‘Toda ditadura quer controlar o campo educacional, porque é nele que há liberdade para pensar e construir novos caminhos para a sociedade’

Julia Neves – EPSJV/Fiocruz

Era 13 de dezembro de 1968 quando o então presidente da República, general Artur da Costa e Silva, autorizou o Ato Institucional nº 5 (AI-5), que cassou as liberdades civis no país por quase duas décadas. À época, várias medidas de exceção foram impostas, como o fechamento do Congresso Nacional, a suspensão do habeas corpus para crimes políticos e a intensificação da censura. Antes do AI-5, em 28 de junho, milhares de trabalhadores e estudantes se reuniram na chamada Passeata dos Cem Mil, no Rio de Janeiro, tendo como pano de fundo o recente assassinato do estudante Édson Luís pela ditadura. Somando-se a isso, greves em todo o país mostravam os problemas e a indignação de grande parte da sociedade. A Educação foi bastante impactada pelo decreto do AI-5. No final de novembro daquele mesmo ano, os militares já haviam promulgado a Lei nº 5.540, da Reforma Universitária. Já o ensino profissional foi modificado em 1971, com a Lei nº 5.692, que instituiu o segundo grau técnico obrigatório. Cinquenta anos depois, as medidas de 1968 ainda impactam o sistema educacional brasileiro.

É o que observa Paulo Carrano, professor e coordenador do grupo de pesquisa ‘Observatório Jovem do Rio de Janeiro’ da Universidade Federal Fluminense (UFF), em entrevista ao Portal EPSJV. Ele compara ainda o AI-5 ao projeto ‘Escola sem Partido’, que acaba de ser arquivado na Câmara dos Deputados, apontando que ambos interditam a liberdade do professor de pensar, criar e ensinar.

No dia 13 de dezembro, completam-se 50 anos do AI-5, considerado o ato mais duro da ditadura empresarial-militar brasileira. Ele teve efeitos diretos sobre a Educação?

O AI-5 foi um Ato Institucional dentro de uma ditadura empresarial-militar. Hoje, a gente tem clareza disso, da participação de classes da sociedade e interesses econômicos atrelados ao capital internacional. Toda ditadura precisa reprimir a oposição e calar as vozes e, ao mesmo tempo, tentar manter uma áurea de legitimidade e institucionalidade para que ela não pareça tão dura quanto realmente é. O AI-5 faz a ditadura perder o verniz de áurea democrática e escancara o caráter de amordaçamento da sociedade.

Toda ditadura quer controlar o campo educacional, porque é nele que há liberdade para pensar, construir pensamentos alternativos e novos caminhos para a sociedade. Portanto, o AI-5 tem impactos diretos na Educação, no que ele representou na repressão dos movimentos sociais organizados, na cassação de intelectuais, na aposentadoria compulsória de professores, na desmobilização de toda possibilidade de organização estudantil. Debates, que já aconteciam desde 1920, sobre as tensões entre público e privado e o papel do Estado e das famílias na educação, são mantidos apenas até a Lei das Diretrizes e Bases da Educação de 1961, que mal foi implementada porque logo em seguida veio o Golpe de 1964. Esse golpe afasta o esforço da sociedade brasileira em construir reformas de base, dentro de uma sociedade moderna capitalista, que pudesse ter independência frente ao capital internacional e planejamento de seu desenvolvimento. E, além disso, que pudesse seguir fortemente numa educação de base para vencer, à época, os altos índices de analfabetismo e desigualdade social e educacional. Quando chega o AI-5, com o recrudescimento da ditadura, fica impossibilitado qualquer debate alternativo sobre esses embates.

A ditadura toma partido por um tipo de sociedade, na qual o Estado fica submetido ao capital. Não foi a toa que nessa época houve o grande incremento dos sistemas privados de ensino. Nos anos de 1960, não se tinha tão claramente as empresas educacionais como temos hoje. Tínhamos interesses religiosos dos setores conservadores e de pessoas que percebiam a possibilidade de capturar parte significativa do fundo público para a iniciativa privada. O AI-5 aprofunda isso tudo, especialmente, porque ele cala qualquer oposição a esse modelo de desenvolvimento da educação centrado no conservadorismo, na limitação da liberdade de expressão e no favorecimento do capital privado no campo educacional.

