37 anos depois, a beleza do brado contra o racismo da Missa dos Quilombos é taxada de “blasfêmia comunista”

“Claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão, que é comunismo. É Evangelho de Cristo, Mariama!”

Tania Pacheco

Há 37 anos, oito mil pessoas se reuniam na Praça do Carmo, Recife, para ver uma celebração emocionante, da qual participavam alguns dos mais altos representantes da Igreja Católica de então: Dom José Maria Pires, Dom Hélder Câmara, Dom Manuel Pereira, Dom Pedro Casaldáliga, Dom Marcelo Carvalheira. Era a Missa dos Quilombos, com música de Milton Nascimento e texto de dois Pedros: Casaldáliga e Pedro Tierra. No ano seguinte, a Missa foi repetida no Convento do Caraça, em Minas Gerais, agora para ser gravada e lançada em disco, no qual foi mantida a Invocação a Mariama, de Dom Hélder Câmara. 

Desde então, sua beleza foi celebrada e documentada de diferentes formas. A TV Senado fez um documentário a respeito, em 2006; Luiz Fernando Lobo dirigiu um espetáculo sobre ela para a companhia Ensaio Aberto, que se apresentou no Brasil e em Portugal. A missa, em si, continuou a ser celebrada ocasionalmente, como em Diamantina, Minas, registrada na foto que abre esta matéria. Em São Luís do Maranhão, tornou-se parte das tradições do mês de novembro e já há oito anos se repete anualmente em diferentes igrejas.

Este ano, entretanto, a Missa dos Quilombos está servindo para desnudar acima de tudo o nível de loucura que estamos vivendo. Celebrada pelo Padre Ribamar Nascimento no dia 15 de novembro, ela deu origem a uma avalanche de ódio numa rede social que não respeita sequer as tentativas de apaziguamento feitas por pelo menos um Diácono da Catedral Metropolitana de São Luís do Maranhão.

Além de ameaças ao Padre (um resumo aqui), se alguns se limitam a acusações de blasfêmia e sacrilégios, boa parte confunde a denúncia do racismo com o ‘comunismo’ que agora virou moda para quem sequer sabe o que é isso. Se algumas pessoas tentam explicar a importância da Missa, num estado, como é dito, em que “75% dos habitantes são negros”, para outros o passo seguinte acaba descambando para acusações de ‘petismo’, antes de chegar ao nível de palavrões que – provenientes  de pretensos defensores da sacralidade da missa – com certeza não deveriam estar presentes no site oficial da Catedral!

Quem estiver disposto a analisar cientificamente o nível de doença que a sociedade brasileira atingiu tem com certeza alguns dados relevantes nos debates presentes nas três ‘conversas’, abertas nos dias 15 (aqui), 16 (aqui) e 22 (aqui). Confesso que não consegui chegar ao fim de todos.

Prefiro deixar aqui registradas três outras coisas: a Apresentação que Dom Pedro Casaldáliga escreveu para a Missa e os links para a homilia de Dom Hélder e para o espetáculo de Luiz Fernando Lobo.

“Claro que dirão, Mariama, que é política, que é subversão, que é comunismo. É Evangelho de Cristo, Mariama!”, anuncia Dom Hélder na sua Invocação a Mariama. Só não tinha como adivinhar (e quem teria?) que 37 anos mais tarde isso seria dito com tanto ódio, com tanta ignorância e por tanta gente!

***

Apresentação, por Pedro Casaldáliga

Em nome de um deus supostamente branco e colonizador, que nações cristãs têm adorado como se fosse o Deus e Pai de Nosso Senhor Jesus Cristo, milhões de Negros vêm sendo submetidos, durante séculos, à escravidão, ao desespero e à morte. No Brasil, na América, na Africa mãe, no Mundo.

Deportados, como “peças”, da ancestral Aruanda, encheram de mão de obra barata os canaviais e as minas e encheram as senzalas de indivíduos desaculturados, clandestinos, inviáveis. (Enchem ainda de sub-gente -para os brancos senhores e as brancas madames e a lei dos brancos- as cozinhas, os cais, os bordéis, as favelas, as baixadas, os xadrezes).

Mas um dia, uma noite, surgiram os Quilombos, e entre todos eles, o Sinaí Negro de Palmares, e nasceu, de Palmares, o Moisés Negro, Zumbi. E a liberdade impossível e a identidade proibida floresceram, “em nome do Deus de todos os nomes”, “que fez toda carne, a preta e a branca, vermelhas no sangue”.

Vindos “do fundo da terra”, “da carne do açoite”, “do exílio da vida”, os Negros resolveram forçar “os novos Albores” e reconquistar Palmares e voltar a Aruanda.

E estão aí, de pé, quebrando muitos grilhões -em casa, na rua, no trabalho, na igreja, fulgurantemente negros ao sol da Luta e da Esperança.

Para escândalo de muitos fariseus e para alivio de muitos arrependidos, a Missa dos Quilombos confessa, diante de Deus e da História, esta máxima culpa cristã.

Na música do negro mineiro Milton e de seus cantores e tocadores, oferece ao único Senhor “o trabalho, as lutas, o martírio do Povo Negro de todos os tempos e de todos os lugares”.

E garante ao Povo Negro a Paz conquistada da Libertação. Pelos rios de sangue negro, derramado no mundo. Pelo sangue do Homem “sem figura humana”, sacrificado pelos poderes do Império e do Templo, mas ressuscitado da Ignomínia e da Morte pelo Espírito de Deus, seu Pai.

Como toda verdadeira Missa, a Missa dos Quilombos é pascal: celebra a Morte e a Ressurreição do Povo Negro, na Morte e Ressurreição do Cristo.

Pedro Tierra e eu, já emprestamos nossa palavra, iradamente fraterna, à Causa dos Povos Indígenas, com a “Missa da Terra sem males”, emprestamos agora a mesma palavra à Causa do Povo Negro, com esta Missa dos Quilombos.

Está na hora de cantar o Quilombo que vem vindo: está na hora de celebrar a Missa dos Quilombos, em rebelde esperança, com todos “os Negros da Africa, os Afros da América, os Negros do Mundo, na Aliança com todos os Pobres da Terra”.

***

***

Internauta faz ameaças violentas durante divulgação da missa dos quilombos em São Luís — Foto: Reprodução TV Mirante

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

19 − nove =