“Ninguém solta a mão de ninguém” – reflexões decoloniais para um novo mundo

Examinar dragões, não domesticá-los ou abominá-los, nem afogá-los em barris de teoria, é tudo em que consiste a antropologia. […] Tranquilizar é a tarefa dos outros, a nossa é inquietar (GEERTZ, 2001, p. 65).

Por Francirosy Campos Barbosa[1]

Um pouco no impulso, confesso, nominei um dos pontos do concurso de Livre Docência realizado em outubro de 2018 e aqui condensado:  antropologia contemporânea. Minha dificuldade na definição do ponto a ser sorteado era não saber o que incluir em tantos campos de pesquisa que invisto, insisto e advogo.

Certa vez, uma amiga pesquisadora de Islam, me disse: “precisamos escolher as batalhas que entramos”. Penso que ela me sinalizava algo mais, mas fingi que não entendi o conselho, afinal tenho causas demais por defender e tenho pressa. O mundo contemporâneo requer muita luta, porque há muito desassossego. O processo colonial foi tão perverso que deixou marcas e silêncios profundos. Não é de se espantar que no Brasil a escravidão existiu até há pouco tempo, e se pensarmos bem, os efeitos dela estão em todos os lugares. Na universidade, por exemplo, é gritante a ausência de negros e mulheres em postos de Direção de Faculdades, o que sinaliza que a gestão administrativa do conhecimento científico está nas mãos de homens brancos, mas também, as bibliografias das disciplinas sugeridas para leitura recheadas dos mesmos europeus e/ou norte-americanos.

Buscando compreender melhor universos diversos, além dos já conhecidos venho lendo dois intelectuais negros Bell Hooks e Franz Fanon e tenho me fascinado: ela uma ativista feminista negra, intelectual, que escreve no seu livro: ensinando como transgredir: a educação como prática da liberdade: … aprendemos desde cedo que nossa devoção aos estudos, à vida do intelecto, era um ato contra hegemônico, um modo fundamental de resistir a todas as estratégias brancas de colonização racial; ele um psiquiatra, filósofo ativista pela independência da Argélia, escreve sobre descolonização, e patologização do colonialismo. Se Freud pergunta: o que quer a mulher?  Fanon pergunta: Que quer o homem? Que quer o homem negro? E completa: Mesmo expondo-me ao ressentimento de meus irmãos de cor, direi que o negro não é um homem. Leia em seu livro “Pele negra, máscaras brancas”.

Penso que a antropologia contemporânea requer de nós a coragem de pensarmos a fundo o tema decolonial. Nas palavras de Santos e Meneses (2009, 12) encontramos a seguinte definição para este campo: “é aqui concebido metaforicamente como um campo de desafios epistemológicos que tenta reparar os danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo na sua relação colonial com o mundo”. São muitos os autores que percorrem este caminho e a antropologia vem na esteira deste pensamento buscando cada vez mais este diálogo por meio das questões de gênero (feministas), raça e classe. Joaze Bernardino-Costa & Ramón Grosfoguel escrevem que a decolonialidade consiste também numa prática de oposição e intervenção, que surgiu no momento em que o primeiro sujeito colonial do sistema mundo moderno/colonial reagiu contra os desígnios imperiais que se iniciou em 1492. Há, como podemos notar, uma emergência e uma insurgência do movimento decolonial neste debate, prefiro o termo decolonial ao descolonial, por manter na língua inglesa um melhor paralelismo.

