Para a história. Por Janio de Freitas

A discussão sobre o AI-5 é feita com incorreção histórica ou dúvidas

Na Folha

Os 50 anos do AI-5 foram percorridos, de ponta a ponta, por um problema de incorreção histórica ou, no mínimo, de dúvida. Sua intocada existência em nada influencia a visão estabelecida do Ato brutal, mas importa para a caracterização do que o antecedeu e o seguiu.

O entendimento de que o AI-5 foi um golpe dentro da ditadura ainda é, apesar de sua fundamentação, secundário na interpretação do episódio. Desde o primeiro momento, prevaleceu a dedução de que o endurecimento do regime refletia o ditador Costa e Silva. Assim foi, ou porque se sucediam contestações à ordem ditatorial, e o AI-5 repunha a primazia da força, ou porque Costa e Silva ficara identificado como chefe da linha mais dura. Motivos que, aliás, se completavam. 

Muitos fatos não se encaixam nas duas explicações. A começar da reunião, nos primeiros dias pós-golpe, de alguns governadores chamados por Costa e Silva ao então Ministério da Guerra, no Rio. A Presidência estava com o interino de sempre, Ranieri Mazzilli, e o Congresso vivia as vésperas de indicar o presidente para complementar o mandato interrompido. Disso o general queria falar. Para advertir os governadores de que se enganavam no apoio ao chefe do Estado-Maior do Exército, general Castello Branco, da corrente militar contrária à devolução do poder aos civis, no tempo previsto. Não foi explícito, mas a insinuação de um civil para o cargo não era imperceptível na exposição.

Carlos Lacerda, pré-candidato nas eleições presidenciais do ano seguinte, insurgiu-se contra as informações e argumentos de Costa e Silva, que traduziu como manobra para prejudicá-lo: Castello também era udenista, e Costa e Silva tinha proximidade com o PSD de Juscelino. O general insistiu em vão. Os udenistas Magalhães Pinto e Ney Braga, também aspirantes à Presidência, reforçaram Lacerda.

Ao final dos três anos seguintes, que Castello presidiu com a supressão das eleições presidenciais, Costa e Silva venceu a dura batalha interna para sucedê-lo. Seu primeiro ano de presidente foi tranquilo, com plena liberdade de imprensa, nenhuma cassação, Congresso livre de pressões, a oposição ativa a ponto de Lacerda, Juscelino e Jango se juntarem em Frente Ampla pela redemocratização. O chefe da linha dura fazia o país entrever liberdades e direitos. Os estudantes aproveitaram. 

O que diziam ser a linha branda, exemplificada em Castello, passou a cobrar com parte da imprensa (a de sempre) providências contra “os agitadores”. Costa e Silva abriu 1968 com resposta inesperada: no primeiro dia 2, mandou ouvir os estudantes. Lacerda elevou o tom, propagando que os vencedores e os vencidos de 64 iam fazer, unidos, “a verdadeira revolução”. Os indícios de inquietação dos extremistas militares se sucediam. Costa e Silva, sob pressões múltiplas, em março foi falar na Escola Superior de Guerra. E, para irritados e aliviados, defendeu a oposição como necessária para vigiar o governo. 

A morte do estudante Edson Luís provocou um movimento de massas sem precedente. Houve choques numerosos com as PMs em vários estados. Os apoiadores civis da ditadura, como se pôde ver na imprensa, estavam atônitos. O recurso a ato institucional, arma de Castello, voltava a ser cobrado. A proposta de estado de sítio logo aparecia. Ambos eram assuntos diários. Costa e Silva os abordou um mês depois da fala na ESG: “Não pensei, não penso e não pensarei” nessas medidas. E, para pasmo de todos os lados, se dispôs a conversar com uma comissão representativa das manifestações.

A ditadura estava dividida entre Costa e Silva e uma titubeante articulação contra a linha do governo. Em dezembro, o AI-5 foi levado a Costa e Silva, um texto produzido por seu ministro da Justiça, Gama e Silva. Traição? Sendo, não foi única no ministério. Costa e Silva jogou o jogo. Assinou o Ato. O que lhe restava era repetir o que fez para derrotar a obstrução dos castelistas e chegar à Presidência: levantar forças a seu favor. Morreu antes disso. Seu acidente vascular cerebral foi dado por muitos como efeito do golpe que sofrera.

Quando divulgou sua equipe para o governo, entre jornalistas, escritores e políticos houve uma surpresa: Heraclio Salles, intelectual de alto nível, machadiano, crítico brilhante de literatura, jornalista de política extraordinário, democrata inabalável, seria o secretário de imprensa do ditador Costa e Silva. Emitido o AI-5, Heraclio Salles se demitiu. Na preparação do governo, Costa e Silva convencera-o de que mudaria o regime, e precisava do seu auxílio.

Costa e Silva como governante e seus anos na Presidência esperam ser estudados, para que o país saiba o que foram, afinal: o do AI-5 ou da redemocratização que o golpismo retardou por mais de 15 anos.

Solenidade na Câmara, em 01/04/2014, relembra 50 anos do golpe militar. Foto: Sérgio Lima /Folhapress

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