divulgaram Carta na qual rechaçam “toda forma de intolerância, violência, discriminação e discurso de ódio, reafirmando seu compromisso com uma sociedade plural e sem preconceito em que sejam respeitados todos os direitos fundamentais de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e pessoas intersexuais”. E afirma: “É dever do Estado brasileiro defender todas as formas de famílias, segundo uma visão inclusiva e plural, expressão direta da dignidade da pessoa humana.”
A Carta de Trancoso estabelece ainda que “As procuradoras e procuradores devem zelar pela liberdade de expressão, evitando todas as formas de controle pela palavra e de censura prévia, inclusive entre seus pares, observados os limites legais”.
Leia na íntegra:
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O papel do Ministério Público Federal na promoção da igualdade de gênero
Carta de Trancoso
“As Procuradoras e Procuradores da República, reunidos no município de Porto Seguro (BA), no XXXV Encontro Nacional dos Procuradores da República, ocorrido entre os dias 31 de outubro e 4 de novembro de 2018, em torno do tema central “O papel do Ministério Público Federal na promoção da igualdade de gênero”,
CONSIDERANDO que a Constituição da República prevê expressamente que “todos são iguais perante a lei”;
CONSIDERANDO que o Estado Democrático é destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, o bem-estar, a igualdade e a justiça como valores supremos da sociedade brasileira, de forma fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social;
CONSIDERANDO que é atribuição constitucional do Ministério Público Federal garantir a defesa do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis;
CONSIDERANDO o Objetivo de Desenvolvimento Sustentável – ODS – 5 decorrente da Agenda 2030, estabelecida pela Cúpula das Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável, que pretende “alcançar a igualdade de gênero e empoderar todas as mulheres e meninas”;
CONSIDERANDO a aprovação das teses no Congresso Técnico promovido pela ANPR relativas ao tema de Gênero;
CONSIDERANDO o resultado da discussão do tema na 1ª Conferência das Procuradoras da República pela Procuradoria Geral da República;
CONSIDERANDO as conclusões do trabalho “Cenários de Gênero”, desenvolvido pelo Conselho Nacional do Ministério Público, sobre a inexpressiva participação feminina em congressos, palestras, conferências e posições de chefia, e o decréscimo da presença feminina nos números de ingresso na carreira;
CONSIDERANDO que o princípio da unidade dos direitos humanos, que norteia toda a normativa internacional sobre o tema, implica a necessidade de sua defesa integral, assim vistos como essenciais ao desenvolvimento da pessoa humana e à vida na Terra em um meio ambiente equilibrado;
CONSIDERANDO os debates ocorridos ao longo do XXXV Encontro Nacional das Procuradoras e Procuradores da República,
CONCLUEM que:
- A equidade entre os gêneros constitui expressão da cidadania e dignidade humana, princípios fundamentais da República Federativa do Brasil e valores do Estado Democrático de Direito.
- A atuação do Ministério Público Federal é essencial para a promoção dos princípios e regras de direitos humanos previstos na Constituição e em convenções e tratados dos quais o Brasil é signatário.
- A igualdade de gênero é um movimento global das democracias modernas e um compromisso internacional firmado em Convenções Internacionais sobre Direitos Humanos. Resoluções, declarações e recomendações foram aprovadas pelas Nações Unidas, pela Organização dos Estados Americanos e pelas agências especializadas para favorecer a igualdade de direitos entre o homem e a mulher.
- A igualdade de gênero deve ser tutelada pelo Ministério Público Federal na sua atuação institucional, levando em conta a perspectiva de gênero e, internamente, até mesmo para legitimar e fomentar o enfrentamento externo da questão.
- As procuradoras e procuradores da República devem garantir, individual e institucionalmente, o direito à não discriminação.
- O Ministério Público Federal deve ampliar a sua capacidade de acolhimento da diversidade, pois somente uma instituição fraterna e pluralista desenvolve com plenitude as potencialidades de seus integrantes.
- Uma das formas de trabalhar a equidade dentro da instituição é por meio da promoção da simetria e criação de iguais oportunidades de liderança em todos os níveis de tomada de decisão.
