“Você só dá aula?” Dilemas da docência em direito no Brasil

Justificando

Recentemente a Varkey Foundation, fundação estrangeira orientada para atuações no campo educacional, com o apoio da Universidade de Sussex e do Instituto Nacional de Pesquisa Econômica e Social do Reino Unido, divulgou o índice Global Status Teacher de 2018, apontando a percepção social em trinta e cinco países sobre a profissão do professor.

Esse índice leva em consideração desde o exame do prestígio da carreira de professor do ensino primário e secundário diante das demais profissionais até a relação com o alunado. Segundo o último relatório,o Brasil ocupa a última posição no ranking,[1] outra pincelada no quadro que retrata a desvalorização da docência e da pesquisa em nosso país – um fracasso imposto aos professores e às professoras devido a uma vasta lista de fatores.Não à toa o relatório aponta uma relação positiva evidente entre a valorização do professor e os bons resultados do PISA(avaliação internacional que mede o nível educacional de alunos por meio de provas de Leitura, Matemática e Ciências). Os países em que a posição social do docente é alta e relevante, como China, Taiwan e Cingapura, têm melhores resultados no PISA do que os países nos quais a posição social de professores e professoras é baixa, como é caso do Brasil.

Apesar de o índice se referir a uma avaliação dos ensinos primário e secundário, revelando questões sobre a péssima remuneração e as condições precárias de trabalho no mercado de professores no Brasil, é também interessante comparar e compreender como esses dados têm um parentesco muito próximo com a carreira do ensino universitário, em especial do direito.É oportuno notar que os cursos de graduação em direito, no Brasil,são os mais numerosos dentre aqueles pertencentes ao ensino superior. Mas a quantidade de cursos não implica em um cenário repleto de boas oportunidades de trabalho, dada a obscura proposta pedagógica de muitas instituições de ensino superior, o que nos leva a refletir sobre os dilemas da carreira docente na área do direito.

Neste ano, o Ministério da Educação autorizou, por meio da portaria n.º 329/18, a criação de mais trinta e quatro cursos de direito, aumentando ainda mais o número de vagas em um país que já conta com uma gigantesca oferta. Segundo o Censo da Educação Superior 2017, direito é o curso mais procurado do Brasil, concentrando 879.234 matrículas em 2017.[2] Com tantas faculdades – além dos novos cursos técnicos voltados a serviços jurídicos –, por qual motivo professores de direito continuam mal remunerados e pouco incentivados a produzir pesquisas? Afinal, a docência em direito também enfrenta problemas de valorização profissional? Estaríamos diante de um ensino jurídico orientado para outros propósitos que não os da formação e da produção científica?

Alguns dados nos permitem mapear a atual situação do docente em direito no país. Conforme dados publicados em 2013 pelo Observatório de Ensino do Direito da Fundação Getulio Vargas, o regime de trabalho de dedicação parcial à docência era recorrente ao tempo da publicação, sendo o regime de 34% de professoras e professores de direito, seguido pelo de horista de 32% (GHIRARDI et al., 2013, p. 79).Depreende-se que as instituições de ensino não possuem interesse em buscar professores e pesquisadores contratados pelo regime de trabalho integral e com dedicação exclusiva, o ideal para o planejamento de cursos e desenvolvimento de pesquisas comprometidas com métodos adequados para a obtenção de resultados consistentes.

Outros dados indicam a baixa remuneração de docentes de direito, feita a comparação com outras profissões jurídicas.[3]A situação piora se refletirmos sobre o(a) pesquisador(a), uma profissão que em alguns âmbitos jurídicos se tornou quase caricata, pois compreendida como a atividade de algumas pessoas que, em seus “períodos livres”, ocupam-se da pesquisa. Aliás, essas carreiras são cada vez mais escamoteadas por atos que reforçam o movimento de censura da liberdade de cátedra promovida por propostas de leis autoritárias e contrárias às garantias individuais.

É por isso que, com extrema facilidade, encontramos nas faculdades brasileiras advogados(as), juízes(as), promotores(as) e defensores(as)que combinam suas atividades com aquelas da carreira acadêmica. Com isso, é compreensível que alunas e alunos recebam pouco estímulo para prosseguirem exclusivamente em carreiras docentes ou dedicadas à pesquisa em direito, dada a falta de exemplos concretos nesse sentido – sobretudo fora das universidade públicas, que enfrentam processos de enxugamento. Aliado ao desestímulo está o fato apontado pelo relatório da Varkey Foundation: 88% dos brasileiros possuem uma péssima percepção da profissão de professor. Diante da falta de incentivos para querer prosseguir na carreira docente no Brasil, a dupla jornada mencionadas e torna não só justificável, mas, em muitos casos, necessária de um ponto de vista pragmático.

Outro empecilho à valorização da docência em direito é a reprodução dos vícios da prática forense em sala de aula. Sobre esse ponto, destaca-se a operação em escala industrial da “lógica do pareceres”, apresentada pelo filósofo Marcos Nobre (2004) no início da década passada, que reflete um modo de lecionar dominante nas faculdades de direito brasileiras, pautado em memorizações de textos legais, glosas de manuais de direito, espetáculos similares aos shows de stand-up, entre outros meios destinados quase exclusivamente aos concursos e exames que funcionam como portais de entrada para muitas carreiras jurídicas.

