A arte, o olhar e a cidade

Em Belo Horizonte um projeto gestado por três mulheres resgata a provocadora pintura de rua da virada do século e convida a enxergar a chance de outra vida urbana

Por Roberto Andrés*, em Outras Palavras

Quem viveu Belo Horizonte nas décadas de 1990 e 2000 talvez se lembre das pinturas curiosas que surgiram em edifícios no centro da cidade: um zíper que se abria e descortinava, por trás da paisagem cinza, uma natureza exuberante; uma torneira jorrando água em que um homem surfava; golfinhos voadores sobre uma cidade fabril.

Estas pinturas, feitas por um francês e um brasileiro com poucos recursos, em cadeirinhas penduradas em cordas a dezenas de metros de altura, marcaram uma geração. E mudaram a paisagem do centro da cidade, criando novas referências: aquele prédio com a pintura de Tiradentes, a esquina da cachoeira, etc.

Essas pinturas já desapareceram, mas tiveram seu papel no impulsionamento de uma nova cena de arte pública na cidade, que surgiu com o Cura – Circuito Urbano de Arte. O Cura é um festival criado por três mulheres que chegou a sua terceira edição e já cobriu com tintas quase 10.000 metros quadrados em dez empenas cegas do centro de BH.

Empena cega é aquela parte do prédio que não tem janelas, onde os “olhos da rua” (termo usado pela jornalista Jane Jacobs para a relação estabelecida entre edifícios e espaço público) deixam de existir.

O centro da cidade tem dezenas dessas empenas, e certo dia as organizadoras do Cura perceberam que era possível ver muitas delas a partir da rua Sapucaí – uma rua histórica de onde se tem uma visão privilegiada do centro, graças à topografia acidentada e à distância das construções altas promovida pelas linhas do trem e do metrô, praça da Estação e arredores. Ali há um Belo Horizonte.

A ideia do Cura é simples e genial: a cada edição do Festival, alguns artistas são convidados para pintarem uma empena. Durante o período da pintura, instala-se na rua Sapucaí um mirante, onde as pessoas podem ir assistir às pinturas, participar de oficinas, debates ou simplesmente passear.

A pintura de uma empena de dezenas de metros não é algo simples. Você precisa instalar andaimes no alto do prédio e um forro sobre o telhado, para estruturar os balancinhos que descerão pela fachada. Artistas e seus assistentes passam dias pendurados nesses balancinhos. No Cura, quem leva binóculos para a rua Sapucaí pode assistir a esse processo em detalhes.

Quando Alberto da Veiga Guignard era professor de artes em Belo Horizonte, na década de 1940, levava os alunos para assistirem Cândido Portinari pintar os murais da igreja da Pampulha. Minha avó, Maria Helena Andrés, era uma dessas alunas e lembra o quanto essas expedições foram importantes na sua formação como artista. Hoje, observar a atuação ao vivo dos artistas que interferem na cidade é uma possibilidade aberta.

Há quem se preocupe com a possibilidade de projetos como o Cura gerarem aquilo que se chama “gentrificação”: com o embelezamento da região, provocar uma onda de aumento de aluguéis e elitização do espaço. Processos assim ocorrem em cidades como Berlim, Paris, Nova Iorque e Barcelona.

Tenho dois comentários sobre isso. O primeiro é que não temos, na periferia da periferia do capitalismo, condições sócio-econômicas semelhantes, como classes médias crescentes e interesse turístico. O segundo é que, mesmo nos lugares em que a gentrificação de fato ocorre, o debate tem sido cada vez mais sobre como evitar os impactos – e não sobre deixar de fazer melhorias urbanas.

As cidades não são somente lugares da função e do trabalho. Elas possuem sentido simbólico e de congregação. As melhores cidades têm espaços públicos de referência, locais do encontro e do lazer: desde as praças da matriz nas cidades do interior até a Avenida Paulista aberta nos finais de semana.

Em Belo Horizonte, a rua Sapucaí apresenta esse potencial, de ser o lugar em que famílias vão com crianças durante o dia, casais passeiam no final de tarde, a cultura ferve à noite. Lugar de ver e ser visto, de estar em comunidade.

O Cura potencializa essa vocação e nos faz imaginar aquela rua destinada aos pedestres, com calçadas largas, árvores, bancos, bares e restaurantes que atendam a diversas classes econômicas. Gente que caminha e gente que para, observando a galeria a céu aberto de dia e de noite. Os olhos da rua em pleno funcionamento, ainda que seja de binóculo.

*Editor da revista Piseagrama.

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