O racismo da medicina no Brasil

A medicina brasileira tem um passado racista; erradica-lo ainda é um desafio imenso

Na Carta Capital

Eugenia era uma teoria muito na moda na virada do século 19 para o 20, que defendia a não miscigenação de raças, como solução para fortalece-las. Sua popularidade seguiu intensa até meados do século passado, quando os horrores praticados pelo nazismo e a descoberta do DNA – mostrando que o código genético de indivíduos não é determinado pela cor da pele – a levou ao ostracismo. 
Antes disso, no entanto, ela era tão respeitada que ajudou a forjar a forma como a medicina brasileira foi estruturada. Pior: muitos de seus cacoetes racistas perduram até hoje. São comuns os casos de denúncias de preconceito racial envolvendo médicos. E essas ideias, lamentavelmente, costumam receber os futuros médicos logo que entram nas faculdades: são frequentes os episódios de trotes racistas em alunos recém ingressos nas instituições.

“A saúde foi a porta de entrada das teorias eugenistas no Brasil e se o racismo brasileiro tem uma certa forma, quem deu essa configuração foi o campo da saúde”, afirma a pesquisadora Mônica Gonçalves, autora da tese de mestrado “Raça e saúde: concepções, antíteses e antinomia na atenção básica” sobre os impactos do preconceito no atendimento médico.

Tais teorias chegaram no Brasil em 1914, de acordo com a historiadora Lilia Schwarcz, e foram estudadas e aprimoradas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Por ali passaram Renato Kehl – posteriormente nomeado o pai da eugenia no Brasil – e o famoso Doutor Arnaldo (que virou nome de uma importante avenida em São Paulo), fundador da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e membro da sociedade eugenista do estado.

O apoio dado por Doutor Arnaldo a teoria é simbólico e ilustra as raízes da ciência médica do país. Mônica Gonçalves, mestre em psicologia, conversou com CartaCapital sobre os impactos que o racismo e a desigualdade social têm na medicina no Brasil até hoje e afirma que não é possível “descolar a medicina do lugar histórico que ela ocupa”

CartaCapital: O que mais te marcou no resultado da pesquisa?

Mônica Gonçalves: Que as pessoas ainda entendem a raça como uma coisa biológica. Todo mundo acredita nisso. As pessoas acreditam também que a raça influencia na medida em que pessoas negras e brancas vivem em condições sociais diferentes. Ao mesmo tempo elas não deixam de acreditar que a raça é algo inerente e eu, sendo preta, tenho uma artéria diferente dos brancos. E outra coisa que chama a atenção é que não há, na formação (médica), algo que permita que eles pensem a raça, embora isso impacte na prática. E como não tem como fugir da raça, eles utilizam o senso comum.

CC: E por que você acha que o racismo persiste?

MG: A nossa sociedade é estruturada pelo racismo. O profissional da saúde é só um nessa cadeia. Ele pode operar pela cadeia ou não, e de modo geral eles operam. Além disso tem um tanto de desconhecimento também. E tem gente que é racista mesmo e pronto.

CC: E como você enxerga o racismo na saúde?

MG: É uma posição muito antitética. O racismo não tem a ver com maldade, com ser bom ou ruim. Tem pessoas que são boas e ao mesmo tempo operam uma máquina que discrimina.

CC: O você acha que vai acontecer com a saúde no governo Bolsonaro?

MG: Eu não tenho nem palavras. É uma tragédia anunciada. A distância entre a população preta e a população branca vai aumentar ainda mais e nós vamos voltar a morrer de coisas que a gente não morria mais.

CC: Mas você acha que o Sistema Básico de Saúde estava avançando nos últimos anos?

MG: Não. O grande avanço do SUS foi ter sido criado. Temos que fazer a defesa do SUS, mas não pode ser acrítica. Nós tivemos avanços, como a política de saúde mental, o tratamento de HIV, Aids e hepatite, por exemplo. Mas são políticas que não funcionam sem investimento e o financiamento do SUS não aumentou. O foco é na atenção hospitalar, que é muito lucrativa porque tem muito equipamento. Na atenção básica você precisa de gente, conhecimento e de transformação social.

CC: E você acha que os profissionais brasileiros estão preparados para praticar uma medicina que precisa mais de gente do que de equipamentos?

MG: Os médicos brasileiros definitivamente não estão preparados. E o Mais Médicos só foi pensado por causa disso. E eles não só não estão preparados do ponto de vista da formação acadêmica, mas também da formação simbólica. A medicina ainda é uma profissão de elite e essas pessoas têm um projeto de vida, elas não fazem medicina como um projeto de estado. Elas fazem porque elas querem ganhar dinheiro, status ou querem pertencer a um grupo. Não que elas não queiram ajudar as pessoas, mas não sem abrir mão desse precedente.

CC: E qual é o papel das cotas na mudança do perfil do médico brasileiro?

MG: É muito importante. Eu acredito muito nas cotas. Tem quem critique dizendo que as pessoas só são jogadas lá. É isso mesmo. Você joga as pessoas lá. A gente não foi jogado no navio negreiro? É isso. Agora a gente tá aqui e foi jogado na universidade. Bem melhor, entendeu?

Formandos em Medicina pela UFRJ em 2015: encontre um negro, se puder. Imagem: Youtube /Carta Capital

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