Constantemente sou indagada, até mesmo na universidade sobre o uso do véu, sempre associado como algo que diminui a mulher, a desqualifica, a subjuga.  Seriam essas mulheres trajadas com suas vestes religiosas corpos abjetos? Para usar uma terminologia de Judith Butler. Mulheres muçulmanas estejam de hijab, niqab, burca serão sempre estigmatizadas. Entretanto, Lila Abu-Lughod nos coloca a pergunta correta: do que as mulheres muçulmanas necessitam ser salvas? Questão esta mobilizada pelo discurso de Laura Bush, primeira dama dos EUA, pós 11 de setembro. No discurso da primeira dama fica claro o entendimento da mesma em relação às muçulmanas que usam burca. Mulheres afegãs nesta concepção deveriam ser salvas pelos americanos. O discurso salvacionista dos americanos do norte utilizada para produzir processos de hierarquização que operam a partir de conceitos raciais e temporais é recorrente. Nós mulheres brancas, ocidentalizadas, promotoras dos “direitos humanos” podemos libertá-las. Mas, do que realmente as estamos libertando? Pois como escrevi em 2013[2] “o véu não encobre pensamento”, isto posto, não é a vestimenta que dirá se a mulher é ou não oprimida, subjugada, etc. Limitar mulheres à roupa que vestem é não compreender o universo em que vivem e suas agendas diversas de inserção no campo privado e público.

Um exemplo instigante é quando expresso que mulheres saharauis em Tindouf têm pautas de reivindicação pela autodeterminação do seu território no Sahara Ocidental e essas estão lado a lado dos homens nas questões públicas e privadas, muitos interlocutores me olham com espanto, pois desconhecem esta luta e desconhecem essas mulheres. Somos todos tão colonizados que até as lutas são aquelas que os nossos olhos podem enxergar em um raio bem restrito. Para diminuir a miopia em relação a este tema recomendo assistir ao documento de Renatho Costa e Rodrigo Estrada “Um fio de esperança”; os diretores nos presenteiam com um lindo documento audiovisual sobre a história de luta do povo do Sahara Ocidental por mais de 40 anos por sua autoderminação de direito, mas ainda não concretizado. A resistência e a paciência deles são exemplos para nossas lutas cotidianas, e sugiro para compreensão dessas mulheres do Sahara, que tanto falo em palestras, o artigo de Sayid Marcos Tenório: “A intensa força das mulheres do deserto”[3]. A luta pela terra é o que não nos falta no Brasil; povos indígenas, quilombolas, moradores de periferias são exemplos que dignificam nosso ativismo cotidiano e  a certeza de que mais do que nunca não podemos soltar nossas mãos, quando se trata de contribuir para uma sociedade mais justa. É possível e necessário globalizar nossas lutas e almejar que cada um tenha seu espaço reconhecido e valorizado.

Em sendo assim, a militante, ativista de esquerda franco-argelina, Houria Boudejda, em seu artigo Raça, Classe e Gênero ressalta a importância que a perspectiva decolonial tem em definir um sujeito revolucionário, quer dizer, o sujeito ao redor do qual se construirá o projeto de transformação social. Traz-nos a certeza que nesses tempos só podemos pensar em nome da raça, da classe e do gênero, e se quisermos realmente que as mudanças aconteçam – vamos precisar de todo mundo-, complemento. Ainda sobre a questão de raça, Sueli Carneiro em seu artigo “enegrecer o feminismo…” reforça o contraponto ao feminismo branco, dizendo que quando se fala de romper o mito da rainha do lar, da musa idolatrada dos poetas é importante se perguntar de quem se está falando? Pois, segundo a autora, mulheres negras não fazem parte deste contingente de mulheres rainhas de nada, e são sim, retratadas como antimusas, pois o modelo estético é a mulher branca.

Estamos a colonizar o comportamento do outro que submetemos sempre como inferiores, desiguais e não o tratamos dentro dos parâmetros da diferença. Cada vez mais venho concordando com o pensamento de Asma Barlas quando diz que não se incomoda se a mulheres nativas (muçulmanas) são ou não feministas. Para ela o feminismo é um movimento histórico, universal e natural e intrínseco ao progresso. Muitas consideram que o Islam é feminista na letra e sexista na leitura e por fim, diz que o feminismo não existe na época da revelação. Ela mesma não se declara feminista e sim muçulmana que cobra seus direitos colocados no século VII.  Como nos assegura Paola Bacchetta os colonizadores não só impuseram suas próprias noções de gênero e de sexualidade em sujeitos colonizados, mas também exploraram as situações das mulheres e das minorias sociais.

