Soletrando palavras nas águas do rio Madeira. Por José Ribamar Bessa Freire

No Taqui Pra Ti

Soletrando palavras nas águas do rio Madeira Numa expedição literária pelos rios da Amazônia, o piloto da embarcação tinha que ter nome de escritor, não tinha não? E ele tem: Fernando Sabino. Esse é seu nome de batismo, compartilhado com o apelido de Beira-Mar. No momento em que escrevo, o nosso timoneiro manobra o leme do barco “Comandante Souza”, que navega pelo rio Madeira, levando escritor, músico, cinegrafista, fotógrafo, professor, jornalista e animador cultural, integrantes da equipe do projeto “Amazônia das Palavras”.

Já estamos zarpando em direção à Borba, guiado por Fernando Sabino de Araújo, 64 anos, cabelos brancos, com porte altaneiro de fazer inveja ao comandante do Titanic. Ele desvia o barco dos inúmeros icebergs que, devido ao calor amazônico, se disfarçam em troncos de árvores boiando no grande rio. Um perigo. Deixamos para trás Nova Olinda do Norte, onde realizamos nessa sexta (9) oficinas com alunos do ensino fundamental da Escola Estadual Nossa Senhora de Nazaré, à semelhança do que ocorreu em Manaus, no rio Negro, na segunda (5) e em Itacoatiara, no rio Amazonas, na quarta (7).

À noite, um senhor espetáculo com o palhaço engolidor de letras e uma aula aberta à comunidade sobre cinco equívocos cometidos quando olhamos os índios. Durante o dia, as oficinas. Uma delas, ministrada pelo escritor José Roberto Torero, permite que os alunos recriem histórias tradicionais, entre elas a da Bela Adormecida na floresta amazônica, com versões que substituem o príncipe por personagens locais. A Bela Adormecida Caboca despertada pelo beijo do bêbado da cidade, carinhosamente chamado de Tchumbalada, se recusa a casar com ele, preferindo o Boto sedutor que a leva para o fundo do rio Madeira, onde foram felizes para sempre.

Os sons da Amazônia são trabalhados na oficina do percussionista Bira Lourenço que tira melodia do rio, das árvores, dos animais, do vento e até de muda de planta, estimulando a produção de histórias com sons, inclusive os inventados pelos alunos. A jornalista e fotógrafa Bete Bullara se encarregou da oficina que desenvolve textos e poemas com as crianças para incentivar o prazer da leitura. E Leo Ribeiro, mestre em design, trata da palavra animada. Este que batuca essas mal traçadas fica no bem-bom, jiboiando, contando histórias que os índios lhe contaram.

Hospital das palavras Nas três cidades já visitadas, vi brilho nos olhos de algumas crianças de 10 a 12 anos, quando lhes contei a história da “Sogra do Jacamim”, que Barbosa Rodrigues recolheu por volta de 1870. A narrativa divertida contém um minitratado de ornitologia, com a classificação de pássaros da Amazônia. Em Manaus, entre 80 alunos de duas turmas do CETI Gilberto Mestrinho, apenas um havia visto um jacamim. Talvez por se tratar de uma escola bilíngüe, os alunos se amarraram mais na versão guarani da história do gato, que latiu em cachorrês para enganar o rato, mas não foi bem sucedido. Sua vítima, também bilingue, desconfiou do sotaque. Já em Itacoatiara, foi mais explícita a preocupação dos alunos da Escola Maria Ivone de Araújo Leite com a preservação do meio ambiente. Meninas e meninos conversaram sobre a versão do curupira, o dono da mata, contada pelos Ticuna do Alto Solimões, e se interessaram pela história recolhida por Couto de Magalhães, em 1875, em nheengatu, na qual um caçador mata uma veada recém parida e quando vai arrastá-la para sua aldeia, viu que era o cadáver de sua própria mãe, num processo de transformação realizado por Anhangá para castigá-lo.

– O caçador matou o animal que dava leite e aí matou também seus filhos que ainda mamavam e matou sua própria mãe – disse Nicolas Prestes, 11 anos. Vitória Lima, da mesma idade, concordou, argumentando que a morte de um animal que amamenta significa várias mortes. Ambos perceberam que a história funciona como um código florestal, numa época em que não existia IBAMA para punir os predadores e que Anhangá protegia a floresta.

