Kate Aronof, The Intercept Brasil
Segundo um alto executivo da Royal Dutch Shell, a petrolífera teria ajudado a redigir o acordo climático de Paris.
A empresa, porém, é também a nona maior emissora mundial de gases do efeito estufa.
O executivo David Hone, consultor-chefe de mudanças climáticas da Shell, fez seus comentários na conferência internacional sobre mudanças climáticas, a COP 24, na última sexta-feira. Hone falou com sinceridade sobre o tamanho da influência que sua empresa teve na redação do Acordo de Paris, por meio de seu envolvimento com a Associação Internacional de Comércio de Emissões, a Ieta.
O Acordo é a peça central da conferência na Polônia, que se encerra no próximo dia 14, onde os delegados estão tentando elaborar um regulamento para sua implementação. A Ieta é uma organização de lobby corporativo que tem entre seus associados empresas produtoras de combustíveis fósseis, e que defende “soluções climáticas de mercado” até mesmo nas discussões sobre clima na ONU.
A julgar pelo que ele conta, esse envolvimento foi incrivelmente bem-sucedido. “Conduzimos por quatro anos um processo para que a necessidade do comércio de unidades de carbono fosse parte do Acordo de Paris. Podemos ficar com parte do mérito pela simples inclusão do Artigo 6 [do Acordo de Paris]”, disse Hone em um evento paralelo do Ieta no centro de conferências de Katowice, na Polônia. “Nós elaboramos uma proposta inicial. Muitos elementos dessa proposta inicial constam do Acordo de Paris. Depois preparamos uma outra proposta para o regulamento, e percebemos que alguns elementos apareceram no texto.”
Jesse Bragg, diretor de comunicação da organização Corporate Accountability [Responsabilidade Corporativa], comentou: “De certa forma, sou bastante grato à Shell pela honestidade com relação a algo que os ativistas vêm dizendo há muito tempo: que as próprias empresas responsáveis pela crise estão na mesa de negociações redigindo as pretensas soluções para nos tirar dela.”
Pelas regras da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima, apenas agentes estatais podem negociar oficialmente sobre o texto dos acordos climáticos, incluindo o Acordo de Paris. Sindicatos, organizações de sociedade civil e empresas podem ser observadores do processo.
Hone acrescentou que vem “conversando com algumas delegações” e que “a posição [da União Europeia] não é muito diferente do ponto de vista da Shell”.
O Artigo 6, o dispositivo pelo qual a Shell quer levar crédito, destaca os mercados de carbono como uma das principais formas pelas quais as empresas de petróleo e outros grandes poluidores poderiam conter suas emissões, permitindo-lhe adquirir créditos pela redução de emissões em outros locais em vez de reduzi-las diretamente. Esses sistemas estão cercados de controvérsias e, essencialmente, não contribuem em nada para reduzir os impactos locais da extração.
O Artigo 6 trata da mitigação, e do que agentes governamentais e não governamentais farão para mitigar as emissões, de acordo com a “Contribuição Nacionalmente Determinada” de cada país. A maior parte do artigo dispõe sobre os chamados mecanismos de mercado – sistemas de comércio de emissões – que permitem a cooperação internacional. Apenas uma parte do artigo diz respeito a mecanismos fora de mercado, que permanecem indefinidos.
Então por que a Shell está tão envolvida com os mecanismos de mercado?
Num mundo ideal para a Shell e outros produtores de combustíveis fósseis, esses seriam os únicos mecanismos governamentais de mitigação em discussão. “O melhor para um sistema ‘cap-and-trade’ (sistema pelo qual as empresas podem comprar e vender permissões para emitir gases além do limite estabelecido em lei) é que não existam políticas concorrentes (…) Se você realmente quer que funcione da forma mais eficiente possível”, disse Hone depois da sessão, referindo-se aos sistemas de comércio de emissões em geral. “Mas suspeito que esteja sendo um pouco idealista.”
Essa opinião é coerente com os posicionamentos que a Shell e as demais empresas de petróleo adotaram em relação aos mecanismos de precificação do carbono, que várias delas enxergam como um veículo para afastar outras restrições (por exemplo, as regulações) sobre suas operações. Um representante da BP me contou no mês passado que a principal razão pela qual a empresa gastou 13 milhões de dólares para derrubar uma taxa sobre carbono no estado de Washington foi que ela “não prevaleceria sobre outras regulações locais e estaduais sobre o tema”, numa lógica semelhante à adotada na proposta do Climate Leadership Council [Conselho de Liderança Climática, uma organização de viés conservador e empresarial] para um tributo sobre carbono nos EUA.
Não é tão coerente, porém, com o mais recente relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas, que destaca a necessidade de reduzir 45% das emissões de carbono até 2030, para tentar eliminá-las até a metade do século. Caso não ocorra um monumental aumento de escala das chamadas medidas de emissão negativa – uma série de tecnologias quase não testadas e proibitivamente caras, tais como a captura e o armazenamento de carbono – o uso de petróleo e de gás (o ganha-pão da Shell) precisará ser reduzido em 87% e 74%, respectivamente.
A fumaça da Shell
Philip Jakpor, chefe de mídia e campanhas da organização Environmental Rights Action [Ação pelos Direitos Ambientais] no delta do Rio Níger, já viu de perto os efeitos dos negócios de petróleo e gás da Shell. A empresa opera cerca de 200 queimadores de gás (os “flares”) na região, ardendo 24 horas por dia, a despeito de sua presença ali já ter sido repetidamente declarada ilegal. Jakpor conta que, em razão disso, as comunidades vizinhas precisam lidar com alergias de pele, problemas respiratórios e perturbação da agricultura e da pesca. Há anos elas vêm lutando contra a Shell para acabar com a prática. “A Shell está sufocando essas comunidades à base de gás”, ele me contou. A empresa agora quer poder vender créditos de carbono para construir a infraestrutura de contenção.
“A comunidade não quer que eles ganhem dinheiro com isso, o que a comunidade quer é que eles parem com a queima do gás”, acrescentou Jakpor. Ele é signatário, juntamente com 366 organizações em 129 países, do documento People’s Demands for Climate Justices[Exigências Populares para a Justiça Climática], que exige uma eliminação gradativa dos combustíveis fósseis e rejeita vários dispositivos que a Shell e outras empresas estão pressionando para incluir no Artigo 6.
“Já dissemos diversas vezes que a solução está nos mecanismos fora de mercado. Somos contra a mercantilização do meio ambiente. Se permitirmos isso, até o ar que respiramos será transformado em mercadoria. A saída para isso é acabar com a extração dos combustíveis fósseis, e não queremos empresas como a Shell e seus comparsas se infiltrando por toda parte para influenciar a discussão”, disse ele.
Para a Shell, isso é pedir demais. “Não chegaremos a emissões zero” até 2070, Hone me disse. “Não vejo como isso possa acontecer. Talvez zero emissão líquida, mas não zero emissão E você chega a zero emissão líquida porque há remoções de grande escala sendo feitas” – por meio da emissão negativa.
“Eles precisam que nós achemos impossível”, declarou Bragg. “Eles precisam que nós achemos que precisamos dessas soluções falsas, perigosas e sem comprovação para sair da crise. Só é impossível se a Shell e as demais estiverem redigindo as regras por meio das quais vamos tratar da crise climática. Não é impossível se deixarmos a ciência guiar nossa tomada de decisão, sem permitir que a indústria dos combustíveis fósseis sequestre a formulação de políticas.”
Tradução: Deborah Leão.
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Foto: GeoBangla
Enviada para Combate Racismo Ambiental por Amyra El Khalili.