Na educação básica, temos em 1971, a lei nº 5.692, que instituiu o segundo grau técnico obrigatório, dando um caráter profissionalizante à educação. Isso foi um fracasso, porque não se profissionalizou ninguém. Na verdade, teve uma dualidade [educacional], entre a classe popular subalternizada e a elite que encaminhava seus filhos ao ensino superior. Já havia uma influência muito grande americana desde 1964, com a United States International for Development (USAID), que tinha acordos com o Ministério da Educação, de fazer uma contenção do acesso das classes populares ao ensino superior. Por isso, precisava-se profissionalizar no ensino secundário. Esse é um modelo que hoje emerge com certo saudosismo dos tempos da ditadura.

O efeito do AI-5 na educação é político do ponto de vista de calar a organização e abrir o campo cada vez mais para o setor privado, que vai encontrar na educação uma fonte de lucro.

Foi em 1968, pouco antes do AI-5, que a ditadura anunciou a reforma universitária. Existe relação entre as duas coisas?

Uma reforma universitária tal como foi feita poderia ter tido muita oposição dos setores organizados, do movimento estudantil e de professores. Mas essa oposição não pode acontecer e, se aconteceu, foi de maneira muito frágil. Como reflexo do próprio AI-5, tivemos o decreto nº 477, de 1969, que proibia manifestações de caráter político e atividades consideradas subversivas nas universidades. O documento previa também a expulsão de estudantes das escolas e demissões sumárias de professores e funcionários. Enquanto o AI-5 é um grande guarda-chuva de interdição do pensamento e liberdade no país, essa lei é um subproduto direcionado para o campo educacional, que inibe possibilidades de organização e pensamento. Essa ideia do campo conservador que existe hoje de “professor doutrinador” já estava presente ali, no sentido de impedir qualquer avanço do pensamento crítico. Então, a reforma universitária teve o interesse de reorganizar o sistema, desmobilizar a voz institucionante e criar condições para expansão do ensino privado no ensino superior.

O processo de endurecimento do regime que se deu a partir do AI-5 teve consequências sobre o campo da educação também no longo prazo?

Demora-se a se recuperar de um Golpe como esse. Pessoas foram cassadas, aposentadas precocemente, toda uma geração que cresceu com medo de se expressar e se organizar. A própria ideia de “política não se discute” que muitas gerações ouviram… Mas não se discute por quê? Porque pode ser perigoso. Pessoas somem, são torturadas e presas. Isso tem um impacto do ponto de vista da construção de socialização política de longo prazo. Tem impacto também na própria formação da cidadania que, fundamentalmente, é expressa por três fatores. Um é a formalização dos direitos, já que está escrito na lei que as pessoas têm direitos. E há toda uma luta em torno disso, porque não se consegue direitos do nada. O segundo fator é que as pessoas precisam participar efetivamente e se lançar para que seus direitos aconteçam. Não existe democracia sem participação da sociedade civil e a ditadura impede ou tutela essa participação. E o terceiro fator, com uma incidência muito forte dessa atmosfera repressora que a ditadura traz e o AI-5 configura, é participar estando imbuído de valores democráticos. Se há direito de participar e não está imbuído de valores democráticos, pode-se ter uma participação de orientação fascista, intolerante e de negação da diferença.

Então, o impacto direto do AI-5 na cidadania de um tipo de educação tutelada pelo sistema ditatorial é a impossibilidade que as pessoas têm de participação, projetando valores democráticos. Não é a toa que temos hoje uma democracia muito frágil na mentalidade social.

No período da ditadura anterior ao AI-5, houve mudanças que mereçam destaque na educação?

Do ponto de vista político se tem uma interrupção do que poderia ser um embrião de uma sociedade soberana, autônoma, com princípios de desenvolvimento democrático. Tivemos a cassação do presidente João Goulart, fechamento do Congresso Nacional… Mas, ao mesmo tempo, tem-se uma sociedade que está mudando, deixando de ser rural para ser urbana. E, mesmo que seja de maneira tutelada, essa sociedade ainda se mexe e reivindica. Nos anos de 1970, há mobilização de mães, por exemplo, reivindicando escola nas proximidades de seus bairros. Tem também movimentos de trabalhadores lutando pela ampliação da escolarização para além do ensino fundamental. Existia uma sociedade que estava mudando demograficamente e, ao mesmo tempo, pressionando. Então, mesmo nos moldes da ditadura, o governo precisou dar respostas para essa sociedade que demandava melhorias nas condições de vida.