Embora a promessa de ingresso no mercado de trabalho possa parecer atraente, o risco existente na aplicação da “lógica dos pareceres” é a tomada das experiências práticas e rotineiras dos “operadores” do direito como parâmetros absolutos para o desenvolvimento do ensino e da pesquisa jurídica, alheiamente ao debate metodológico e científico referente ao direito.

Em outros países, por exemplo, essas experiências vinculadas às práticas são reservadas para clínicas ou atividades de estágios e não para a maioria das disciplinas abordadas nas salas de aula. Desse modo, quem estuda direito tem contato com o mundo forense sem prejuízo da abordagem do mundo acadêmico.

Interessante perceber também que essa lógica justifica o modelo da dupla jornada, pois o docente bem avaliado passa a ser também aquele operador jurídico de sucesso.Não raramente, considera-se uma boa aula a exposição e a repetição de casos de sucesso do escritório.Saliente-se que há raízes históricas que sustentam essa lógica de ensino, em especial o atraso e o isolamento das faculdades de direito em comparação com as demais faculdades da área de humanidades no Brasil[4]. Além, com base em outros estudos, tal lógica faz parte da confirmação de que o direito brasileiro é formado por meio de uma padronização do conhecimento pelo poder, não pela ciência.[5]

Um exemplo da “lógica dos pareceres” em sala de aula é o curso orientado pelos conteúdos cobrados em certos concursos públicos para ingresso em carreiras públicas – o mesmo pode ser dito sobre a orientação pautada no exame da OAB. O(a) professor(a) pensa as suas aulas e as suas avaliações tendo em vista a aprovação nas provas, o que torna o curso um protótipo de preparação para quem deseja prestar determinado concurso, tornando limitada a experiência pedagógica na faculdade de direito. Algumas das pessoas que estão lendo este texto talvez se lembrem, por exemplo, da vez em que tiveram de ser avaliadas em uma disciplina por meio de uma prova composta totalmente por questões de múltipla escolha retiradas da prova para ingresso de alguma carreira pública. A formação e o processo de conquista de autonomia são transformados em formas alienantes de uma indústria voltada à formação e aperfeiçoamento para determinadas carreiras jurídicas – e não para a formação docente e de pesquisa.

É por essas e outras que,recorrentemente, o(a) docente seja indagado(a) no final da aula pelo(a) aluno(a) com a questão: “Professora, você só dá aula?”, ou “Com o que você trabalha?”. Perguntas como essas,embora possam ser ingênuas, revelam um traço marcante das faculdades de direito e da situação do professor: o propósito de muitos cursos é alcançar fins mercadológicos[6], bons índices de aprovação nos concursos, distanciando-os da pesquisa em âmbito acadêmico e da carreira docente e,com isso, esvaziando de sentido a função social e formadora de um(a) professor(a) de direito.

Percebe-se, então, que muitas faculdades de direito são de fato indústrias do mercado financeiro, transformando alunos em formas altamente rentáveis de investimentos.O(a) professor(a) é a peça chave desse quebra-cabeça, já que é ele quem assegura a alta taxa de retorno do investimento ao propiciar ao diplomado o consumo de emprego ou o sucesso na aprovação. Considerando a desvalorização do mercado de professores e professoras, certamente não está na ordem do dia da maioria dos cursos de direito a preocupação com a formação docente e acadêmica.Considerando a atual desvalorização da carreira acadêmica, dar especial atenção à pesquisa e ao ensino de direito passou a ser um investimento de altíssimo risco, sendo prudente prosseguir nas aplicações em renda fixa do alunado.

Podemos, neste ponto do texto, estabelecer uma comparação com a perspectiva do sociólogo Colin Crouchda ideia de gigeconomy. Segundo Crouch, indústrias flexibilizam as relações de trabalho para remunerar profissionais tão somente quando eles realizarem tarefas específicas num modelo de “falso” trabalho autônomo. Evita-se o despendimento de encargos como seguro social e salário mínimo em prol de certa liberdade “empreendedora” vendida pelo mercado como gig, tal como uma trupe de artistas que são remunerados por suas performances semanais.

Subjacente à fórmula “trabalhe quando quiser e para quem gostar” prevalece a desvalorização e precarização de profissões de atividade-meio, como é o caso dos docentes, pois, afinal, cada vez mais são temporários, sofrem com reduções de jornadas de trabalho ou com os vínculos intermitentes e possuem uma série de direitos trabalhistas negados. Sobre esse modelo negocial, Crouch afirma que “a descrição de tal trabalho como gig parece mais uma tentativa cínica de associar uma forma de trabalho desagradável ao romance do negócio de entretenimento do que uma tentativa genuína de definir uma nova forma de relação de trabalho” (tradução nossa, 2018, p. 2).