Despertou também o interesse dos alunos de Itacoatiara e de Nova Olinda, mas nem tanto de Manaus, as narrativas míticas de criação do mundo. Ouviram a versão dos índios Tukano do rio Negro, para quem a criadora de gente é a Yé´Pá, a avó do mundo, porque ao contrário da entidade masculina, ela tem útero para gerar os filhos, o que fez depois de ser fecundada pela música. Todos nós somos filhos da música. Gostaram muito da versão dos índios Sacaca – “No princípio eram as águas” – narrada pela pajé Zeneida Lima, do Marajó, assim como da narrativa dos guarani registrada por Leon Cadogan.

As histórias contadas na oficina têm duas fontes: aquelas que me foram contadas oralmente pelos índios nos cursos de formação de professores indígenas e as que foram publicadas nos livros escritas por autores indígenas ou por tupinólogos da segunda metade do século XIX: Couto de Magalhães e Barbosa Rodrigues, que são brasileiros, o canadense Charles Frederik Hartt e o italiano ErmanoStradelli. Eles recolheram essas narrativas em nheengatu, traduziram ao português e publicaram muitas delas.

O livro funciona aqui como um hospital da palavra. A narrativa oral é escrita quando está em perigo de morrer. Mas da mesma forma que o doente sai do hospital ao ficar curado, essas narrativas devem sair do livro e circular oralmente, como nas oficinas da “Amazônia em palavras”.

Varre vento – Aprendi a amar a natureza. Derrubei muita árvore, e de castigo a natureza levou minha perna – diz Fernando Sabino, que teve a perna esquerda decepada por um tronco de árvore, em 1993, quando desmatava a floresta no Paraná da Eva para criar pastagem para boi. Ele aprendeu a pilotar aos 13 anos, navegando no barco “Conceição V” de propriedade de seu pai, que transportava material de construção para o exército.

Nascido em Varre-Vento, município de Itacoatiara, há 64 anos, o nosso Fernando Sabino enfrentou um calvário depois do acidente. No Hospital Universitário Getúlio Vargas, comeu a mandioca que o diabo ralou. Lá, cada semana, os médicos retiravam o curativo e cortavam mais um pedaço que estava gangrenado. Ficou entre a vida e a morte. Foi aí que seus parentes levaram para o hospital banha de boto rosa, gordura de cobra sucuriju e mel de abelha, garrafada ingerida diariamente escondido dos médicos. Segundo ele, foi isso que o curou. Dois anos depois, os amigos fizeram rifa, quermesse, e conseguiram levantar uma grana para ele viajar a Indianópolis, nos Estados Unidos, onde seu ex-patrão na empresa Amazon Night Safari ajudou a comprar uma prótese, que custou 16 mil dólares. Hospedado na casa de um professor americano, que fez turismo na Amazônia, foi convidado a dar aulas a crianças gringas sobre navegação, usando maquetes, com direito a tradutor ao inglês, “porque a única coisa que falo é tankiu”.

Fernando Sabino, já com a prótese, voltou a pegar o leme. Conheceu muitas comunidades indígenas viajando pelo SIVAM, percorreu mais de 30 aldeias dos Sateré-Mawé com missionários da Igreja Evangélica, comandou barco-recreio de Manaus a Nhamundá, varou rios, paranás e igarapés conduzindo turistas para pesca de tucunaré no rio Uatumã, transportou peões da Andrade Gutierrez, levou garimpeiros para área de mineração, carregou material de construção de Manaus a Tabatinga para o Comando Militar da Amazônia e garrafas de coca-cola para Porto Velho.

Fernando Sabino é um personagem real que, como seu homônimo cronista, sabe contar histórias. Suas narrativas já fazem parte da Amazônia das Palavras, não fazem não?

P.S. Vale registrar aqui, pela sua participação, alguns alunos de Itacoatiara, todos na faixa de 10 a 12 anos: Nicolas Prestes, Vitória Lima, Igor da Cruz, Luanny Macedo, Átila Melo, Riquelme da Silva e Ernanda Perdigão. Em Nova Olinda: Estefany Mendes, Marcos Correa, Cleiton Rodrigues, Nikson Amsterdam e Pericksy Souza. Estiveram presentes ainda alguns alunos do Núcleo da Universidade do Estado do Amazonas em Nova Olinda do Norte.

 

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