Uma grande dificuldade a ser destacada foi que a ditadura encontrou uma forma de financiamento da educação – e o ‘Salário Educação’ é uma maneira sintética dessa forma de financiar, que torna os investimentos públicos educacionais dependentes das oscilações da economia de mercado. Diferentemente disso, em 1996, com a criação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (Fundef) e anos depois com o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), tivemos uma proteção para que aquele investimento público necessário definido na Constituição não oscile com as variações econômicas. A ditadura, na verdade, subordinou o desenvolvimento educacional às flutuações de uma economia capitalista muito imprevisível. 

Com a Constituição de 1988, ganha corpo a ideia de que aqueles princípios educacionais precisariam encontrar formas estáveis de financiamento. O Fundef e Fundeb só foram possíveis porque a Constituição superou a maneira precária de financiar a educação que os militares organizaram. Mas, atualmente, com a Emenda Constitucional 95, nós retrocedemos ao tempo da flutuação do planejamento educacional às variações de mercado e economia. A EC 95 congela os gastos públicos e coloca tutelada as variações de mercado. Isso é um crime do ponto de vista das necessidades da população em um país com tanta desigualdade educacional.

Qual era o cenário da educação brasileira no momento do Golpe, em 1964? Além das medidas que foram tomadas depois pelo regime, que conquistas a educação perdeu de imediato com o fim da democracia?

De imediato, a sociedade perdeu todo um movimento de reformas de base que tentavam solucionar as graves desigualdades educacionais. Por exemplo, o analfabetismo era algo que marcava o campo da educação e, por isso, foram criadas políticas de alfabetização. Toda a ideia da importância de Paulo Freire começa fortemente a ser praticada ali, pouco antes do Golpe de 1964, com projetos como ‘De Pé no Chão Também se Aprende a Ler’, que foi experimentado no Rio Grande do Norte. No momento em que essas experiências de educação popular começavam a se institucionalizar e ganhar um caráter público operacional e massivo, isso é interrompido. São colocadas no lugar formas mais instrumentais e menos políticas de formação do cidadão. Além de todo esse processo de interdição do debate na sociedade brasileira entre questões relacionadas ao público e ao privado, ao laico e ao religioso…

Ao tomar partido, a ditadura interrompe o debate e constrói uma linha direcionada à criação do mercado educacional e à colocação da educação pública em um papel subsidiário às orientações e aos valores das famílias. Hoje, isso é retomado de forma muito forte com a ideia de Escola sem Partido, quando se quer que a escola pública seja um subproduto dos valores familiares. No fim das contas, isso é um suicídio democrático, porque a sociedade republicana precisa de espaços públicos onde as diferenças possam ocorrer não como negação aos valores familiares, mas como formas de convivência. Se você tem uma educação que apenas espelha os valores das famílias, você tem a imposição do valor dominante da família. Semelhante a isso, a ditadura interrompe a questão da pluralidade.

Estamos comemorando também 50 anos de um dos livros mais importantes do mundo no campo da educação, a ‘Pedagogia do Oprimido’, de Paulo Freire, que teve seu lançamento no mesmo ano do AI-5. Qual a relação entre esses fatos?

É uma coincidência bastante paradigmática. O livro ‘Pedagogia do Oprimido’ explicita que não se constrói uma sociedade emancipada sem sujeitos emancipados e livres. Ou seja, do ponto de vista do papel dos educadores, deve-se enxergar educandos como parceiros em uma relação dialógica e não como alguém a ser tutelado, ensinado com valores de fora para dentro. Reprimir a circulação da pedagogia de Paulo Freire num contexto de AI-5 foi uma forma de confirmar esse escancaramento do regime militar, que não permitia que a diferença pudesse prosperar na sociedade. É um dos livros mais publicados e reeditados no mundo justamente porque a sociedade percebe nele um incurso de emancipação, liberdade e negação dessas formas de controle.

Situações de prisões, perseguições políticas e exílio atingiram militantes de áreas diversas nesse período mais duro da ditadura. Isso atingiu também militantes, instituições e organizações ligadas ao campo da educação? 

A liberdade sindical foi cerceada, limitada e controlada. Hoje, a gente fala muito que sindicatos se tornaram pelegos, cúmplices de violências. Isso tudo tem uma forte vinculação com a limitação que a ditadura impôs a que sindicatos se organizassem livremente. Na época, houve também a cassação de professores que estavam contribuindo para que a sociedade avançasse em caminhos não ditatoriais. Isso tudo atrasa qualquer avanço no campo educacional. O medo de se expressar e de colocar o que se pensava na esfera pública atrasou todo o desenvolvimento da sociedade. 