Desse modo, professores(as) em direito têm pouca escolha:prosseguir no modelo da dupla-jornada, combinando sala de aula com gabinete ou escritório; ou subordinar-se à economia gig, em que os trabalhadores nominalmente autônomos são, na prática, subordinados a uma ou duas empresas das quais derivam todos os seus rendimentos. Ora, esta última opção é o exemplo da realidade de muitos docentes que decidem prosseguir unicamente o caminho da docência em direito no país, em jornadas parciais, temporárias ou horistas e também desvela a realidade do poder financeiro das grandes empresas que se esconde por trás da aparência das faculdades de direito.

Ironicamente, essa abordagem compromete a formação de profissionais que, amanhã, serão defensoras, advogadas, delegadas, promotoras e juízas. Isso porque o apreço à dimensão acadêmica do direito gera possibilidades de aprofundamento em importantes questões que surgem no dia-a-dia do âmbito jurídico, em especial ao contribuir para a construção de soluções jurídicas para casos difíceis. Vale dizer, a dogmática jurídica pode ser enriquecida pela pesquisa em direito. A amputação de tal dimensão, por outro lado, acarreta a cristalização de um pensamento engessado, incapaz de resolver com excelência os complexos problemas que a vida profissional impõe ao jurista.

O futuro é sombrio para docentes em direito, pois, diante da ausência da promoção da pesquisa em direito e da predominância da “lógica dos pareceres” no ensino jurídico, as oportunidades de crescimento nessa profissão se tornam diminutas.De um lado, lecionar é, em muitos casos, um gig, o que reforça a necessidade de parecer e ser um professor estrelado. De outro, são poucas as faculdades brasileiras que possuem um plano pedagógico transparente e, ainda, são ínfimas aquelas que se preocupam com a implementação de programas de graduação e pós-graduação com exigência de dedicação exclusiva do aluno, dos professores e com um forte incentivo na formação de núcleos de pesquisa e nas formas de ensino participativo. Há exemplos nesse sentido que merecem aplausos, mas são raros e isolados.

De duas uma: confirmar a fuga de cérebros, inclusive para outras faculdades-irmãs das ciências humanas (sociologia, antropologia, economia, ciência política e relações internacionais), ou seguir na defesa pela valorização da docência e pesquisa em direito diante dos obstáculos mencionados. As cartas estão na mesa!

 Marco Antonio Loschiavo Leme de Barros é doutor em Direito pela USP, com apoio da FAPESP.

Matheus de Barros é mestrando em Direito pela USP e pesquisador do Núcleo de Estudos sobre o Crime e a Pena.

Referencias bibliográficas:

BARROS, Marco AntonioLoschiavo Leme de; BARROS, Matheus. Os desafios e os novos caminhos da pesquisa em direito no Brasil. Revista de estudos empíricos em direito, v. 5, p. 25-48, 2018.
CROUCH, Colin. “A long-term perspective on the gig economy”. In: American Affairs, vol. II, n.2, 2018, p.1-11.
GHIRARDI, José Garcez et alRelatório do Observatório do Ensino do Direito: volume 2, número 1. Núcleo de Metodologia de Ensino da FGV Direito SP, 2014.
GHIRARDI, José Garcez et alRelatório do Observatório do Ensino do Direito: volume 1, número 1. Núcleo de Metodologia de Ensino da FGV Direito SP, 2013.
KANT DE LIMA, Roberto; BAPTISTA, Barbara Gomes Lupetti. Como a Antropologia pode contribuir para a pesquisa jurídica? Um desafio metodológico. Anuário Antropológico, v. 39, p. 9-37, 2014.
MUSSE, Luciana Barbosa; FREITAS FILHO, Roberto. Docência em Direito no Brasil: uma carreira profissional?. Revista Jurídica da Presidência, v. 17, n. 111, p. 173-203, 2015.
NOBRE, Marcos. Apontamentos sobre a pesquisa em direito no Brasil. Cadernos Direito GV, no. 1, São Paulo: Publicações EDESP/FGV, 2004.
[1] Para o inteiro teor do relatório: https://www.varkeyfoundation.org/media/4867/gts-index-13-11-2018.pdf
[2] A informação pode ser conferida no relatório elaborado pelo Ministério da Educação: Disponível em:<http://download.inep.gov.br/educacao_superior/censo_superior/documentos/2018/apresentacao_censo_superior2017F.pdf>. Acesso em 22/11/2018.
[4]Para um debate nesse sentido, veja BARROS; BARROS, 2018.
[5]Para um debate nesse sentido, veja KANT DE LIMA; BAPTISTA, 2014.
[6] Observe-se que segundo um relatório produzido e publicado em 2014 pelo Observatório de Ensino do Direito da FGV Direito SP, 38,98% dos cursos jurídicos eram oferecidos por instituições de ensino superior com fins lucrativos(GHIRARDI et al., 2014, p. 8 e 14). Não sugerimos que todas as instituições enquadradas nessa categoria são descomprometidas com um ensino que preze pela formação de profissionais aptos a atuar em carreiras acadêmicas, mas a relevância desse número parece se coadunar com a breve análise contida neste texto.

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