As forças democráticas precisam se organizar, avalia o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos
Por Radio France Internationale – RFI / Carta Maior
A uma semana da Cúpula de Líderes do G20 em Buenos Aires, evento no qual Estados Unidos e China trarão sua guerra comercial, o sociólogo português Boaventura de Sousa Santos, em entrevista à RFI Brasil, traçou o cenário de como essa disputa pode impactar na América do Sul a partir da posse do presidente eleito brasileiro Jair Bolsonaro em 1° de janeiro.
Para o diretor do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e estudioso dos movimentos políticos na América Latina, Bolsonaro, como aliado automático dos Estados Unidos, deve ser a peça fundamental de Donald Trump para conter o avanço da China na região. Santos participou em Buenos Aires do Foro do Pensamento Crítico, “a contra-cúpula do G20” que levou líderes progressistas a analisar o caso brasileiro.
O acadêmico, que mantém diálogo direto com líderes políticos e sociais na região, aponta a unidade da esquerda em Portugal como um modelo. Ele também exprime o seu principal temor hoje com o Brasil, país que classifica como uma “zona de sacrifício” dentro da estratégia geopolítica dos Estados Unidos.
RFI: A unidade da esquerda em Portugal pode ser um exemplo para a esquerda fragmentada na América do Sul que desde 2015 perde todas as eleições?
Boaventura de Sousa Santos: Penso que temos em Portugal uma inovação política de primeira qualidade, sobretudo porque supera divergências históricas de uma maneira muito inteligente. É uma articulação e uma unidade pragmática que não visa superar de maneira nenhuma as divergências que há entre socialistas e comunistas.
Foi fundamentalmente um acordo para pôr termo à austeridade produzida pelo neoliberalismo, às privatizações, aos cortes dos salários, aos congelamentos das carreiras dos funcionários públicos. Isso realmente contribuiu de maneira extraordinária para fazer uma prova única e muito importante tanto para a Europa quanto para a América Latina. Hoje, por todo o mundo que vou, me perguntam sobre essa inovação política. Como foi possível a união entre socialistas e comunistas, antes inimigos? Foi o neoliberalismo.
RFI: De que maneira essa unidade pode ser replicada?
BSS: Portugal teve uma inovação que foi mostrar que o neoliberalismo é uma mentira. É fundamentalmente um processo político para enriquecer mais os credores dos nossas nações endividadas e, obviamente, empobrecer o país. Portanto, nesse sentido, a lição de Portugal é também útil para o continente latino-americano uma vez que eu vejo que as receitas aplicadas aqui, na Argentina ou no Brasil, são as mesmas que nós sofremos em Portugal entre 2011 e 2015.
RFI : O senhor vê algum risco da volta dos militares ao poder, não porque os militares queiram fazer política, mas porque a população, ao ver que a intervenção militar na segurança pública teve resultados positivos, pede a volta dos militares à política?
BSS: O Brasil é um caso especial. Não vejo esse perigo na Argentina, mas vejo esse perigo no Brasil porque, ao contrário da Argentina, a transição democrática no Brasil foi feita através de um pacto com os militares que impuseram uma série de artigos na própria Constituição para que não houvesse nunca um julgamento do terrorismo de estado durante a ditadura. Portanto, os brasileiros nunca puderam criar uma memória dos crimes da ditadura. Isso foi proibido pelo modo em que se fez a transição democrática.
É por isso que os militares hoje aparecem com superioridade moral, dizendo que são menos corruptos do que os civis, que são melhores para administrar o país. Os brasileiros não fizeram essa cura anti-ditatorial que deveriam ter feito. O resultado é uma transição pactada pelas elites no Brasil. Portanto, esse perigo existe, mas não penso que hoje os militares queiram regressar ao poder de forma ditatorial. Eles podem querer regressar de uma maneira democrática, isto é, militarizarem o governo civil.
RFI: Mas isso não pode ser até mais perigoso?