A ditadura deixou resquícios na educação brasileira, heranças que resistiram mesmo após a redemocratização? Ainda vemos reflexos de 1968 no sistema educacional brasileiro?

O reflexo mais específico de 1968 que nós acabamos absorvendo é o sistema de crédito nas universidades, um sistema de financiamento de estudos em instituições privadas. Além disso, a dualidade na educação é uma marca ainda na sociedade brasileira, com a dificuldade que as classes populares têm de ascender ao ensino superior, de se projetar a um nível de escolarização acima de seus pais. De alguma maneira, a ditadura construiu leis e institucionalidades para perpetuar essa dicotomia na sociedade, em que alguns vão para a universidade e outros ficam na base da sociedade.

Então, quando você tem a Reforma do Ensino Médio e a Base Nacional Comum Curricular aprovadas sem diálogo com a sociedade, eu diria que isso é a retomada dessa dualidade que separa aqueles que recebem uma formação aligeirada na educação básica e aqueles que podem acessar o ensino superior. É isso que a Reforma do Ensino Médio expressa hoje: ela é enamorada dessa dualidade educacional que está presente desde a Reforma de Capanema, nos anos 1940. 

Existe relação entre o momento atual do debate educacional brasileiro e 1968? O foco de parcelas conservadoras da sociedade sobre a educação e movimentos como o ‘Escola sem Partido’ têm alguma relação com a experiência e a herança da ditadura e, especificamente, do AI-5?

Há uma ligação direta, principalmente com essa dificuldade da sociedade brasileira de viver o contraditório, a diferença de pensamento. Esse projeto de lei, que agora foi arquivado, já gerou estrago, já deixou o clima intoxicado nas relações com os alunos, estimulando-os a denunciar professores e fazendo com que professores não se sintam a vontade na sala de aula com medo de perseguição. Isso tudo é o eco de uma vontade de interditar o contraditório. Isso estava totalmente presente no AI-5 e na lei educacional de 1969 que impede a mobilização e o livre pensamento nas escolas.

Para um projeto desses avançar é preciso criar um fantasma, que é essa figura inexistente do ‘professor doutrinador’. Claro que é inexistente como fenômeno social ampliado, ou seja, pode acontecer aqui ou ali. Não é uma epidemia como as classes conservadoras colocam, mas é preciso criar esse pânico moral. O ‘Escola sem Partido’ é uma retomada desse princípio de interdição da liberdade de pensar, criar e ensinar do professor e do direito de estudantes terem acesso a conhecimentos amplos do mundo e dos seus corpos.  Veja o que é a tentativa de interromper o debate sobre gênero e sexualidade! É uma verdadeira violência contra os corpos de crianças e jovens.

Qual a importância da democracia para o campo e as políticas de educação?

A democracia não é algo que a gente tem ou não, é um processo sempre inacabado de aprofundamento e radicalização de seus princípios do ponto de vista da liberdade de se expressar e conviver com as diferenças. A democracia quer administrar a diferença, a ditadura quer administrar o consenso.

Hoje, a gente vive um processo muito paradoxal, no qual indivíduos com índole autocrática se elegem utilizando as ferramentas da consulta popular e da democracia. Isso é muito mais efetivo quando se tem uma sociedade pouco educada em relação à socialização política para pensar a esfera pública. Temos um problema real de termos interditado o campo de experimentação democrática em uma sociedade que ainda tem muito o que percorrer nas conquistas do campo da liberdade. Com isso, podemos ter sérias consequências para o processo educacional, tanto naquilo que significa a superação das desigualdades educacionais, quanto naquilo que significa a liberdade de indivíduos e coletivos lutarem por direitos.

Esse caráter autocrático de governos que estão se elegendo em todo mundo é limitado pela institucionalidade democrática, pelas leis, pelo equilíbrio dos poderes, e também pela capacidade de ação e mobilização da sociedade, que não apenas espera que as leis sejam cumpridas, mas se organiza para que elas efetivamente sejam.

Nós devemos avançar discutindo, fazer da escola e da sala de aula espaços de reflexão e diálogo. Não podemos legitimar as ameaças que pairam no ar e fazer a tarefa que a ditadura e regimes arbitrários querem fazer. Não devemos facilitar a tarefa da autocracia. Vejo muitas pessoas amedrontadas hoje no Brasil, mas não devemos estar com medo.

Imagem: O AI-5 dava ao presidente da república um poder quase sem limites / Reprodução

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