Mas ainda nos cabe uma questão final provocada por Spivak: pode o subalterno falar? O sujeito subalterno na definição de Spivak é aquele pertencente “às camadas mais baixas da sociedade constituídas pelos modos específicos de exclusão dos mercados, da representação política e legal, e da possibilidade de se tornarem membros plenos no estrato social dominante” neste registro incluímos os pobres, as mulheres, os negros. Há diversos exemplos em que esses sujeitos não são ouvidos, e em muitas situações não podem se expressar ou tem sua fala desqualificada. A lista é grande também quando se trata de povos colonizados. A preconcepção de que “eles não podem representar a si mesmos, eles precisam ser representados” [4] foi e tem sido, sobretudo, desde a Modernidade, o sujeito oculto e onipresente nas ações discursivas e nas investidas colonialistas que delineiam aquilo que Edward Said (1980) denominou de “projetos orientalistas, os quais objetivam a construção e consolidação de uma  cultura material.

Ao refletir sobre questões que envolvem o Brasil atual e seu crescente recrudescimento de direitos, além das realidades vividas por povos africanos, palestino, etc, e todas essas perdas pelo processo de colonialidade, fica a pergunta se é possível Direitos Humanos decolonial? Penso que isso será possível se os profissionais de direitos humanos estiverem interligados a uma bibliografia decolonial, ou se estiverem dispostos a compreender a historia a contrapelo, como diria Benjamin, precisamos realmente mostrar que além de homens brancos ocidentais, a história do pensamento humano é feito de muitos outros e a antropologia contemporânea tem muito a colaborar com isso, vários dos autores aqui citados estão totalmente imbricados nesta proposta.

É fato que nosso lema atual ninguém solta a mão de ninguém dá-nos a certeza de que não andamos só, mas, é preciso, sobretudo, que as mulheres possam falar por elas, os negros, os índios, quilombolas possam se autorepresentar, assim como, devemos estar atentos às diversas lutas globais como as dos palestinos e dos saarauís (nativos autóctones do Sahara Ocidental). Sigamos na inspiração Geertziana “se quisermos verdades caseiras não saiamos de casa, pois a nova ordem mundial requer que a luta seja pela libertação de todos. Um ativista não escolhe uma causa, escolhe a justiça. Se os próximos quatro anos parecem difíceis para alguns brasileiros, é porque esses ainda não conhecem suficientemente a luta pela demarcação de terras indígenas há 500 anos, a luta do povo palestino pelo direito a um Estado soberano há mais de 70 anos, a luta do Sahara Ocidental em ser reconhecido por direito há mais de 40 anos.

Nós resta enquanto acadêmicos, ativistas, militantes seguir cantando e lutando como no texto de Glauber Rocha e Sérgio Ricardo:

-Se entrega, Corisco!

-Eu não me entrego, não!
Eu não sou passarinho
Pra viver lá na prisão

-Se entrega, Corisco!

-Eu não me entrego, não!
Não me entrego ao tenente
Não me entrego ao capitão
Eu me entrego só na morte
De parabelo na mão

-Se entrega, Corisco!

-Eu não me entrego, não!

(Mais forte são os poderes do povo!)


[1] Antropóloga, Livre Docente no Departamento de Psicologia, FFCLRP/USP, coordenadora do GRACIAS – Grupo de Antropologia em Contextos Islâmicos e Árabes. Autora do livro: Performances Islâmicas em São Paulo: entre arabescos, luas e tâmaras. São Paulo, Edições Terceira Via, 2017.

[2] Cf Discursos sobre o uso do véu islâmico.

[3]http://port.pravda.ru/sociedade/incidentes/12-10-2018/46465-mulheres_deserto-0/ acessado em 19/12/18

[4] Citação de Karl Marx, em The Eighteenth Brumarie of Louis Bonapart, citada por E. SAID (1980).

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Amyra El Khalili.

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