BSS: Pode ser mais perigoso porque pode ser mais autoritário e porque pode ser uma repressão imposta pela via democrática. Os militares não sabem o que são políticas sociais. Os militares sabem reprimir, punir e atuar com as forças de segurança contra qualquer distúrbio social, contra qualquer protesto social.
Portanto, é a criminalização do protesto social que vai existir no Brasil. Aliás, estão anunciando. Não são os militares que anunciam, mas tem todo o apoio do poder militar. Alguns militares da reserva têm dito isso nas suas entrevistas. Falam de uma democracia no Brasil sem o PT e sem o PSOL. Ou seja: sem os vermelhos. Que democracia é essa? Se os partidos todos não tiverem liberdade, não estamos numa democracia. Estamos numa ditadura de tipo novo, uma ditadura disfarçada.
RFI: No Brasil, por outro lado, parte da esquerda já disse que quer fazer uma oposição a Bolsonaro, mas sem o PT. Isso vai de encontro ao que o senhor defende como exemplo português.
BSS: A esquerda brasileira ainda não digeriu a derrota e está cometendo muitos erros. Apresenta uma atitude hegemônica por parte do PT, que ao meu entender não tem realmente neste momento legitimidade para isso. Penso que a esquerda foi derrotada de uma maneira brutal. Nas redes sociais, houve muita manipulação. Também houve realmente uma apropriação do descontentamento popular por parte da extrema-direita e a esquerda não foi capaz de falar da insegurança das, da violência que existe no Brasil.
Portanto, a esquerda tem que se repensar. Eu creio que vai haver uma renovação na esquerda. Eventualmente, vai surgir mais um partido. O Brasil é um país com muitos movimentos sociais. É o país do Fórum Mundial Social. Um país que não tem um partido de movimento como, por exemplo, o Podemos na Espanha.
Portanto, é possível que o MST ou a Frente Povo Sem Medo pensem na criação de novas formações políticas e que sobretudo tentem unir o movimento democrático e, dentro desse movimento democrático, o movimento de esquerda. Eu penso que ainda é muito cedo e penso que as declarações que se fizeram recentemente não ajudaram para uma unidade.
RFI: Considera que o Brasil possa ser um exemplo negativo para a região, alastrando o componente militar aos vizinhos?
BSS: Pode. Pode, sim. Os Estados Unidos são uma variável muito importante nesta região e estão numa rivalidade sem qualquer limite com a China. Querem o alinhamento do continente com os Estados Unidos. Querem que a região deixe de ter relações comerciais e diplomáticas privilegiadas com a China.
O Brasil é um dos líderes dos BRICS que justamente estava criando uma alternativa (à hegemonia dos Estados Unidos). É uma rivalidade brutal e eu penso que, neste momento, esse alinhamento é muito importante para dois grandes países: Brasil e Colômbia. Já se fala de o Brasil e a Colômbia colaborarem numa intervenção na Venezuela. Estou muito preocupado com isso. Temo realmente que aconteça.
RFI: Qual é o seu maior temor sobre o que pode acontecer no Brasil?
BSS: Neste momento, é a criminalização do protesto e a prisão dos líderes sociais. Na Colômbia, estamos a assistir a uma morte de líderes sociais terrível e, neste momento, a lógica da violência contra líderes sociais e líderes políticos está instalada no discurso brasileiro.
RFI: É uma variante moderna da perseguição política dos anos 70? Há paralelismos?
BSS: Vejo fundamentalmente que agora, em vez de ser a guerra militar, é o que chamamos de lawfare. Isso, no Brasil, foi feito de uma maneira despudorada. O homem que fez a investigação criminal foi quem julgou o Lula sem provas. E agora é ministro da Justiça e vai ser, penso eu, em 2022, provavelmente, o grande candidato das direitas internacionais e norte-americanas a presidente da República.
Eu penso que este é o alinhamento que está em causa e o Brasil pode realmente ser esse exemplo. Eu acho que o Brasil vai ser uma zona de sacrifício e vai obrigar que as forças democráticas em geral e que as forças de esquerda em particular pensem muito bem qual vai ser a melhor estratégia para poder vencer.