- Independentemente da regulamentação do tema, é imperioso garantir-se a participação equânime das mulheres em palestras, conferências e foros, nacionais ou internacionais, forças tarefa, grupos de trabalho, assessorias jurídicas e administrativas, chefias, comissões e coordenações, em nome da instituição e da Associação Nacional dos Procuradores da República, para evitar o viés de grupo. A garantia dessa participação permite que as mulheres sejam cada vez mais lembradas por suas expertises e não pelo simples fato de serem mulheres.
- O Ministério Público Federal deve, além de praticar ações afirmativas, analisar a atratividade da magistratura ministerial, os obstáculos e estímulos ao exercício e evolução da carreira.
- A promoção da equidade de gênero no Ministério Público Federal deve passar pela implementação do teletrabalho, para estimular o interesse de mulheres pela carreira e possibilitar a mobilidade e ascensão, nos moldes propostos pela Comissão de Reestruturação instituída pelo Conselho Superior do Ministério Público Federal.
- A proposta apresentada pela Comissão de Reestruturação institui o teletrabalho como ferramenta de gestão do trabalho das procuradoras e procuradores da República, permitindo-lhes a organização de sua agenda para a execução de atividades inerentes ao cargo de modo remoto, sem, contudo, implicar residência fora da sede da Procuradoria ou criar direito subjetivo à ausência, tendo em vista a manutenção dos deveres inerentes ao cargo e da responsabilidade integral pela prática dos atos funcionais, inclusive os presenciais.
- O envolvimento dos homens, sem discriminação reversa, é fundamental para promover a igualdade de gênero, sempre incluindo a perspectiva de que este não é apenas um problema das mulheres, mas uma questão de direitos humanos. A igualdade liberta todas e todos de estereótipos sociais que não contribuem para o progresso da humanidade.
- A promoção da igualdade tem como pressuposto o efetivo exercício das liberdades civis – religiosas, de expressão, de reunião, de associação e de imprensa.
- As procuradoras e procuradores devem zelar pela liberdade de expressão, evitando todas as formas de controle pela palavra e de censura prévia, inclusive entre seus pares, observados os limites legais.
- O Ministério Público Federal rechaça toda forma de intolerância, violência, discriminação e discurso de ódio, reafirmando seu compromisso com uma sociedade plural e sem preconceito em que sejam respeitados todos os direitos fundamentais de lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e pessoas intersexuais.
- A Associação Nacional dos Procuradores da República envidará esforços para, em conjunto com a Escola Superior do Ministério Público da União e com os demais ramos do Ministério Público da União, realizar uma conferência entre membros LGBTI do MPF, de preferência com a participação de todos os ramos do MPU.
- As procuradoras e procuradores da República são cidadãs e cidadãos, porquanto, legitimados a fazerem o uso da palavra em defesa das liberdades civis e políticas, lutando contra retrocessos que atinjam direitos fundamentais.
- As membras e membros celebram o papel que o Ministério Público Federal exerceu e exerce na defesa dos direitos da população LGBTI, judicial e extrajudicialmente, ressaltando o compromisso para que seus direitos não sejam suprimidos.
- É dever do Estado brasileiro defender todas as formas de famílias, segundo uma visão inclusiva e plural, expressão direta da dignidade da pessoa humana.
- Como consequência necessária do dever de garantia dos direitos humanos, é imprescindível a existência de órgão superior da Administração do Estado brasileiro incumbido especificamente da defesa desses direitos.
- Como consequência necessária do dever de garantia do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, é imprescindível a existência de órgão superior da Administração do Estado brasileiro incumbido especificamente da defesa desse direito.
- Deve-se buscar com premência a reposição das perdas inflacionárias que deterioram os subsídios das magistraturas federais, únicas carreiras de estado da União que não têm reajustes desde 2015 (e que repuseram parcialmente a inflação apenas de 2013 e anteriores). A defasagem absoluta e relativa dos subsídios põe em risco a preservação do próprio status constitucional da instituição, e é particularmente injusta aos aposentados, que não têm acesso a verbas remuneratórias e indenizatórias recebidas na ativa.
- Reforça-se a necessidade de os membros do MPF continuarem envidando esforços para a institucionalização da lista tríplice para Procurador-Geral da República, bem como da sua inclusão formal na Constituição da República, consagrando a escolha democrática e republicana de representante máximo da instituição.
Porto Seguro, 3 de novembro de 2018.”
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Plenária com a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, na sexta-feira (2). Foto: ANPR