Do caso da fazenda Vale do Rio Cristalino, no Sul do Pará, que pertencia à Volkswagen, durante a ditadura militar, até os das grandes marcas de vestuário e da construção civil, respeitáveis corporações já foram envolvidas em denúncias relacionadas ao trabalho análogo ao de escravo. Mais de 53 mil pessoas foram libertadas, desde 1995, em operações de fiscalização do governo federal e um número maior do que isso permaneceu nessas condições porque não conseguiu denunciar a situação.
Alguns dos que agora erguem a voz contra a ”escravidão” de médicos cubanos nunca abriram a boca para dar um pio sequer de solidariedade nesses casos supracitados. E sabe por quê? Por que não dão e nunca deram a mínima se um trabalhador escravizado vive ou morre, nos campos ou nas cidades. Querem apenas ganhar sua guerra ideológica e política particular usando as ferramentas que têm em mãos, dobrando as definições legais sobre esse crime se necessário.
Uma investigação conduzida pela Procuradoria Regional do Trabalho da 10a Região considerou que o modelo de remuneração do acordo entre Brasil e Cuba para o Mais Médicos representa discriminação de trabalhadores cubanos, pois nossa lei garante isonomia salarial, como defendo desde 2013. Contudo, a mesma investigação do Ministério Público do Trabalho afirmou também que, nem de longe, a situação assemelha-se a trabalho escravo.
Ou seja, se for para atacar Cuba e, com isso, constranger o programa Mais Médicos vale a pena batizar qualquer coisa de trabalho escravo, esgarçando seu conceito legal. Criam-se os maiores malabarismos a fim de explicar que aquilo pode se enquadrar nessa forma de exploração. De acordo com o artigo 149 do Código Penal, trabalho forçado, servidão por dívida, condições de degradantes de trabalho e jornada exaustiva configuram o crime.
Façamos um combinado: vamos ampliar o conceito e considerar esse médicos como escravos. Mas quero um compromisso de que assim que o último cubano for ”libertado”, passaremos a resgatar pelo menos uns 17 milhões de trabalhadores brasileiros em fazendas, indústrias, comércio, serviços, que estariam no escopo do alargamento do conceito do que é escravidão contemporânea para alcançar os ”escravos cubanos”. Ou seja, se fossemos por esse devaneio, o problema sairia da casa de dezenas de milhares para 8% do país – em estimativas conservadores de juízes e procuradores ouvidos por este blog.
Também quero o compromisso do presidente eleito a fim de garantir que a área de fiscalização do trabalho seja protegida de influência política e econômica, de preferência em um Ministério do Trabalho que não seja rebaixado, desmembrado ou enfraquecido, e com recursos para que possa verificar toda e qualquer denúncia de escravidão contemporânea que chegue até ele.
E que políticos parem de receber doações eleitorais de pessoas físicas que se beneficiaram desse tipo de crime. Quando defendi meu doutorado sobre trabalho escravo contemporâneo, em 2007, o levantamento que fiz já mostrava uma esbórnia.
Uma luta tem sido travada junto aos Três Poderes, nos últimos anos, envolvendo políticos, organizações sociais, juízes, procuradores, defensores públicos, empresários, servidores públicos, entre outros, para evitar que a definição legal de trabalho escravo seja desidratada. Em outubro do ano passado, por exemplo, o governo Michel Temer publicou uma portaria do Ministério do Trabalho mudando as regras da fiscalização e tornando irrelevantes as condições em que os trabalhadores se encontram para caracterização de escravidão. A partir dela, escravo seria apenas quem estivesse preso sob vigilância armada. Após intensa pressão da sociedade e da imprensa, as mudanças foram suspensas pelo Supremo Tribunal Federal. Com isso, o governo voltou atrás.
Mas o oposto também tem sido feito: há uma luta para evitar que tudo seja chamado de trabalho escravo. Porque se tudo é escravo, nada é de fato.
Durante a campanha, Jair Bolsonaro criticou o enfrentamento à escravidão contemporânea, citando dados equivocados sobre a fiscalização. Citou o caso de uma mulher grávida que, exposta à aplicação de agrotóxico, teria sido considerada como submetida à escravidão. O que não procede. De acordo com a área de fiscalização do Ministério do Trabalho, uma irregularidade trabalhista como essa não configura o crime. Esse tipo de declaração do presidente eleito, ao tentar ampliar o escopo do que é trabalho escravo, é um desserviço ao setor empresarial brasileiro por levar à insegurança jurídica.
Quando o Mais Médicos foi anunciado há cinco anos, afirmei que uma coisa é a política pública em si, de levar médicos estrangeiros ao interior do Brasil em áreas carentes, que – a meu ver – está correta. Outra, muito ruim, foi a ideia equivocada de não pagar a totalidade do salário diretamente ao trabalhador.
O acordo com a instituição cubana responsável pelos profissionais, firmado via Organização Panamericana de Saúde (Opas), prevê que um ”imposto” seja cobrado dos médicos que estiverem em missão no Brasil. O valor líquido repassado é de R$ 3 mil, enquanto o governo cubano fica com R$ 8,8 mil, pagos mensalmente – menos uma taxa operacional que fica com a Opas. Além desse valor, os médicos também recebem auxílio-moradia e auxílio-alimentação das prefeituras.
De um lado, defensores desse modelo apontam que ele é correto por ser o pagamento por uma missão médica contratada de outro país e que o valor da dedução não é tão maior que os impostos sobre renda cobrados em alguns países. De outro, críticos afirmam que o ideal seria que os médicos recebessem o mesmo que profissionais de outras nacionalidades e, caso necessário, o Brasil pagaria, à parte, pelo serviço da empresa cubana de saúde.
Como já dito acima, a Procuradoria Regional do Trabalho da 10a Região considerou que há discriminação de trabalhadores cubanos, pois nossa lei garante isonomia salarial. Mas que isso, nem de longe, assemelha-se a trabalho escravo.
Alguém duvida que, quando todo esse furdúnculo desaparecer, se auditores fiscais passarem a libertar trabalhadores considerando como escravidão toda e qualquer irregularidade trabalhista do nível da verificada pelo MPT junto aos médicos cubanos, iremos ouvir reclamações daqueles que chamarão os auditores fiscais de ”comunistas”?
Em tempo: há quem fale da importância da defesa da democracia ao reclamar do relacionamento com o autoritarismo cubano, mas não se importa nem um pouco com isso ao fazer um bom negócio com o autoritarismo chinês.
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Foto: Sérgio Carvalho /MTE